Análise

A supremacia da vida humana vs o cumprimento da legalidade – O conflito de um enfermeiro

 

A protecção da vida humana é uma conquista milenar de dimensão planetária de que todos os indivíduos, enquanto pessoas, se devem soberbamente orgulhar. É, na verdade, um bem sem qualquer paralelo e cujo preço nenhum cientista, desde as áreas económicas até às biológicas, se arrogou a estabelecer.

E assim há-de permanecer, devendo qualquer tentativa de diminuição ou obstrução de protecção ser pronta e seriamente condenada, quer por mecanismos jurídicos (o Direito visa também a vida, pois, a tutela a esta concedida deve ser absoluta e forte) quer por mecanismos sociais (a sociedade civil deve erguer a sua voz em forte sonoridade e união contra toda a espécie de práticas anti-proteccionistas da vida humana). De resto, a protecção da vida humana consubstancia um dever que sobre todos, sem excepção, impende.

Este dever, de imposição geral, tem repercussões especiais naqueles que exercem actividades ligadas aos cuidados de saúde, maxime, médicos e enfermeiros. É razoavelmente exigível que os profissionais de saúde se vejam, especialmente, perante a obrigação de salvar vidas, não criando ou diminuindo riscos para este bem. E se assim é, então, o incumprimento desta obrigação deve ser firmemente punido. Noutra face da moeda, mas, ainda na esteira da forte tutela do bem em apreço, devem ser premiadas todas as práticas e atitudes que resgatem a vida humana da teia dos riscos em que ela, não raras vezes, se encontra. Tudo isto num plano ideológico parece linear, e por isso, não levanta grandes problemas. Na prática, não.

Vejamos o caso, real e recente, saliente-se, de Hugo do Rosário Medeiros. Trata-se de um enfermeiro são-tomense que presta serviços de apoio no Banco de Urgência do Hospital Central Dr. Ayres de Menezes, e que, desde o mês de Março, enfrenta um processo disciplinar movido pela administração da referida instituição por ter, alegadamente, “assumido a dianteira de tramitações e actos essenciais” no “processo de internamento e de evacuação” de uma menor, de nome Carla (por entender que a revelação da verdadeira identidade da paciente pode prejudicar todo o processo e os intervenientes nele, optamos pelo uso de um nome fictício). De que actos se trata? O “arguido” Hugo Medeiros e os pais da menor dirigiram-se ao Palácio do Governo com o intuito de manifestar a preocupação sobre o grave estado de saúde da menor e, sobretudo, sobre a lentidão com que o processo de evacuação estava a ser tratado. E nesta altura, revelou “a falta de cumprimento integral das actividades hospitalares”.

Até aqui e descritos assim os factos, exactamente como estão apresentados no auto disciplinar, não se advinham quaisquer controversas. O problema surge quando as atitudes do enfermeiro (imbuídas de um forte espírito humanitário, e ainda bem que assim é) são confrontadas com as normas jurídicas que regulam a prestação de serviço numa instituição pública (aplica-se, neste caso, o Estatuto da Função Pública). Hugo Medeiros é acusado de violação do “dever de sigilo”, pois, o artigo 8º, nº 2, alíneas a) e e) da Lei 5/97, Estatuto da Função Pública obriga a “guardar segredo profissional relativamente aos factos de que tenha conhecimento”.

A administração do Hospital Dr. Ayres de Menezes entende também que as declarações proferidas pelo enfermeiro Hugo Medeiros no Palácio do Governo consubstancia a violação do “dever de isenção em que consiste não retirar o beneficio directo ou indirecto das funções que exerce, actuando com independência em relação aos interesses e pressões particulares de qualquer índole”. O “arguido” viola ainda o “dever de assiduidade”, pois, segundo a acusação, por se ter dirigido ao já referido Palácio no “horário de trabalho” não compareceu, “regular e continuamente ao serviço”, conforme estipula o preceito do citado artigo 8º, nº 2, alínea g) do Estatuto da Função Pública.

A apresentação deste caso segue o método de pura descrição de factos, sem qualquer relacionamento de cariz ideológico. Pois, entendemos que, quando se trata de salvar vidas em ocasiões extremas, trazer as ideologias para cima da mesa de discussão é, no mínimo, revelador de uma abusiva e estúpida desconsideração pelas pessoas, e assintomático de uma falta de consciência humana e um intolerável desrespeito pela dignidade dos indivíduos. E é na senda da descrição de puros factos que continuamos.

O Banco de Sangue não possui meios técnicos para se analisar o hematócrito no sangue dos pacientes. A dinâmica, o profissionalismo e o espírito humanitário com que Hugo Medeiros actuou no tratamento da menor Carla fizeram com que se pudesse ultrapassar esta lacuna técnica, tendo as análises sido efectuadas num “serviço extra-hospitalar”. A isto se chama, na língua portuguesa, sentido de resolução de problemas associado à clara capacidade de enfrentar e contornar os obstáculos e as adversidades. A menor Carla encontrava-se na unidade de “cuidados intensivos”. Sobre o “estado grave” de saúde da paciente já havia um “relatório para a junta de evacuação”.

A directora clínica do Hospital só toma conhecimento desses factos através de um “telefonema da ministra da Saúde”. Contas baralhadas: a ministra da Saúde tem conhecimento sobre estado de determinados pacientes que a própria directoria clínica do Hospital não possui? E já a partir de aqui esta acusação começa a cair por terra abaixo. Primeiramente, por incoerência de fundamentos.

Quer dizer, há dados sobre o funcionamento do único Hospital Central de um Estado de que o Governo, maxime, o 1º Ministro não deva saber? Quem elabora a política de saúde? É possível que esta política tenha sucesso sem o conhecimento dos alvos que ela visa? O quê de tão sigiloso sobre o funcionamento do Hospital Central foi o enfermeiro Hugo Medeiros relevar ao cidadão Patrice Trovoada? Ups…ao 1º Ministro?

Esta é a primeira vez que, na comunicação social, se aborda este assunto. Ou seja, o enfermeiro acusado não se pôs perante os holofotes atirando aos jornalistas, e portanto, ao público em geral, informações técnicas sobre as prováveis doenças de que padece a paciente. Nem o autor do presente artigo possui essas informações. Então, não está claro que o enfermeiro estava verdadeiramente imbuído de uma inegável e determinante vontade de salvar a vida da paciente? E é justo que, por isso, deva ser condenado?

De todas estas questões que já se levantaram, apenas uma tem a prioridade. Pergunta-se: deve o cumprimento de alguma norma legal sobrepor-se ao dever de salvar vidas humanas? Aqui, não pode haver dúvidas nem hesitações, a resposta é categoricamente não. Repetimos, não. Se sim, teria São Tomé e Príncipe de deixar de ser um Estado de direito democrático.

E então, seria o maior retrocesso de que há memória. A menção aos direitos fundamentais (a vida humana é um deles) está presente logo no artigo 6º, nº 1 da Constituição da República, tal a relevância que o Estado atribui aos mesmos. Resulta claramente que é em cumprimento deste preceito constitucional que actuou o enfermeiro Hugo Medeiros. Mas, mais importante do que todas as normas é a vida humana propriamente dita. Até porque as pessoas existiam e existem antes do Estado, e logo, das normas positivadas.

Por cada segundo que gastamos, aqui, a escrever o presente artigo, que a administração gastou a proceder à acusação e por cada segundo de todo o tempo que este processo acusatório irá gastar, a menor Carla tem visto o seu estado de saúde a complicar-se mais do que já está, apenas porque alguns indivíduos entendem que o dever de salvar vidas deve ceder perante o cumprimento de normas de outra natureza que não visam, clara e directamente, a tutela deste bem supremo. E não é mesmo que a Carla tem, hoje, a sua saúde extremamente complicada? Contra toda a espécie de negligência, incompetência e má fé, a menor conseguir ser evacuada para Lisboa. Todavia, a conduta do Hospital Dr. Ayres de Menezes não podia deixar de produzir consequências nefastas para a saúde da paciente: “AVC (acidente Vascular Cerebral) seguido de paralisia do lado esquerdo”, conforme relatou uma fonte próxima da paciente. Dito isto, basta de blá blá blá

 

Conceber o Direito apenas como fonte de normas, e utiliza-lo como fundamento para punir aqueles que defendem a vida humana é uma intolerável negação da Justiça, porque o Direito é na sua essência Justiça. E se o Direito castigar os que defendem a vida humana, um dia, a Justiça há-de castigar os obreiros daquele castigo.

Ou é caso para se dizer que a “Justiça é cega mas sente o cheiro de pobre”?

 

Ludmilo Tiny

 

7 Comments

7 Comments

  1. salmo 91

    17 de Maio de 2011 at 16:32

    no meu entender regra são regras meu , ta que ele como enfermeiro tem como dever salvar vidas, mais sabe que existem leis e também foram feitos para cumprir ,ele ao tentar ajudar sepulto a se mesmo ,ele tem interceder juntos das autoridades para tentar sanar a situação da miúda , outro ponto se fosse um doença contagiosa também sairia ai a falar ? não pode ser assim meu caro enfermeiro …só para concluir os dois falharam tanto o hospital como enfermeiro ……..

  2. Anca

    17 de Maio de 2011 at 18:41

    Urgente,necessário,prioritário,se torna a execução de projectos e políticas sérias,de educação e formação.
    O país deve (ou já deveria ter começado) começar a executar um projecto estruturado,para as áreas de formação carentes em Sâo Tomé e Príncipe, como por exemplo, Medicina; Enfermagem;Agronomia entre outra que se tornam necessário e urgente assim como começar a dar prioridade a melhor condições de trabalho e execução, para os profissionais.
    Sabemos que São Tomé e Príncipe, sofre de carência, de recursos.Mas é altura de começar a gerir melhor os recursos que temos disponível e pensar em aumenta-los futuramente de modo a garantir a sustentabilidade dos mesmo e do País e logo a sua inter-extra-dependência.
    Deus Abençoe São Tomé e Príncipe

  3. OLHOVIVO

    17 de Maio de 2011 at 19:37

    È o País que temos,bem a fazer mal a ver,mas o mal só é visto pelos superiores ignorantes.

    Mas acho que devemos mudar as nossas mentalidades, e depois as nossas atitudes .

    O Direto a Vida ´-é o principio fundamental da declaração universal do Direito do Homem.

    Respeitem isso!

  4. Tribério

    17 de Maio de 2011 at 22:30

    A classe de enfermagem santomense não está organizado.Associação está morto, um grupinho é que está a viver. Não não existe Ordem dos Enfermeiros. Mas, este é um assunto que o sindicato dos Enf. deveria pronunciar. No entanto, o enfermeiro em causa não respeitou o sigilo profissional, será que o mesmo entrou em contacto com a direcção do Hospital para saber o fundo da questão? Ele entrou em contacto com 1º Ministro como enfermeiro do Hospital A.Menezes? Telanon deve obter informação da direcção do Hospital. Uma coisa é certa os enfermeiros do Hospital Ayres Minezes têm medo de pronunciar determinadas situações à direcção do Hospital, trabalham sem minimas condições (sem luvas, água, uniforme, fazem trabalho de médico ….) Os enfermeiros têm que formarem para mudar esta situação. Este já está condenado, pode pedir transferencia urgente.

  5. J. Maria Cardoso

    18 de Maio de 2011 at 9:31

    Todo este derramar de palavras, resume-se no salvar de uma vida humana, algo k entra sempre em conflito com a justiça social e o direito a saúde quando falamos de Estados doentios quanto o nosso.
    Rezo para k o tema vindo ao público (parabéns Tiny) possa tocar nas sensibilidades dos k decidem para a evacuação urgente da criança, não deixando morrer mais um anjo de Deus do Zé Povinho.
    Quanto ao enfermeiro em causa por mais k tenha ultrapassado as regras admnistrativas, até um erro chegar a acusação e castigo, há observâncias k possam atenuar as penas, desde k a vida continue sendo o mais precioso da herança humana.
    K Deus te salve Carla!

  6. Mé Coêlhano

    18 de Maio de 2011 at 12:07

    Meu caro,
    A grande verdade é que o nosso enfermeiro violou a deontologia profissional, violou a hierarquia (não deveria nunca ir-se queixar ao 1º Ministro) e o pior ENVOLVEU-SE EMOCIONALMENTE NO EXERCÍCIO DA PROFISSÃO. Faço fé que não o venham a afastar do exercício da sua profissão…mas que falhou…falhou mesmo.
    Agora acho que ao invés de fazer esse barulho no jornal deverias fazer uma corrente e angariar uma algum dinheiro para contratar um advogado para ajudar o homem…
    Um bem haja.
    FUI

  7. marra

    26 de Outubro de 2011 at 16:01

    gostei

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