Opinião

DIREITO PENAL Vs. DIREITO DISCIPLINAR

O Direito Penal é um ramo de direito que visa proteger bens jurídicos fundamentais da vida em sociedade, tais como a vida que é protegida com o crime de homicídio; integridade física, com o crime de ofensas corporais; propriedade, com os crimes de furto, roubo, burla, dano e outros; liberdade e autodeterminação sexual, com os crimes de violação; erário e interesse públicos e integridade pública, com os crime de corrupção, peculato, etc. e vários bens jurídicos que se podem identificar nas normas incriminadoras que se encontram no Código Penal e outras legislações avulsas, todas elas protegendo sempre um ou vários bens jurídicos.

E, normalmente, quem comete crimes é passível de sanção que pode ir desde multa até prisão temporária (porque outra que existe noutros sistema é prisão perpétua e até pena capital), sendo esta a sanção típica e mais severa desse ramo de direito.

Enquanto o Direito Disciplinar, como qualquer direito sancionatório que visa proteger bens jurídicos, tem a integridade pública como o seu, mais no tocante ao exercício correcto das actividades da administração pública. E nesta vertente pública, esse ramo de direito insere-se no quadro do direito administrativo em que a administração pública aplica unilateralmente sanções disciplinares aos seus funcionários quando entender que eles cometeram alguma infracção disciplinar.

Mas não só; também há Direito Disciplinar no âmbito das entidades que exercem actividade privada, máxime, empresas privadas, ou, se se quiser, no quadro das relações jurídico-laborais entre empregadores privados e os trabalhadores. Estas também aplicam sanções aos seus empregados/trabalhadores quando cometem infracção disciplinar, baseando-se sempre num processo disciplinar, como aliás é do conhecimento de toda gente.

O direito disciplinar aplicável aos privados é o que estabelece o “REGIME JURIDICO DAS CONDIÇÕES INDIVIDUAIS DE TRABALHO” adoptado pela Lei n.º6/92, de 21 de Fevereiro, onde se tipifica os direitos e os deveres dos trabalhadores e também se vinca que um trabalhador só é despedido mediante um processo disciplinar e quando haja “justa causa” para tal e se estabelece as consequências quando não sejam observadas essas regras. E é o Código do Processo de Trabalho que estabelece as vias a seguir quando há litígio nesse domínio.

Um processo disciplinar que culmine com a sanção mais grave do direito disciplinar que é despedimento e que não fundamente essa decisão com a justa causa, é passível de ser anulado pelo tribunal, obrigando a reintegração do trabalhador ou que ele seja indemnizado nos termos legais.

Oportunamente, abordarei o tema sobre o direito do trabalho em que necessariamente focarei essas questões com mais pormenor.

Em alguns temas já publicados, abordei o Direito Penal, assim como o seu processo – Direito Processual Penal – que no fundo são os mecanismos que conduzem a responsabilização de alguém que comete crime (vidé “CRIMES PUBLICOS SEMI-PUBLICOS E PRIVADOS”, “PRISÃO PREVENTIVA”, “A TRIADE PUNITIVA” e “ÓRGÃOS AUXILIARES DA JUSTIÇA”), sem prejuízo de vir ainda a desenvolver o tema específico de processo penal em si.

No essencial, o processo penal inicia-se com a denúncia, notícia ou queixa sobre um crime que alguém cometeu e, normalmente, são feitas juntos das Policias (PIC e PN) que, consoante as circunstâncias, dá o tratamento devido, podendo proceder a detenção do agente do crime, o que acontece quando haja flagrante delito (apanhado com “boca na botija”), e outros expedientes processuais; a maior parte é encaminhada para o M.P. que é o detentor de acção penal, única entidade que tem competência para fazer andar um processo-crime contra qualquer pessoa, podendo inclusive arquiva-lo.

Importa salientar que qualquer pessoa pode proceder a detenção de alguém que esteja a cometer um crime, ficando com a obrigação de entrega-la a uma entidade policial mais próxima ou mesmo ao M.P. (artigo 151.º/2 do Código de Processo Penal). Neste caso só quando haja flagrante delito, ou seja, o agente é apanhado a cometer crime ou acabou de comete-lo e está a ser perseguido para detenção. Fora de flagrante delito ninguém deve ser detido. Mas sabemos que essa regra sempre foi violada no nosso Pais por várias vezes.

Não estou a abordar processo penal propriamente dito, mas já que “estou com mão na massa” devo dizer que a excepção de se poder deter alguém fora de flagrante delito previsto no artigo 152.º só é accionado, (ou deve ser accionado) por três autoridades da justiça penal: Juiz, M.P. e Director da PIC (Policia Judiciária, como gostaria que se chamasse); e só em situações em que haja um processo em curso contra alguém e esse alguém tenha que comparecer para ser ouvido (e porventura não queira comparecer) uma dessas autoridades pode ordenar a detenção do cidadão (artigo 152.º do Código do Processo Penal).

Fora disso, como tem acontecido, e por vezes de forma camuflada, os cidadãos não podem ser detidos. Aliás, a regra do processo penal não é deter para investigar, mas sim investigar sem deter e só depois deter, se houver séria justificação e nas condições que a lei estabelece. Porque o processo deve ir ao M.P. para acusação ou não, e se for acusado, seguidos mais tramites, deve ser julgado. E esta é a sede principal (que devia ser a única – perdoem-se-me o exagero) em que um cidadão pode ir para Cadeia. Porque a prisão preventiva, ou melhor, privação de liberdade de um cidadão antes de julgamento, é uma excepção, ultima ratio ou último recurso, como dizem a doutrina e jurisprudência.

Não tenho a interpretação, como já vi existir, de que fora de flagrante delito, mesmo sem haver processo, pode uma dessas autoridades mandar deter um cidadão, sobretudo a nível de Policia.

No direito disciplinar as sanções variam de simples advertência ou admoestação até a demissão, sendo esta a sanção mais grave, de tal modo que deve haver uma certa pedagogia no sentido de que um processo disciplinar não tem de culminar com a pena de demissão, pois, assim como em direito penal a pena deve ser aplicada em função da gravidade da infracção e demais elementos que têm a ver com o grau da culpa, da ilicitude disciplinar e alguns parâmetros que têm a ver com a personalidade do funcionário ou trabalhador.

O processo disciplinar baseia-se, normalmente, na violação dos deveres dos funcionários e trabalhadores que estão previstos em cada legislação respectiva (artigo 130.º do EFP e artigo 17.º do RJCIT)

A este propósito, lembro-me de um caso que, a meu ver, nunca podia culminar com sanção de demissão de um juiz que, do que me apercebi, terá tido uma posição contrária aos demais elementos do colectivo e publicitou-a e demitiram-no. Foi exagero, tanto mais que, em recurso, o Supremo Tribunal de Justiça deu razão ao juiz, anulando a decisão de demissão.

O que não se passará no privado?! E na Administração Pública!? Com a vulnerabilidade da nossa situação sociopolítica, a situação é muito melindrosa, pelo que urge mudança de mentalidade e de paradigma de “justiça” no direito disciplinar.

Temos, desde logo, em concreto, no âmbito da Administração Pública, um conjunto de regras que fazem parte desse direito que estão tipificadas no Estatuto da Função Pública (Lei n.º5/97.)

Entendo que são aplicáveis às empresas publicas o regime contemplado nesse Estatuto de Função Pública, se não houver legislação especial em concreto. É o que se pode deduzir do artigo  2.º/1 que cito: “ As disposições do presente diploma são aplicáveis a todos os serviços da administração central e aos institutos públicos que revistam a natureza de serviços personalizados ou de fundos públicos.”

E no âmbito de direito disciplinar privado temos as regras constantes da Lei n.º 2/96 (Regime Jurídico das Condições Individuais de Trabalho) que são aplicáveis apenas no âmbito das relações jurídico-laborais privadas.

Em termos de contencioso, ou seja, quando haja necessidade de se recorrer à jurisdição (Tribunal) para dirimir conflitos nestas duas áreas de direito disciplinar, os mecanismos, o processo e os procedimentos são diferentes, sabendo-se que na Administração Púbica funcionam as regras do Direito Administrativo.

No âmbito da administração pública, quando um funcionário se vê confrontado com uma sanção disciplinar e não se conformando com a decisão que normalmente reveste a forma de despacho do superior hierárquico que lhe aplica uma sanção, pode recorrer ao Tribunal Administrativo que aprecia a situação e ali culminar com a decisão de anulação desse despacho sancionatório.

No privado, o direito do trabalhador que se sente injustiçado com uma sanção disciplinar o caso é julgado no Tribunal Judicial (Tribunal de Trabalho que ainda não existe autonomamente) passando, normalmente, pelo M.P. que é também representante dos trabalhadores nesses casos.

Para as duas situações é pressuposto fundamental:

– Que haja um vínculo entre uma pessoa a uma entidade pública ou privada que na maior parte dos casos são o contrato de trabalho. Na administração pública, a situação de vínculo não é só de contrato que pode ser a prazo como definitivo, mas também de nomeações que tem natureza de vínculo permanente.

– Que haja, na vigência desse vínculo laboral, uma situação de violação dos deveres por parte do trabalhador e da qual ele é culpado.

– Que haja um processo disciplinar mandado instaurar pelo superior hierárquico e que passa necessariamente por uma instrução conduzida por um funcionário/trabalhador de categoria superior àquele que é vítima do processo disciplinar.

– Que no final da instrução do processo, o superior hierárquico tome uma decisão que amiúde se baseia na medida disciplinar proposta pelo instrutor.

– Que a decisão sancionatória, quaisquer que sejam  devem ser devidamente fundamentada, ou seja, se explique e justifique o porquê dessa sanção. Em caso de despedimento, é imprescindível que haja o pressuposto fundamental que é a “justa causa” para o despedimento.

Hilário Garrido – Juiz de Direito

2 Comments

2 Comments

  1. Barão de Água Izé

    11 de Novembro de 2013 at 14:07

    Não seria interessante um esboço da revisão do Código Penal que incluísse a criminalização de actos de políticos que salvaguardassem a revisão da Constituição para o Presidencialismo?
    Por exemplo: Políticos que desencadeassem ou dessem cobertura a golpes de Estado subvertendo a Ordem Constitucional.

  2. Falar Direito

    12 de Novembro de 2013 at 15:07

    O nosso sistema judicial no seu todo está desatualizado. Como jurista de profissão na diáspora, estou muito preocupado com a fragilidade do sistema judiciário em Sao Tomé e Príncipe. Apelo a todos mais empenho, mais leitura e mais estudo.

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