Cultura

Francisco Tenreiro : A angústia de um Poeta dividido

FRANCISCO TENREIRO: A ANGÚSTIA

DE UM POETA DIVIDIDO

Falar de Francisco José Tenreiro, importante figura de poeta, contista, ensaísta, geógrafo, professor universitário e intelectual de primeira grandeza no panorama literário português e africano dos meados do século passado, constitui uma ocasião ímpar que se me abre para abordar uma personalidade de extraordinária dimensão no processo de consciencialização política e cultural empreendido pelas elites africanas em Portugal nas décadas que imediatamente antecederam a luta armada de libertação nacional, processo que terá contribuído decisivamente para o seu desencadeamento.

Embora espinhosa e timorata a incumbência, considero que é sempre um renovado prazer rever a pessoa e a obra do incomparável poeta da Negritude que foi Francisco José Tenreiro.

Uma outra circunstância, quiçá a mais expressiva, me motiva: convivi muito jovem ainda e em circunstâncias muito especiais com Francisco Tenreiro, aquando das suas visitas a S. Tomé, particularmente em 1961, frequentava eu então o antigo 5º ano dos Liceus, época que um feliz acaso nos pôs em contacto: o pai do poeta, Emílio Vasques Tenreiro, e o meu pai trabalhavam juntos num escritório de que o primeiro era administrador e sempre que viesse a S. Tomé F. Tenreiro passava ali quase que invariavelmente as tardes, lendo e escrevendo.

Jovem como era, habituei-me a observar com atenção e respeito aquele homem de porte altivo e de fino trato, a escutar a sua voz amigável e franca sempre que lhe pedisse qualquer esclarecimento a propósito desta ou daquela matéria de estudo.

Foi ainda nessa época que tomei contacto com o enorme acervo de conhecimento e de saber de Francisco José Tenreiro, por ocasião de uma conferência por si proferida no então Colégio-Liceu (hoje Escola Preparatória “Patrice Lumumba”), subordinada a um tema ligado à Geografia Humana, de que era especialista: Tenreiro falou, de improviso, durante cerca de duas horas, deixou entusiasmada e encantada a assistência, constituída por altas individualidades, professores e alunos dos anos mais avançados, a ponto de, na primeira aula subsequente ao evento, a professora de Geografia, a saudosa Dra. Eugénia Moura, por nós considerada uma eminência na matéria, nos dizer em tom solene: “Ontem, sim, ontem ouvimos um Mestre”.

Francisco José Vasques Tenreiro nasceu em 20 de Janeiro de 1921, em S. Tomé, filho de Emílio Vasques Tenreiro e de Carlota Maria Amélia, trabalhadora contratada da roça “Diogo Nunes”, propriedade do colono Elias Lopes Rodrigues, o célebre Sun Fiá Malicha, cantado pelo poeta num dos poemas de Ilha de Nome Santo.

Ainda muito novo, por decisão da família paterna – pertencente à alta finança portuguesa, com fortes interesses ligados ao sector do mar e das pescas – Francisco Tenreiro foi enviado, com a idade de dois anos, para Lisboa, onde fez os estudos primários e secundários.

Chegados aqui, considero que, para uma melhor compreensão da acção e da obra do poeta, bem como da situação social e política prevalecente em Portugal quando, na década de 40, Francisco Tenreiro começou a emergir para o conhecimento público, se torna absolutamente necessária uma incursão pela história mundial dos finais do séc. XIX-inícios do séc. XX, em busca de antecedentes que possam ilustrar as principais linhas de força (políticas, sociais, culturais) então universalmente predominantes.

Antes de mais, é necessário abordar as profundas transformações a nível das mentalidades, decorrentes do intenso intercâmbio de ideias e da profusão de criações literárias ocorrida no chamado Século das Luzes e durante o Romantismo, as quais conduziram ao movimento de carácter filantrópico que, sobretudo no último quartel do séc. XIX, daria azo à abolição da escravatura.

Por toda a parte começou então a germinar a comum ideia de reconhecimento e valorização do passado próprio de cada povo. Nos Estados Unidos e nas Caraíbas, onde a escravatura tinha assumido um peso relevante na economia e a mão-de-obra era constituída por milhões de africanos violentamente arrancados do seu solo pátrio e transferidos em condições infra-humanas para as grandes plantações de cana-de-açúcar, tabaco e algodão, surge, nos anos 20 e 30 do século passado, o Renascimento Negro norte-americano – Black Renaissance, Harlem Renaissance ou New-Negro – “como um movimento intelectual de negros empenhados em participar na crescente valorização do homem Negro e na luta pela igualdade de direitos com os brancos…”[1].

Na literatura, destacam-se, dentre outros, nomes como os de Langston Hughes (o mais representativo desse movimento), Claude Mckay, Countee Cullen, William du Bois, Sterling Brown, Alain Locke e James Weldon Jonhson – dos quais Francisco Tenreiro foi o grande divulgador junto dos africanos que estudavam em Portugal –, cujas obras tiveram grande influência não apenas na comunidade afro-americana como nas Caraíbas (especialmente no Haiti e em Cuba) e se repercutiram com assinalável impacto junto dos estudantes africanos em Paris e Lisboa.

Nas Caraíbas, esse movimento para a revalorização do negro e do índio, espoliados na sua condição de seres humanos pela prepotência do homem branco, esclavagista ou de mentalidade afim, teve particular incidência em Porto Rico (através da escrita de Luís Palès Matos), no Haiti (sob o nome de Indigenismo e a acção de escritores como Jean Price Mars e Jacques Roumain) e em Cuba, onde adoptou a designação Negrismo Cubano e ganharam extrema relevância, entre outros, os nomes dos poetas Regino Pedroso, Marcelino Avozocena, Rodriguez Mendez e, em particular, Nicolás Guillen, escritor e compositor com grande influência nos meios intelectuais neo-realistas, africanos e modernistas brasileiros e cuja obra Motivos de Son (1930) revolucionou por completo a poesia cubana. Na América do Sul, mais concretamente no Brasil, o movimento tomou a designação de Modernismo e ganhou destaque através de poetas como Castro Alves, Jorge de Lima, Lino Guedes e alguns outros.

Esse grande movimento de renascimento e de revalorização do negro, esse grito de revolta anti-colonialista que apelava à união e à solidariedade dos negros de todo o mundo e que se denominou nos seus primórdios Pan-Africanismo (anos 10 e 20), chegaria à Europa através da França (1935), onde permanecia uma significativa comunidade de estudantes africanos e caribenhos, que na diáspora se manifestavam profundamente apreensivos com a situação dos negros a nível mundial. Ali ganharia o nome universalmente consagrado de Negritude (1939) e para a sua eclosão e afirmação contou com a profícua acção de escritores como Léopold Sedar Senghor (Senegal), Aimé Césaire (Martinica) e Leon Damas (Guiana), através, respectivamente, de obras como Chants d’ Ombre, Cahiers d’ un Retour au Pays Natal, Pigments, bem como dos jornais Légitime Defense e L’ Etudiant Noir, e  a  revista  Présence Africaine.

Numa breve síntese, pode dizer-se que a Negritude consistia, para além de tudo, na recusa pelo negro da assimilação dos valores ocidentais e, para tal, era necessário que este se reconhecesse nos elementos de uma cultura enraizada no solo nacional, orgulhar-se dela, dos seus valores. Buscava-se com ela o ressurgimento da consciência histórica, cultural e política e do orgulho de ser negro, o que contribuiu para despoletar no mundo negro um surto nacionalista sem precedentes. Considera Pires Laranjeira que pela poesia da Negritude perpassa a decadência da civilização ocidental, o triunfo da raça negra… o triunfo do riso, do canto e da esperança. Trata-se da recusa da civilização ocidental, da evocação continuada dos negreiros e sua repressão (tema maior do sofrimento do passado), do cortejo da violência, com a consequente ameaça de revolta, o despertar da África., da reivindicação da Negritude, que levou o negro-objecto a assumir-se como Negro-sujeito”[2]

Constituem seus temas fundamentais a exaltação do país distante, a ânsia de regresso à terra natal, a relevância fundamental da raça e da cor da pele, a condição do negro em África e fora dela, o país de origem como um paraíso perdido da infância, que se opõe à frieza, agressividade e decadência da cultura dominadora europeia.

Após este périplo pela Negritude e seus antecedentes, voltemos a Francisco Tenreiro que, em 1942, aos vinte e um anos e estudante na Faculdade de Ciências de Lisboa, publica Ilha de Nome Santo, obra que vem a lume na colecção coimbrã “Novo Cancioneiro”, afecta aos sectores neo-realistas portugueses ligados à oposição à ditadura fascista de Salazar.

Com esse livro, considerado unanimemente como o de introdução da Negritude em língua portuguesa, Francisco Tenreiro exprimiu pela primeira vez como valores a saudade da terra que o viu nascer e que não conhece, embora a ela ligado pelo coração.

Os poemas dessa primeira obra falam de situações e de gentes ligadas à terra distante, desde o ambicioso “pequeno português” seu Silva Costa, que “chegou na ilha: calcinha no fiozinho, dois moeda de ilusão e vontade de voltar”; que ” fez comércio di álcool / fez comércio di homem / fez comércio di terra” mas que hoje “virou branco grande, passando pela alienada San Marinha, filha da terra, que ainda menina “foi no norte” e aí se habituou aos requintes da Europa e a quem a ilha já nada tem a oferecer.

Vibrante e pungente é também o “Romance de Sinhá Carlota”, dedicado à sua mãe, mas suficientemente envolvente para parafrasear todas as mães negras vítimas do destino trágico de verem perdidos os seus filhos, tanto negros como mestiços: “teve filhos negros que trocam hoje o peixe por cachaça/ teve filhos mestiços / Uns / forros de a b c / perdidos em rixas de navalhas / Outros foram no norte / com seus pais brancos / e o seu coração / já não lembra o rostinho deles!”.

Destaque-se nessa importante obra a exaltante e encomiástica referência aos negros de todo o mundo, à África, ao orgulho na raça e na cor, conceitos típicos e enformadores da Negritude.

A poesia de Francisco Tenreiro é um compromisso com a terra, com o processo de renascimento do homem negro e da sua civilização e bem assim com a luta contra a dominação a que este estava sujeito. É simultaneamente uma tomada de consciência e uma chamada de atenção para a existência de um importante acervo de valores insistentemente desmentido e/ou ignorado pelas teorias castradoras ao serviço da xenofobia e do racismo.

Mário Pinto de Andrade, o grande investigador, ensaísta e intelectual angolano que dedicou quase toda a sua vida ao estudo das problemáticas relacionadas com o nacionalismo africano e que com Francisco Tenreiro lançou, no emblemático ano de 1953, a obra A Poesia Negra de Expressão Portuguesa diria, referindo-se ao seu grande companheiro e amigo, a propósito de Ilha de Nome Santo: “É esta tomada de consciência de um património africano e de um mundo negro que particularmente se exprime em Francisco José Tenreiro… “.[3]

Refira-se que nessa pequena antologia, para além do próprio Tenreiro, estavam representados Alda do Espírito Santo (S. Tomé e Príncipe), Nicolás Guillén (Cuba), Agostinho Neto (Angola), António Jacinto (Angola), Noémia de Sousa (Moçambique) e Viriato da Cruz (Angola). À excepção de Nicolás Guillen, os outros eram todos activos dirigentes da dinâmica acção unitária empreendida em Portugal (mais concretamente em Coimbra e Lisboa) pelos estudantes africanos.

Reconheço que falar do grande poeta santomense é correr o risco de me alongar demasiadamente, tão assoberbante foi a acção por ele desenvolvida ao longo de uma vida curta, mas profundamente recheada, tanto do ponto de vista profissional, como intelectual.

Em 1944, Francisco Tenreiro abandona a Faculdade de Ciências e passa a frequentar, nos 4 anos subsequentes, o Curso Superior Colonial, no âmbito do qual se ministravam matérias relacionadas com o então chamado “Ultramar”, o que se traduziu num importante passo da sua vida, já que assim se afastava de uma via que, na opinião de Raquel Soeiro de Brito, sua amiga, companheira de curso e de magistério, “lhe não dava satisfação plena para poder então aprofundar o seu verdadeiro interesse de jovem …a África”.

Três anos depois, ainda aluno do último ano do curso, passa a secretariar o Prof. Orlando Ribeiro, o eminente cientista português no domínio da geografia humana, no Centro de Estudos Geográficos do Instituto para a Alta Cultura. Pouco tempo depois, por sugestão daquele cientista, seguirá estudos de Geografia na Faculdade de Ciências de Lisboa.

Em 1951, com Agostinho Neto, Amilcar Cabral e Mário Pinto de Andrade, cria o Centro de Estudos Africanos, instituição considerada por muitos como passo fundamental para a concepção dos movimentos de libertação que, anos após, iriam desencadear a luta armada nos países africanos sob a dominação portuguesa. Um pormenor a salientar: o Centro de Estudos Africanos contava com a participação, entre outros, de Alda do Espírito Santo e teve como local de nascimento o prédio situado na Rua Actor Vale, nº 37, em Lisboa, residência da família Espírito Santo, de S. Tomé, que funcionou durante muitos anos como ponto de encontro por excelência dos nacionalistas africanos de língua portuguesa.

A intensa acção desencadeada na Casa dos Estudantes do Império (associação de cariz unitário fundada em Outubro de 1944 pelo Governo português visando o enquadramento político e ideológico dos estudantes oriundos das colónias mas que, ao invés disso, viria a desempenhar papel determinante na orientação e consciencialização dos estudantes africanos, na perspectiva do combate ao processo de assimilação e alienação desencadeado pelo regime fascista), os contactos com os neo-realistas portugueses nas revistas Seara Nova e Vértice, a acção levada a cabo no Centro de Estudos Africanos, associada ao trabalho no Centro de Estudos Geográficos e às inúmeras comunicações de carácter científico proferidas em Portugal e no estrangeiro consubstanciam para Francisco Tenreiro uma actividade verdadeiramente absorvente.

Em 1955, na qualidade de bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, especializa-se em Geografia na Universidade de Londres, participa na Conferência Anual dos Geógrafos Britânicos, profere duas palestras na BBC de Londres e concede uma grande entrevista a essa emissora. Concluídos os estudos de Geografia, em Lisboa e Londres, é contratado nesse mesmo ano como assistente pela Faculdade de Letras de Lisboa, onde leccionará até à sua morte.

Absorvido pela actividade docente e pela investigação científica, como que põe de lado a poesia. Entre 1956 e 1958 Tenreiro veio anualmente, durante três meses, a São Tomé, efectuando o trabalho de campo para a sua tese de doutoramento em geografia, orientada por Orlando Ribeiro. Foi, aliás, durante a primeira dessas estadias em São Tomé, em 1956, aos 35 anos, que desde a sua saída aos dois anos, viu pela primeira vez a sua própria mãe.

 

 

Uma derradeira visita a S. Tomé, na Páscoa de l962, proporciona-lhe o reencontro com a poesia e marca uma nova etapa do seu percurso, como que o regresso aos tempos saudosistas da sua primeira fase, através de poemas tão típicos como “Sum Padre”, “Ossobó Cantou” “Banana Pão”, “Mamão Também Papaia” “Vinho de Palma”, “Corpo Moreno”, “Ritmo Para a Jóia Daquela Roça” e “Poente “.

Entretanto, eram significativas as mudanças (políticas, sociais e culturais) que se iam verificando tanto no seio das elites africanas como nas sociedades europeias em que estas se inseriam. Em França, os críticos de Léopold Senghor reprovavam nele a visão de uma negritude quase contemplativa, pugnando apenas pelo diálogo entre as civilizações, como se a Negritude fosse um fim em si mesma e não um instrumento através do qual os africanos deveriam prosseguir a concretização de objectivos concretos. “Ele [Senghor] sustenta uma posição institucional e política de equilíbrio entre a reivindicação civilizacional africana e o respeito total pela cultura clássica francesa e europeia, sem qualquer confrontação”[4]. Em suma, na perspectiva reformista de Senghor, a Negritude é apenas o diálogo de civilizações, enquanto os líderes que se preparavam para desencadear a luta armada muito cedo a ligaram à ideologia de libertação.

Mário Pinto de Andrade, por sua vez, reconhece o desuso em que começava a cair a Negritude, “declarando ultrapassado o plano de afirmação simples da existência dos valores negros, para se entrar no domínio do conflito colonial”[5].

O ano de 1956 pode ser considerado como decisivo para o declínio da Negritude de língua portuguesa. De facto, é dessa data a constituição de dois dos movimentos de libertação que se aprontavam para luta armada contra Portugal (MPLA e PAIGC). Nesse mesmo ano, numa atitude polémica que mereceu a severa crítica dos seus companheiros e amigos, Francisco Tenreiro aceitou integrar, a convite do Prof. Orlando Ribeiro, a Assembleia Nacional Portuguesa.

Em Paris, em pleno 1º Congresso de Escritores e Artistas Negros, Franz Fanon, o famoso autor de Os Condenados da Terra, lança um veemente ataque contra a Negritude, acusando-a de se ter transformado num travão das forças libertadoras e apelando os africanos à luta armada.

Em 1959, de facto, “o movimento anti-colonial dos estudantes e activistas africanos avança com a palavra de ordem de ‘Deixar Portugal rumo ao exílio’, sobretudo dos seus principais elementos, que seguem para Paris, Argel, Suíça, etc. e, a partir daí, a Negritude fenece drasticamente, cotando-se o poema “Amor de África” (1963), de Francisco Tenreiro, como um dos últimos textos negritudinistas.”[6].

O poema foi escrito no ano da sua morte, sendo que a sua segunda parte, na opinião do conceituado professor Fernando J. B. Martinho, no prefácio ao livro Coração em África, publicado em Lisboa, em 1982, regista um bloqueio nas tentativas feitas pelo intelectual Francisco José Tenreiro para estabelecer um diálogo franco e aberto com a Europa… O grito que o poema, no fim, faz chegar até nós, mais do que a crença, a esperança, deixou transparecer a raiva – uma raiva desesperada ainda tomada, talvez, pelo fogo vingador da certeza.[7]

Francisco José Tenreiro faleceu na última noite do ano de 1963, em consequência de uma hemorragia cerebral que o vitimou, aos 42 anos, em casa, em Lisboa, na noite de 31 de dezembro de 1963”.

Não gostaria de terminar este texto sem que nele deixasse expressa uma nota tendente a uma melhor elucidação sobre a figura de Francisco Tenreiro.

No prefácio acima aludido, ao reflectir sobre a dedicatória de abertura à obra Ilha de Nome Santo (“Mãe! Entre nós: milhas! Entre nós: uma raça! Contudo, este livro é para ti…”), o professor Fernando J.B. Martinho pronunciou-se do seguinte modo: “A distância entre Francisco Tenreiro e a mãe é uma distância mensurável em ” milhas ” e em ” raça.”. O canto representa um esforço para anular esta separação; Tenreiro identifica-se com a Mãe, faz seu o sofrimento do homem negro, mas a distância…é real, não pode ser iludida”. (8)

E essa circunstância ajudará a explicar algumas das contradições do percurso ideológico de F. J. Tenreiro, as quais têm vindo a ser condenavelmente reveladas por determinados estudiosos, tudo tendo a ver com posições por si assumidas, sobretudo após o CEA ter cessado definitivamente, em abril de 1954, as suas actividades, numa altura em que a maioria dos seus ativistas já tinha saído de Portugal: Amílcar Cabral foi à Guiné em setembro de 1952. No mesmo ano, Alda Graça Espírito Santo regressou a São Tomé. No ano seguinte, o moçambicano Marcelino dos Santos saiu de Lisboa para Paris, aonde foi também Mário Pinto de Andrade.

Diga-se que depois disso, Tenreiro afastou-se politicamente, cada vez mais, dos antigos amigos africanos. Ao contrário dos seus colegas africanos do CEA, não se radicalizou politicamente e muito menos optou pela luta armada contra a dominação colonial portuguesa, tendo-se tornado deputado da União Nacional, então o único partido legal, pelo círculo de São Tomé e Príncipe, na Assembleia Nacional salazarista.

Em novembro de 1961, doutorou-se finalmente em geografia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa com a tese A Ilha de São Tomé.

Entretanto, durante a Conferência dos Escritores e Artistas Negros em Roma, em 1959, Frantz Fanon (1925-1961), o revolucionário da Martinica, recomendou o levantamento da luta armada simultaneamente em Angola e Moçambique.

Julga-se que Francisco Tenreiro deixou-se levar pelas promessas liberalizantes de Marcelo Caetano (1906-1980), professor de Direito e, em 1968, sucessor de Salazar, numa altura em que queria também solidificar a sua carreira universitária. De facto, Tenreiro aceitou o convite para se tornar deputado numa altura em que era assistente da Faculdade de Letras, onde estava a trabalhar na sua tese de doutoramento. Contudo, esta decisão teria sido um dos dois momentos mais difíceis da sua vida.

Outro aspecto a merecer acirradas críticas dos seus detractores tem a ver com certas afirmações emitidas em A Ilha de São Tomé sobre a escravatura e a resistência de escravos, ao opinar sobre a suposta inexistência da escravidão em São Tomé, o que transformava a célebre revolta dos escravos de 1595 em assalto dos angolares e obscurecia a verdadeira dimensão histórica de Amador, como comandante de uma das maiores revoltas escravas da história da escravatura.

Reconheça-se que, permanecendo em Portugal para onde viera com a idade de dois anos, em certa medida se concebe que “no contexto da época, Tenreiro tinha de fazer compromissos com o regime para poder percorrer a sua carreira académica prometedora que, de repente, foi interrompida pela sua morte súbita e prematura.

Por outro lado, é de se reparar que embora “os intelectuais da África lusófona da sua geração que vieram a ter papel determinante na emancipação das respectivas nações tivessem  também estudado em Portugal, simplesmente, na meninice e na adolescência, nos anos formativos por excelência, tinham tido um contacto directo com os seus povos, sem a intercessão dos livros ou das evocações nostálgicas. Tenreiro, pelo contrário, crescera em Lisboa, longe do seu mundo de origem, um mundo “de que raramente lhe falavam”, e é na fase tumultuária de definição do eu, na juventude, que procura encontrar-se, saber quem é, conhecer as suas raízes, e, “sentimentalmente”, “viaja ” até à sua ilha, entrega-lhe o coração”.

No fundo, porém, permanece um homem dividido entre as razões ‘sentimentais’, do coração, que o puxam para a exaltação da sua componente africana, e as razões de educação, que o vinculam à necessidade de um diálogo Europa-África, em que, em termos existenciais, a Europa acabará por levar a vantagem”9

Falei-vos de Francisco Tenreiro, através de um texto que poderá ter sido relativamente extenso. Considerei necessário transmitir-vos tais elementos acerca do nosso grande poeta, procurando abrir-vos simultaneamente o prazer e as vias para uma investigação mais circunstanciada e profunda sobre a sua figura, sobre o escol da elite africana do seu tempo e, bem assim, sobre a problemática do Pan-africanismo e da Negritude, que constituem parte incontornável do nosso legado, enquanto cidadãos do mundo, santomenses e africanos.

9 Idem, 21

 

Tenho dito.

                                              Albertino Bragança

 

                             NOTAS

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[1] PIRES LARANJEIRA, A Negritude Africana de Língua Portuguesa, Lisboa: Edições Afrontamento, 1995, Página 26.

[2] Idem., Página 92

[3] Idem. PÁGINA???

[4] Idem. 143

[5] Mário Pinto de Andrade. Prefácio à obra “Cultura Negro Africana e Assimilação”, cf. Pires Laranjeira – A Negritude Africana de Língua Africana, op.citada, Página 121,. Página 121

[6] Pires Laranjeira, op. Cit .Página 147

7  Fernando J. B. Martinho. Prefácio ao livro Coração em África,  Colecção ” Para a História das Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, “África- Literatura, Arte e Cultura, Lisboa, 1982. Página 38

4 Comments

4 Comments

  1. ze+Maria+Cardoso

    21 de Janeiro de 2022 at 4:19

    Sr. Doutor!
    Não foi longo, não!
    Embebedei-me como que estivesse num dos nossos fundões, a lhe ver riscar o chão apertado ao peito da rumba, a nossa rumba.
    Um especial agradecimento.
    “Mãe! Entre nós: milhas! Entre nós: uma raça! Contudo, este livro é para ti…”

  2. Nita

    22 de Janeiro de 2022 at 12:41

    Obrigada pelo texto

  3. Gerhard Seibert

    23 de Janeiro de 2022 at 13:20

    Este texto do meu amigo Albertino Bragança foi pela primeira vez apresentado por ocasião do 82.º aniversário do nascimento de Francisco Tenreiro, em são Tomé, em 20 de janeiro de 2003. Em 2010, o mesmo texto foi publicado no livro “Francisco José Tenreiro. As Múltiplas Faces de um Intelectual”, organizado pela Inocência Mata (Lisboa: Edições Colibri). Um parte dos 31 textos reunidos neste livro foi apresentada numa conferência internacional alusiva ao 90.º aniversário de Francisco Tenreiro, organizada pela Inocência Mata, no Centro Cultural Brasileiro, em São Tomé, de 18 a 20 de janeiro de 2011. O texto publicado agora pelo Téla Nón é apenas ligeiramente diferente no fim. Nesta parte final Albertino Bragança cita do meu artigo “A ‘Ilha de São Tomé’ (1961) de Francisco Tenreiro. Uma Releitura Contextualizada” (Economia e Sociologia, n.º 85, 2008, p. 69-88) sem indicar esta fonte.
    Mais ainda, a bibliografia no fim do texto de Albertino Bragança não é dele, mas por lapso foi copiado do meu artigo “TENREIRO, AMADOR E OS ANGOLARES OU A REINVENÇÃO DA HISTÓRIA
    DA ILHA DE SÃO TOMÉ” (Realis. Revista de Estudos AntiUtilaristas e PosColoniais, v.2, n. 2 (2012): 21-40). É fácil verificar este erro na internet em https://periodicos.ufpe.br/revistas/realis/article/view/8764

    Aliás, em 27 de novembro passado, a Rádio Somos Todos Primos (RSTP) emitiu um programa ‘Perguntas Incômodas’ alusivo ao 100.º aniversário de Francisco José Tenreiro (1921-1963) e ao 60.º aniversário da publicação do seu livro ‘A Ilha de São Tomé’ (1961).

    Quem não tinha oportunidade de assistir a este debate em direto na internet, pode assistir a gravação-vídeo através do seguinte link:

    https://www.facebook.com/radiosomostodosprimos/videos/370272378232568/?__so__=channel_tab&__rv__=all_videos_card

    Abraços

    Gerhard Seibert

  4. Olinda BEJA

    10 de Março de 2022 at 21:58

    Querido amigo,

    gostei de (mais uma vez) ler o teu pensamento sobre o grande e sempre nosso Francisco José Tenreiro (apesar de vozes de outros planetas o quererem arrancar da terra onde nasceu e , mesmo longe, tanto amou e cantou)

    Parabéns! Aquele abraço!

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