Opinião

A Gravana e o peixe Voador Panhá

A época da Gravana que se aproxima, faz-me recordar, com muitas saudades, a minha infância em Guadalupe. Era o período de muita alegria principalmente devido as férias escolares em que dispúnhamos de mais tempo para passear, brincar, jogar a bola, ir as praias e florestas e desenvolver outras atividades lúdicas.  Outra razão não menos importante, é o facto de ser um período seco, (ausência de chuvas), que facilitava a mobilidade em todos os aspetos.

Mas hoje quero falar essencialmente da Gravana e a sua ligação com a captura do ´´voadô panhá“, (peixe voador), uma espécie muito apreciada e muito consumida nessa altura do ano em São Tomé e Príncipe.

Geralmente é a época de muito peixe, sobretudo o ´´voadô panha“, também conhecido por ´´kuá kuá“, diferente ao voador de anzol que se pesca ao longo do ano. É tradição aqui em São Tomé e Príncipe a existência de um ritual que se chama ´´Levantamento de Voador Panhá“ que em rigor, é feito nos primeiros dias do início da Gravana, ou seja, no fim do mês de maio, entre outras razões, por se tratar da época da desova da fêmea da espécie, mas que acaba por ser prejudicial ao seu controlo. Esse ritual obedece a determinada regra e quem violá-la sofrerá de uma maldição, segundo a tradição.

Contrariamente ao voador anzol, que como o próprio nome diz, é pescado com anzol, o voador panhá é apanhado, daí o nome ´´panhá“, com uma pequena rede, num processo que abordaremos mais adiante.

É um peixe muito popular aqui no Pais e nos outros tempos a quantidade era tão grande que se vendia a um preço irrisório, ao ponto de muitas vezes, ao anoitecer, quando as palaiês não conseguissem vender todo pescado, eram obrigadas a oferecer as pessoas mais carenciadas porque para alem da fumagem e secagem, não tinham outras formas de o conservar devido a inexistência de câmaras frigoríficas. 

Fumava-se normalmente ou em forma de ´´placá“ (que significa seco e duro, por essa razão, resiste mais ao tempo) e salgava-se a quantidade que podiam, porque levantava-se também outro problema que é o de espaço para guardar devido a exiguidade das humildes casas de madeira dos pescadores e palaiês. O objetivo era o aprovisionamento da maior quantidade possível do peixe salgado e fumado para a época de menos fartura.

No fim da tarde, era frequente ouvir-se por todo o lado da Vila as várias ´´palaiês“ a pregoarem ´´yá voadôo“, que significava a venda de voador panha fresco para quem estivesse interessado.

Lá em casa, o meu Pai gostava dele grelhado com casca (porque não se escama e ia direitinho para a brasa apena com sal). Limão e outros ingredientes cada um ajuntava já no seu prato, ao seu gosto. Normalmente era acompanhado com fruta-pão, banana assada ou cozida. O dia de voador era para comer até se fartar!

Tal como outros peixes, nesses últimos tempos também o voador panhá esta cada vez mais raro no Pais. Como disse, o ritual de se fazer a pesca do voador panhá apenas no início da Gravana, nos fins do mês de maio, deve-se ao facto de ser a época da desova da fêmea da espécie o que prejudica de certo modo a sua reprodução. Por essa razão, os especialistas na matéria já previam essa diminuição da quantidade do voador panhá. A situação certamente irá agravar-se se nada for feito neste sentido. O grande problema que se coloca é como conciliar o hábito ancestral de consumo desse pescado nessa altura, com a sua preservação.

O processo começa com o Levantamento do Voador Panhá, geralmente nas praias de Neves, local que tradicionalmente se pratica a captura do voador com maior intensidade. É constituída uma comissão composta por 6 pescadores mais idosos para se proceder ao ritual que consiste em selecionar dois pescadores voluntários que irão levantar o voador.

Esses dois pescadores devem dormir fora de casa durante a noite precedente permanecendo sem falar entre si até a apanha do voador. No regresso da pesca, antes mesmo de desembarcar, uma parte do peixe é atirada para a praia onde é apanhada pela Comissão que vai colocar numa árvore em frente da igreja local, solicitando a bênção de Deus para que a pescaria do ano seja farta e rentável. Outra parte será atada no portão do cemitério como uma foram de dizer aos pescadores falecidos que o ritual foi cumprido. O restante voador será distribuído gratuitamente para a população local que assiste o ritual. Desta forma, todos os pescadores das Ilhas estão autorizados a pescar o voador panhá.

A pesca do voador panhá consiste em ir ao alto mar numa canoa motorizada ou não, largar um feixe de palha de capim ou folhas de coqueiro atado num pedaço de tábua que serve como boia. A palha serve para atrair a fêmea do voador que precisava de um local sólido para depositar os seus ovos. O pescador deve esperar a distância, mais ou menos 30 minutos até que o cardume se aproxima da palha. Nessa altura, o pescador abeira-se do cardume e começa a apanha do voador com ajuda de uma pequena rede.

Ora, esse processo devia ser regulado pelas autoridades com uma intensa sensibilização e proibição de práticas que podem prejudicar o desenvolvimento da espécie. Uma dessas práticas nocivas que é utilizada pelos pescadores de forma inconsciente, penso eu, é justamente o retorno do capim usado na captura para a sua posterior reutilização, porque nele, é transportado milhares de ovos depositados na palha.

São Tomé, 23 de maio de 2023

Fernando Simão

2 Comments

2 Comments

  1. miguel lopes

    28 de Maio de 2023 at 14:28

    Uma boa narativa sobre o peixe voador .gostei

  2. Victorino André

    30 de Maio de 2023 at 9:36

    Feliz pelo esclarecimento Obrigado pela esplanação coisas que eu com 53 anos não sabia
    Se deixarmos de apanhar boa d’or panha vamos ter muito boa d’or anzol pra pescar
    Se abandonarmos o maldoto consumo do pichinho que é nascimento é crescimento de toda especie de peixes
    Terreno o nosso mar cheio de peixes adultes para à boa pescaria deu émis mas praticas que à terra é m boa

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