Análise

Leis de Valor Reforçado

Hilário Garrido, Juiz de Direito, é o autor do artigo que põe luz sobre alguns aspectos da jurisprudência Nacional.

Leis de Valor Reforçado

Ainda na esteira da nossa propensão em nos inspirarmos na legislação portuguesa ou no direito português – que não tem nada de mal, porque hoje em dia, como se costuma dizer, nada é inventado; quase  tudo é  cópia do que já existe; o que convêm é que se faça boa adaptação, porque o contrário é copy paste – temos na nossa Constituição, o conceito de lei com valor reforçado, disperso pelos artigos 147.º n.º1 al. b) e 149.º  n.º 2 al. a) da Constituição, quanto à fiscalização abstracta e concreta da constitucionalidade, sem nenhuma outra referência, nem mesmo no artigo 70.º que estabelece a tipicidade dos “Actos Normativos”, quando o artigo 115.º n.º2 da Constituição portuguesa que lhe é correspondente fá-lo especificando ou definindo melhor este conceito, dando-lhe realce tal para que determinadas leis, mesmo as ordinárias, tenham um valor reforçado.

Em Portugal, “Antes de 1989 o conceito de lei ordinária era meramente doutrinal, se bem que ancorado em sólidos dados constitucionais positivos”
Ora, se nada há na nossa Constituição, nem na doutrina, nem jurisprudência nacionais (existirão?!) como é que qualquer pessoa (para não dizer juristas), se não aqueles que conhecem este conceito, pode lidar com o mesmo. Existirão noutras legislações, doutrinas ou mesmo jurisprudências ou conceitos similares.

O que não é correcto é referir-se a um conceito de direito, de forma dispersa e aleatória sem qualquer sintonia normativa como está na nossa Constituição.

Este conceito de criação doutrinária, lançado pelo Professor Gomes Canotilho, em 1979, segundo o Professor Jorge Miranda, no seu livro “Funções, Órgãos e Actos do Estado”, p.288, designa, para o seu criador, “leis reforçadas que impõe ou pressupõem a sua não derrogabilidade por leis ordinárias posteriores”.

Nas diversas produções legislativas, temos os actos legislativos provenientes tanto dos órgãos soberania (Assembleia e Governo) como dos actos legislativos regionais (da Região Autónoma do Príncipe), actos esses que revestem a forma de LEI, DECRETO-LEI  e DECRETO LEGISLATIVO REGIONAL, respectivamente. Todos esses actos têm a mesma força de lei, pois, “A força de lei é de todos os actos legislativos – não apenas dos provenientes dos órgãos de soberania …”. “Um decreto legislativo regional está tão subordinado à Constituição como uma lei ou um decreto-lei e não pode ser afectado por nenhum regulamento, seja regional ou nacional …”. “…os estatutos político-administrativos regionais tanto condicionam os decretos legislativos regionais como as leis e os decretos-leis …” Jorge Miranda, obra citada.

A ideia de lei de valor reforçada tem a ver com a função legislativa de cada acto legislativo e tem mais aplicação nas relações entre as diferentes leis da Assembleia Nacional e tem a ver com a força que cada lei tem, consoante a sua função ou posição dentro do ordenamento jurídico. Como diz o citado autor, “Uma coisa é a força de lei no respeitante a outros actos jurídico-públicos, outra coisa a relação dos actos sob a forma de lei (e, portanto, com força de lei) entre si”.

Há que distinguir leis ordinárias comuns que são leis formais da Assembleia Nacional que não estão revestidas de nenhuma força especial – são as leis normais e leis ordinárias reforçadas que são as que, pela sua função dentro do sistema jurídico, estão dotados de uma posição de “proeminência – funcional e não hierárquica relativamente a outros actos legislativos” de tal modo que mesmo provindas da própria Assembleia Nacional não podem ser revogadas. É uma espécie de afastamento da regra geral de que leis posteriores revogam leis anteriores.

Distingue-se também leis gerais da República que são leis de aplicação em todo território nacional e leis regionais que se aplicam apenas na Região Autónoma do Príncipe.

Leis de valor reforçado são leis que se sobrepõem as outras leis, mesmo provindo do Parlamento por terem uma força formal sobre todas as leis ordinárias; são uma espécie de leis de dignidade intermédia entre a Constituição e as leis normais da República.

A única forma que a nossa Constituição se refere em lei de valor reforçado de forma indirecta (ou seja que se pode inferir numa interpretação chamada de enunciativa) é a que está prevista no n.º2 do Artigo 70.º que tipifica os Actos Normativos” do Estado, ao dizer que “As leis e os decretos leis têm igual valor, sem prejuízo da subordinação às correspondentes leis dos decretos-leis publicados no uso da autorização legislativa e dos que desenvolvam as bases gerais dos regimes jurídicos”.

Temos como lei reforça ou lei de valor reforçado, a título de exemplo:
–  leis de autorização legislativa, as quais os decretos-lei feitos sob a sua alçada devem obedecer, sob pena de ilegalidade;
– leis de base que definem os regimes jurídicos de determinadas matérias ou assuntos que se sobrepõem aos decretos de desenvolvimentos dessas matérias;
– lei das grandes opções do plano; o “Orçamento do Estado é elaborado, organizado, votado e executado de acordo com a respectiva lei de enquadramento e nos prazos nela fixados e o mesmo se diga mutatis mutandis” do orçamento da região autónoma”
– leis de enquadramento dos orçamentos do Estado e da região autónoma do Príncipe. No contexto português, “o poder das regiões autónomas de adaptar o sistema fiscal nacional às especificidades regionais exerce-se nos termos de lei-quadro da Assembleia da República (artigo 229.º n.º 1, alínea i)”;
– leis quadros em geral sobre determinada matéria;
– Estatuto político-administrativo do Príncipe;
–  a lei sobre o regime do estado de sitio e estado de emergência que vincula as respectivas declarações bem como a correspondente autorização.
Como se pode ver, nos Artigos 147.º e 149.º da nossa Constituição a que acima já me referi, a fiscalização que ali se trata é da legalidade; o Tribunal Constitucional não fiscaliza só a constitucionalidade dos actos normativos, mas também a sua legalidade; ou seja a conformidade de uma lei comum ordinária com uma lei de valor reforçado.

Uma norma de lei de orçamento que violar as grandes opções de plano pode ser declarada ilegal e expurgada do sistema ou não ser aplicado em caso de fiscalização concreta.

De igual modo qualquer norma de lei da Assembleia Nacional ou do Governo que violar o Estatuto Político-administrativo do Príncipe pode ser declarada ilegal.

Importa referir que, como prevê o sistema jurídico português, há determinadas leis que são designadas de leis orgânicas pelo valor especifico que a Constituição lhe confere e que advém também do seu processo de votação (artigo 167.º, alíneas a) e e), e 169, n.º 2). Há que não confundir com leis orgânicas vulgares que são leis que regem a organização e o funcionamento de determinadas instituições.

Sem que a Constituição dissesse algo sobre a sua importância e o seu papel no ordenamento jurídico – direi mesmo de qualquer país – há que não esquecer que o CÓDIGO CIVIL desempenha uma função determinante no sistema, nomeadamente “quanto às disposições sobre as fontes de Direito e interpretação, aplicação e vigência das leis…” etc.

De resto, não havendo nada senão a referência que a Constituição faz como acima já referi, nem na doutrina, nem na jurisprudência, e, porque, pessoalmente nunca ouvi, nem li nada sobre isso, penso que é algo ignorado. Mas, presumo que tenha sido matéria de estudo e discussão nas nossas Universidades. Quiçá alguém poderá identificar mais e melhor as leis de valor reforçado no nosso país.

Hilário Garrido

Artigo Publicado Originalmente no Jornal Kêkua, e aqui partilhado com leitores do Jornal On Line.

2 Comments

2 Comments

  1. Michelle

    13 de Janeiro de 2012 at 11:56

    O curso de direito foi feito em que Faculdade?

  2. Francisco Jorge

    4 de Julho de 2016 at 1:39

    Boa noite,

    segue de portugal e de um estudante de direito, com o devido respeito a nota de que o artigo a que correspondem os actos normativos e sua tipicidade será o 112º não o 115º.

    Cumprimentos, atenciosamente
    Francisco

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