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Factos e datas históricas

Volto ao tema porque percebi que a minha mensagem sobre a data da morte de Amador, sustentada num artigo anterior, não passou para alguns que o leram. Ao publicar o artigo no TélaNón quis suscitar a atenção (e o interesse) de todos sobre as «sombras» da nossa História e propor a sua neutralização ou, pelo menos, redução, tendo presente que a História é o principal património dum país e precisamos que este património represente isto mesmo.

Durante séculos ensinaram-nos factos e datas dos factos que hoje se sabe que são falsos ou não são sustentáveis graças a trabalhos aturados dos estudiosos de várias áreas disciplinares. Mas há ainda muito trabalho a fazer pelo que nos devemos empenhar todos, com seriedade e sentido de estado, em busca da verdade da nossa História.

Um autor que muito escreveu sobre S. Tomé e Príncipe dos séculos XV a XIX foi José Raimundo da Cunha Matos. Existem dois livros publicados em seu nome sobre S. Tomé e Príncipe. O primeiro é Corografia Histórica das Ilhas de S. Tomé e Príncipe, Ano Bom e Fernando Pó, redigido em 1815. O segundo é Compêndio Histórico das Possessões de Portugal na África, redigido em 1836. Ambos foram publicados depois da sua morte, ocorrida em 23/02/1839. Menciono estes livros porque têm sido a fonte da «barafunda» na interpretação da História de S. Tomé e Príncipe. Há mais de meio século que os académicos detetaram enormes incongruências e erros factuais nos escritos de Cunha Matos e têm chamado a atenção para a sua correção. Apenas para citar alguns exemplos, Cunha Matos (1963: 102),sem qualquer fundamento, inventou a data de 20 de Janeiro de 1517 para noticiar uma rebelião de escravos mulatos e negros, iniciada na fazenda dos Lobatos; inventou o dia 4 de Janeiro de 1596 como aquela em que Amador foi morto (Cunha Matos: 1963: 110), além disso copiou os factos dum texto que não cita o autor com imperfeições eacrescenta factos da sua imaginação. Inventou que havia na ilha de S. Tomé mais de 100 mil escravos e 3.000 brancos (Cunha Matos (1963: 143), quando se sabe que, no período áureo da economia de açúcar, a população total não excedia 15.000 almas (entre negros, mestiços e brancos).

Foi Cunha Matos quem inventou a teoria de naufrágio para justificar a presença dos negros na parte sul da ilha de S. Tomé, quando já se sabia, pelos documentos régios e religiosos, que eles eram descendentes dos escravos fujões. Atribuiu-lhes a designação de angolares porque deduziu que fossem originários de Angola quando podem ter sido originários de vários pontos de África Ocidental.

Outros ensinaram-nos que o território era riquíssimo e que através do negócio de açúcar muitos colonos europeus tinham feito fortunas no século XVI. Cerca de três séculos mais tarde, os mesmosfizeram-nos crer que a ilha de S. Tomé era riquíssima e que os colonos europeus se enriqueceram à custa da economia do cacau e acreditámos cegamente. Mas o que é assustador é que ainda hoje muitos são-tomenses, entre os quais bastantesescolarizados, acreditam naquelas fantasias. Bastaria um pequeno exercício mental para se concluir que a riqueza que tanto se falava, quando isso teve lugar, não derivou da economia de açúcar nem tão pouco da do cacau mas sim da exploração do homem africano.

Se os recursos humanos (negros) empregues tivessem sido remunerados pelos seus esforços, isto é, pelas suas produtividades marginais, nenhum colono tinha ficado rico em S. Tomé e Príncipe, simplesmente porque se trata de um pequeno território insular e isolado sem qualquer recurso natural valioso através do qual fosse possível obter uma importante renda vitalícia. Além do mais, é muito limitado em área cultivável para a exportação em larga escala. Por conseguinte, ninguém consegue tornar-seriquíssimo em S. Tomé e Príncipe, seja em que época fosse, através do exercício de uma atividade económica lícita, remunerando adequadamente os fatores produtivos concorrentes, pagando atempadamente os seus fornecedores, entre os quais a banca, devido às especificidades de pequeno Estado insular e isolado, pobre em recursos naturais valiosos.

É louvável que alguns procurem dar o seu contributo para a construção da nossa História mas não é aceitável que utilizem dados de fontes não recomendáveis para impor à sua vontade. A História não é uma «vontade», é um conhecimento. E como tal tem de ser construído com base em fontes primárias e em trabalhos dos académicos. Um tal procedimento reduz significativamente o risco do erro. Não se pode «pendurar» num texto ou livro, sobretudo tosco, para dizer que se fez reflexão quando existem imensas literaturas sobre o assunto. Errar nos factos e/ou nas datas dos factos é muito grave. Pior do que isso é insistir no erro como se isso fosse o nosso modo de vida, a nossa «normalidade». Se não formos capazes de perceber isto,então, não percebemos nada da vida, não aprendemos com os nossos erros.

Mas os erros que têm existido nesta matéria e noutras têm uma origem: os políticos, ou pelo menos uma boa parte deles, acham-se os donos do país e da razão e excluem da decisão sobre assuntos vitais o papel dos técnicos, dos académicos e dos cientistas. Põem-se de costas à ciência e à técnica e, consequentemente, ao desenvolvimento.

Armindo do Espírito Santo (Doutor em Economia e investigador do CESA/CSG/ISEG-UL)

8 Comments

8 Comments

  1. MIGBAI

    26 de Outubro de 2017 at 9:37

    Meu caro Doutor Armindo Espirito Santo.
    Adorei.
    Finalmente alguém a tocar no essencial, ou seja, de como não se deve fazer/analisar a história.
    Sublime/divinal o seu último parágrafo, onde toca na ferida.
    Mais uma vez adorei e os meus sinceros parabéns.

    • Ralph

      30 de Outubro de 2017 at 1:41

      Como dizem em inglês, não sabendo a expressão equivalente em português, história é feita por quem a escrever. Outra versão, atribuida ao ex-primeiro ministro británico Winston Churchill, é que história é escrita pelos vencedores. De qualquer modo, estas ditas dão significado ao que o autor escreveu no artigo. É verdade que são os políticos (mas não só, não esquecendo os reinos, as companhias poderosas e todos que os protegiam) que têm influenciado e, ainda mais pior, decidido o que lemos nos livros de história e o que aprendemos nas escolas. Porquê? Porque foram eles que possuiam o “conhecimento” na altura e ninguem sabiam nada ao contrário. Mas tudo se tem mudado e sabemos muito maior do que costumavamos. O autor é correto quando diz que um dever de todos nós é estar de olhos críticos ao que nos tem sido entregue como história ao longo do tempo porque a ciência e o descrobrimento estão a desvendar mais que nunca. E nos tempos atuais, a idade da internet, é cada vez mais fácil pesquisar e descobrir a verdade sobre muitíssimo mais que nalguma altura no passado. A classe política (e a igreja, agora que penso nisso) têm deixado de ser os donos de conhecimento ou os escritores de história.

  2. Nuno Miguel De Menezes

    26 de Outubro de 2017 at 15:36

    Factos e datas históricas de Hoje dia 26/10/2017

    Pessoalmente gostei do artigo, o problema cada um de nos temos o nosso ponto de vista, as pessoas nesta epoca que passaram por essa situacaoes cada um tem a sua versao do acontecimento.

    Vamos esquecer essa situacao,Factos e datas históricas,o passado como dizem os Portugueses de Portugal encontra no museu, eles tambem tem por la o Museu com as suas historias.

    Necessario ‘e ter uma infraestretura um museu com essas historias todas contadas ao Publico e com evidencias (fotografias e etc..), e um valor estipulado na Porta desde mesmo museu.

    Se Sao Tome e Principe aposta no turismo ‘e necessario fazerem Publicidades no Hotel informar aos turistas que (exemplo) apartir das 10:00am o museu se encontra aberto o custo de entrada 800libras. apenas um exemplo.

    E ca for a deste mesmo museu uma loja que vende agua e outras coisas mais, necessario ‘e ter ideias.
    A sua Profissao ‘e uma infraestretura que Sao Tome e Principe tambem necessita, obrigatoriamente visita de Estudos as criancas da escola, Liceu nacional de Sao Tome e Principe para assim os mesmos conhecer a Historia de Sao Tome e Principe.

    Necessario ‘e ter ideias um museu bem preparado com a hora de abertura de segunda a sexta feira uma funcionaria do governo de uma reparticao qualquer na caixa a receber o dinheiro da entrada do museu, 3 horas por dia ou 2 horas por dia, e a mesma regressa ao seu posto de Trabalho.

    Um pacote de turismo com essa ideia, seria (SUPER), alguem com melhor ideia do que a minha aperfessuar a mesma seria optimo.
    Tenho informacoes que isso nao existe, o que acabei de contar, nao existe cuidados ou interesses.

    Tive amigos que vieram de Sao Tome e Principe nao existe nenhuma informacoes, apenas visitaram a praia,lagoa azul, roças, e dentro do hotel e as voltas pela a cidade.

    Todas essas informacoes necessario estar em todos os Hoteis, Pensao de Sao tome e Principe.Se existe loja na cidade os mesmos nao tem conhecimento que essa loja existe e como la chegar.

    Nuno Menezes
    Lincoln,England

  3. Toussaint L'Ouverture

    26 de Outubro de 2017 at 20:36

    Também nos ensinaram (ou não ensinaram?) que a colonização inicial europeia foi feita, substancialmente,com degredados e salafrários criminosos enviados do reino. E com meninos judeus retirados aos pais por ordens de D. João, cognominado o Príncipe Perfeito, numa experiência bizarra e cruel. A maior parte não sobreviveu. Quanto aos criminosos, devem ter sobrevivido e, quem sabe (???) prosperado.

    • MIGBAI

      30 de Outubro de 2017 at 9:43

      Tem razão.
      pinto da costa e companhia foram dos que prosperaram!

  4. Luxemburg

    27 de Outubro de 2017 at 11:35

    O artigo pretende dar uma leição sobre os métodos de urgar no pasado para ter uma lectura da Historia, mais o menos acertada, mas não plantea o verdaderamente interesante: não basta com ir as fontes y leer “factos” e “datas”, é sim preciso questionar as proprias fontes, todas e não apenas umas, porque, na verdade, estas obedecem a unos valores e intereses concretos, políticos e, económicos , sociais e até de dominação de grupos. Assunto bem complexo.
    O preocupante é precisamente o ultimo parágrafo, onde afirma que: os erros que têm existido nesta materia têm origen nos políticos…que ignoram o papel dos técnicos…põem-se de costas a ciencia e ao desenvolvimento… O autor parece mais um político de eses que ele critica, coisa que sembra muita duvida sobre a sua actitude de intelectual

    • SÃOTOMENSE COM ORGULHO

      28 de Outubro de 2017 at 10:40

      Brilhante comentário! Obrigado.

  5. Minister

    31 de Outubro de 2017 at 9:50

    Ainda hoje continuamos a discutir,a nível académico de historiadores, se rei amador é apenas uma figura litetária e não uma figura histórica de história factual.Entretanto a melhor forma de provar a historicidade,seria bom recorrer a uma investigação arqueológica porque os resultados dos elementos arqueológicos provam a historicidade.Por outro lado,o que me deixa inquieto é como o autor desvaloriza o seu próprio país.

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