Opinião

A propósito do debate sobre a justiça

Por aquilo que temos tido ensejo de ler e de assistir pela imprensa, somos a deduzir que o funcionamento da máquina judiciária no espaço da CPLP deixa muito a desejar. Fazem-se críticas cerradas ao seu desempenho, sobretudo em Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe.  Brasil não fica de fora dessa aura de suspeição que paira sobre a reputação da Senhora de olhos vendados e de solenes vestes negras. Nem o sistema português, modelo para alguns dos nossos países, sai ileso dessa apreciação demolidoramente negativa. Não vamos falar da Guiné Equatorial por duas razões: a) falta de hábito de olhar para ela como membro da comunidade; b) não está ainda entrosada com os demais nesta matéria. Em relação aos outros, se tal ofício é objeto de fundados questionamentos, por que não conjugar esforços, mobilizar recursos e concertar posições, para extirpar dele o mal que o enferma? Qualquer observador atento sabe que o setor tem estado a claudicar. Ficamos com a vaga sensação de que o paradigma latino de justiça precisa de refundação ou de, pelo menos, uma profunda reformulação. Será que os seus padrões e a sua mecânica de funcionamento se encontram esgotados, para não dizer obsoletos?

Enfim, são contágios do pretenso «lastro comum». Nos últimos tempos falou-se muito do direito e da justiça, em Cabo Verde.  Aliás, a discussão é fecunda e promete continuar. O tema interessa e cativa. Justiça, este valor, este sublime ideal, esta «constante e perpétua vontade de atribuir a cada um o que é seu» (1), na soberba definição de Ulpiano, o mais renomado jurisconsulto romano. Para nós, que somos um eterno pupilo neste quesito, numa toada mais terra-a-terra e menos atado ao rigor espartano da epistemologia, diríamos que a justiça é a prudente arte de conceder ao ser humano o seu pedaço de pão, o seu bocado de manto e seu quinhão de felicidade, na proporção do seu gracioso merecimento. Porém, a justiça não é só o ato de dar ou atribuir, mas a própria perceção que se tem daquilo que é justo ou injusto. Assim, quando alguém é colocado diante de um determinado contexto, tem ele a faculdade de enxergar se há mais ou menos justiça na aplicação de certos critérios de decisão.

Pode inclusivamente chegar à conclusão que nesse ou naquele caso não houve justiça nenhuma. Referimo-nos aqui não apenas à justiça jurisdicional, mas também à justiça política, como Aristóteles lhe chamava. Portanto, a par (e não para lá) de uma justiça que é dirimida nos tribunais, a pedido das partes em disputa, urge adotar comportamentos e práticas consentâneos com a ética republicana, numa incessante busca da virtude, daquilo que é correto ou da excelência de cada conduta, nomeadamente em outras instituições, por forma a propiciar a realização desse dar político e administrativo, para evitar que tudo vá desembocar nos tribunais, sobrecarregando os magistrados com tarefas que podiam ser perfeitamente dispensáveis, havendo um compromisso com o cultivo do bom senso da parte de outros órgãos e serviços do Estado. Aliás, a propósito do atraente tema, convém, nesta sede, revisitar o conceituado teórico americano, J. RAWLS, para quem «a justiça é a virtude primeira das instituições sociais, tal como a verdade o é para o sistema do pensamento…» (2).

Por outro lado, para que haja justiça é preciso que o direito seja «reto e justo», como diria o eminente Prof. Paulo Ferreira da Cunha. Para Aristóteles, certamente o mais nitente pensador da antiguidade, em questões da ética, o direito é coisa justa, proporção/igualdade. Diz ele «justiça é esse estado de caráter que nos permite realizar as coisas justas, graças ao qual agimos imparcialmente e desejamos o que é justo» (3). Contudo, ao falarmos do direito enquanto «coisa justa», estamos ainda no plano do dever ser ou do axiológico. Infelizmente nem tudo o que é comando normativo é justo. Se o direito é aquilo que vincula, basta ter esta característica de imperatividade, para introduzir novação e provocar modificação significativa na vida das pessoas. Muitas vezes o direito estabelecido, enquanto emanação da vontade de um certo poder, não tem nada de justo nem o mínimo de ética. Fala-se então de regras jurídicas destituídas de direito, quando lhes falta genética e gritantemente aptidão para realizar a justiça, que é, no nosso humilde entender, o supremo bem comum da humanidade.

Outrossim, não poucas vezes, existem leis abundantes, que são hodiernamente a principal fonte de direito. No entanto, a justiça não se faz a um nível satisfatório. A distribuição desse «dar a cada um o seu» não chega a corresponder às legitimas expectativas dos cidadãos. Isto significa, a miude, que as leis nem sempre são feitas com a preocupação de serem aplicadas e cumpridas, de forma cabal e imparcial, isenta e sem peias, para todos os seus destinatários. O que, no fundo, seria furtar-se às suas duas características fundamentais, que são a abstração e a generalidade. Abstração no sentido de que as leis não devem visar sujeitos determinados, ou seja, o legislador não tem que ter a imagem pessoal e concreta dos sujeitos da legislação em frente aos olhos, como motivação ou inspiração das suas medidas.  Isto seria o procedimento ideal e desejável. Infelizmente, não é. Quanta lei não é produzida com escopo exclusivo de acomodar uma certa clientela? E no que respeita à perfeição das coisas, como dizem, a brincar, os nossos amigos angolanos «eh pa! Nós ainda não chegamos lá».

A descrença no funcionamento da justiça pode levar ao definhamento do sistema social no seu todo, em razão de desvios incompatíveis com o princípio democrático e o estado de direito, que têm no primado da lei o seu pilar elemental, para que se possa falar numa democracia plena e na garantia das liberdades cívicas. O respeito escrupuloso da lei é crucial para o fomento da cidadania. Caso contrário, os vícios e perversões, ainda que em pequena escala, mas em acumulando dia após dia, são meio trilho para o laxismo, o descaso, o faz-de-conta, a falta de brio e de decoro e, numa palavra, na incerteza do direito. Depois, é a normalização do torto, a ideia de que os outros não foram devidamente sindicados e responsabilizados, nós também podemos prevaricar, que nada nos acontece. Sim, porque as decisões tardias e muitas vezes iniquas, contribuem, sobremaneira, para o sentimento de discriminação, de desigualdade e, claro está, para o descredito generalizado. Até porque, tal como estabelece a Constituição e demais instrumentos jurídicos de organismos internacionais de que Cabo Verde faz parte, há essa exigência do prazo razoável para uma decisão jurisdicional. Os doutrinadores costumam dizer que uma justiça tardia é necessariamente uma má justiça.

Atualmente, devido às declarações bombásticas de alguns operadores, parece que as coisas tendem a ganhar algum dinamismo no sentido de se encontrar uma solução para o crónico problema, que é a morosidade da justiça. Algumas figuras do meio jurídico e da vida política identificaram já o «eixo do mal» de tudo isto, ou seja, a falta de inspeção da atividade dos magistrados. Pode ser uma das causas da ineficiência da máquina judiciária, mas não será a única. Não somos ingénuo a ponto de acreditar que isto possa ser, por si só, um remédio santo e definitivo para todas as incongruências e mazelas que atormentam a justiça cabo-verdiana. Apesar de reconhecer o contributo que esta faceta do nó górdio pode dar para ajudar na mitigação dos efeitos da crise, temos uma outra e diferente leitura do problema.

E podemos sintetizá-la assim: a deficiente performance dos órgãos do poder judiciário no nosso país pode ter uma explicação muito mais remota e plausível. Pensemos, por exemplo, na injustiça política e administrativa, nos abusos do poder que ocorrem com alguma frequência, quer a nível do sector público, tout court, quer a nível dos institutos públicos e do setor empresarial do Estado. Não raras vezes ouvimos comentários em como determinado diretor ou presidente de instituto, na barba cara de um pai ou mãe de família, prepotentemente cospe «eu vou correr contigo. Depois, vai ao tribunal se quiseres». E nós perguntamos: o que custa ser ponderado e encarar o exercício do cargo como um serviço e não como um palco de ajuste de contas, de caprichos pessoais de quem manda? Se o diretor ou presidente de um instituto sabe que vai perder junto do tribunal, por que razão insiste ele em humilhar o seu subordinado? Então, alguns gestores e administradores estarão a entupir os tribunais com processos que podiam ser perfeitamente evitados. Curiosamente a morosidade só favorece os ímpios e poderosos. Muitas vezes o demandante é pobre e vê o seu processo a mofar nos tribunais durante décadas e quando sai a decisão o fulano já cá não está para dar foguetes.

Para nós, a receita para a resolução de mais de cinquenta por cento desta maleita pode ser esta: deixar de lado a mania do «quero, posso e mando» e responsabilizar aqueles que pratiquem atos ilegais, mesmo sabendo da forte probabilidade da sua sucumbência junto dos tribunais. Nomeadamente fazê-los pagar dos respetivos bolsos os prejuízos decorrentes de processos a que derem origem de pura casmurrice ou «desaforo de corpo», como diria o mestre, Baltasar Lopes. Até porque alguns gestores e administradores são arrogantes e claramente mal-intencionados. Esquecendo-se que o Estado não é propriedade de ninguém e que quem lhes paga salário e demais regalias é o povo. Então, devia haver mais respeito pelas pessoas ao invés de estar a espezinhá-las. E há mais uma entorse do sistema, se quisermos ser sérios nas nossas análises: alguns advogados insidiosos arranjam chicanas, industriam testemunhas e inventam manhosamente manobras dilatórias, com o único intuito de obstaculizar o andamento normal da causa e protelar, o mais que possam, a decisão dos tribunais, inviabilizando deste modo a celeridade dos pronunciamentos.

Respeitamos as posições contrárias, mas julgamos que as soluções de um processo devem ser encontradas dentro do próprio processo e não noutro lugar, nomeadamente na imprensa. O seu desencadeamento é autónomo e auto- suficiente, no seio do qual os profissionais devem bater-se aguerridamente e zelar pelo legal e rigoroso cumprimento dos seus trâmites e de todos os incidentes que surjam durante a sua pendência. Todo o discurso, ainda que fundamentado, mas levado a efeito fora dos canais adequados, pode ter efeitos perversos, incluindo contra os próprios sujeitos que dele pretendam tirar proveito momentâneo. Paulo Ferreira da Cunha, num esforço de conjugação entre direito, justiça, sujeitos e a prática forense, não podia ser mais taxativo e contundente a esse respeito «O positivista legalista jurou fidelidade à letra – que mata -, e não retirará uma vírgula que seja a essa Torah sagrada. O causídico ardiloso, fingindo normalmente o mesmo respeito, não hesitará nos meios de obter ganho de causa. O político e o sociologista sempre se deleitarão na utopia imposta por decreto …» (4).

Se calhar precisamos de procurar aquilo que Nelson Levy denomina de pluralidade ética. E explica «é antes de tudo uma… faculdade humano- natural de desejar… por meio da qual podemos viver para…  vários sentidos de Vida Boa» (5). Por isso, como aspiramos uma vida boa, não queremos acreditar naquilo que ouvimos acerca do funcionamento da justiça. Porque, a ser verdade, é muito grave. Contudo, tal como Newton, quando instado a esmiuçar a sua teoria de queda da maçã, encolheu ombros, assumiu uma postura humilde e balbuciou corado «não sei… vou lhe chamar a lei da gravidade». Ah, pois, nós também não temos uma receita assertiva para debelar o problema identificado. Então, só nos cumpre baixar a crista e confessar «não sei, perguntem ao Demiurgo das coisas difíceis».

Domingos L. Miranda Furtado de Barros

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  1. RAWLS; Apud CORREIA, Fernando Alves; Justiça Constitucional, edições Almedina, S.A., Coimbra, 2016, pág. 19.
  2. CUNHA, Paulo Ferreira da, Para uma História Constitucional do Direito Português, Edições Almedina, S.A, Coimbra, 1995, pág. 80.
  3. CUNHA, Paulo Ferreira da; introdução à Obra Jurídica, coleção RÉS-Editora, Lda., Porto-Portugal, sem data, pág. 13.
  4. ARISTÓTELES, Ética a Nicómaco, inserto in Obra Jurídica, Coleção RÉS-Editora, Lda., Porto-Portugal, sem data, pág. 55.
  5. LEVY, Nelson; ÉTICA, obra coletiva, coordenação Adauto Novaes e José Jacinto de Amaral, Editora Schwarcz, 1ª reimpressão, São Paulo, 1992, pág. 167.
6 Comments

6 Comments

  1. C. Fonseca

    9 de Abril de 2018 at 1:05

    Boa noite,

    O dia já vai longo e eu estava já a fechar o meu computador, o trabalho está feito e tenho que me levantar cedo. No entanto, como é habitual, decidi espreitar as noticias de STP e tive a sorte de ver o seu artigo que apesar de longo, não consegui deixar de ler.

    Congratulo-me com a sua escrita. O direito não é só um punhado de legislações, decretos, portarias e regulamentos, habitualmente vistos como enfadonhos e aborrecidos. Mostrou aqui no artigo que acaba de escrever que também pode ser uma leitura muito agradável e sobre um convite à reflexão.

    Congratulo-me também pela forma como agiu no final do seu texto – como um verdadeiro académico, reconhecendo e citando aqueles que já fizeram o caminho e deixaram a sua contribuição.

    Cumprimentos académicos,

    C. Fonseca

  2. Domingos de Barros

    9 de Abril de 2018 at 15:30

    Agrademos a leitura do artigo e retribuímos os cumprimentos
    e felicitações que nos chegaram da parte do comentador C. Fonseca.

    Com as nossas cordiais e fraternais saudações

  3. Puto António

    9 de Abril de 2018 at 18:44

    Apraz-me ver que está contribuindo para o bem das nossas sociedades, na sua área de conhecimento, é importante que de facto as nossas justiças sejam elas justas, para que no futuro possamos também ter sociedades justas. Bem haja Camarada!

  4. Dois pesos e duas medidas

    10 de Abril de 2018 at 0:09

    Desenganen-se os que pensam que a reforma da justiça resolverá per si todos os problemas da justiça. Insofismávelmente, a justiça é e continuará sempre a ser a “lei do mais forte”. Tem duvidas acerca deste adágio, pergunte ao ex-presidente lula, ou saia da sua zona de conforto e tente entender porquê, existem tantos colarinhos brancos a solta…

    • João Baptista

      10 de Abril de 2018 at 17:49

      Bem, no caso do presidente Lula da Silva, não temos a certeza que a justiça tenha aplicado a “lei do mais forte”, a não ser que esse mais forte esteja precisamente do lado dos reaccionários da direita brasileira. Se assim for o entendimento do comentador “Dois pesos e duas medidas”, então podemos estar de acordo consigo. No caso vertente, não nos parece que a lei do mais forte tenha funcionado nem que tenha deixado de fora os de colarinho branco. Contudo, entendemos a sua piada. Pois, deve ter reparado que este processo tem o seu quê de muito estranho.

  5. Dois pesos e duas medidas

    11 de Abril de 2018 at 2:34

    João Baptista concordo e subscrevo o seu ponto de vista. Grande visão para um assunto tão controverso.

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