Opinião

A quadra da Páscoa nas ilhas e na memória

Um artigo da poetisa Conceição Lima, que nas vestes de jornalista assina os seus textos com o nome, São de Deus Lima. 

A quadra da Páscoa nas ilhas e na memória

Em São Tomé e Príncipe, segundo a tradição, Cristo ressuscitou ao meio-dia de hoje, sábado, por isso chamado ”sábadu luliá/sábado de aleluia.”

Em tempos idos, exactamente a essa hora, meio-dia, desencantavam-se todos os instrumentos capazes de produzir os sons mais fortes, retumbantes e ressonantes, para celebrar a ressurreição. Eram os paus dos pilões ressoando nas paredes das casas de madeira, eram os ruídos de panelas e suas tampas, eram assobios e gritos e eram reverberantes ”Kidalê ô, luliá chigá za ê!” Era um clima de alvoroço e de exultação total. E era o ritual do Nhamunhango, em que Judas era, simbolicamente, pisado e demolido, com a máxima força, em pilões. ”Bamu dumú Zuda/ Nhamunhango!/Zuda sê vlegonha/ Nhamunhango!/ Ku bêndê Clixto tomá djêlo/ Nhamunhango ê! /// Vamos esmagar o Judas/ O Judas desavergonhado/ Que vendeu Cristo por dinheiro.”

Era, também, e talvez ainda seja, para alguns, o fim de uma semana de abstinência total no consumo de carnes. E o início da preparação do grande banquete de domingo de Páscoa, onde, agora sim, todas as carnes e todas as iguarias e manjares compunham fartas mesas, para serem degustadas com grande alegria e até, lembro-me, alguma gula.

Para as crianças, a quadra também tinha o seu significado especial. A sexta-feira santa era, para elas, um dia de absolutamente garantida paz, sossego total, sagrado. Estando Jesus morto, era proibido castigar as crianças por muito mal que se comportassem, por muito graves que fossem as travessuras, traquinices ou transgressões. Quanto muito, os mais velhos limitavam-se a fazer-lhes uma ”kinga” em voz baixa: ” Guadá bô.” Por outras palavras, ”O que é teu está para vir”. Mas mesmo isso era muito raro. A paz total e garantida, a paz intocável, terminava, em princípio pelo menos, ao meio-dia de sábado, embora, verdade seja dita, a alegria da ressurreição não apelasse a castigos e grandes repreensões da criançada. Tudo recomeçava na segunda-feira pós – Páscoa.

Na sexta-feira santa também não se podia cozinhar, não se podia sequer atear o fogo, não se varria a casa, não se varria o quintal.

Não se podia falar alto, ouvíamos os mais velhos e as mais velhas, sobretudo estas, sussurrando pelos cantos da casa e no quintal. Todas as tarefas domésticas, incluindo a preparação das refeições, eram feitas na véspera. Lembram-se?

E, para terminar, não sei se alguém partilhou essa sensação. Quando eu era pequena, na sexta-feira santa, parecia que até a natureza ficava melancólica, que os ramos e as folhas das árvores não se mexiam, não havia vento, nem brisa. Hoje, as árvores mexem-se alegremente, o vento faz dançar os seus cabelos. Se calhar, eram os meus olhos que viam a natureza através do profundo recolhimento dos adultos, em estado de luto pela morte de Cristo.

Fragmentos de ontem, de anteontem, de dias, horas e instantes de outrora. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Mudam, transmutam ou se metamorfoseiam os rituais, os usos, os costumes, as formas de exteriorização da religiosidade, a cultura nas suas diversas, múltiplas expressões. Possa a memória ser repositório e guardiã, para que o conhecimento da trajectória das marcas identitárias, para que o conhecimento do nosso passado não seja sonegado às presentes e vindouras gerações. Em ‘’1984’’, diz George Orwell que ‘’Quem controla o passado, controla o presente. Quem controla o passado, controla o futuro.’’ Que o nosso passado não seja, não venha a ser, por nossa tão grande culpa e responsabilidade, névoa, fumo e nada.

São de Deus Lima

Páscoa feliz!

9 Comments

9 Comments

  1. Albertino Bragança

    5 de Abril de 2021 at 15:15

    Ao ler esta crónica, onde a configuração literária e cultural assume foros de excelência, fazendo transportar inevitavelmente para o passado os que, como eu, viveram em plenitude o tempo nela descrito, senti-me embalado pela forma emocionante e exaustiva como a minha amiga São Lima – uma poetisa a merecer os maiores encómios, caso vivesse num país predisposto a homenagear, em vida, os fautores da cultura – abordou, como somente ela sabe,o cerimonial dedicado à abençoada Páscoa.
    A descrença da sociedae santomense nas mensagens propagadas pelos escritores e demais membros do colectivo cultural faz com que me atenha ao poeta Zetho Cunha Gonçalves, autor para quem ” a escrita será a amnésia criadora,o pulso animal/Momento de mil sabores/e, nesta mão, a contenção do ar.
    Associo-me, pois, à arte e à intenção demonstradas pela autora de recorrer ao estilo discursivo da sua realização estética para trazer ao vivo as manifestações então vividas pelos cristãos, quase que na sua íntegra dedicadas à paz, ao entendimento forjado entre os rivais, em suma, o lote de atitudes que marcavam a nossa identidade e familiaridade de outrora.

  2. Matilde

    6 de Abril de 2021 at 0:16

    Quero felicitar a poetisa Conceição Lima e o primeiro comentador do seu texto, Albertino Bragança, pelo rigor da sua escrita em língua Portuguesa.

    É uma pena que, hoje em dia, a maioria dos jovens Santomenses não saibam escrever assim com este rigor.

  3. Victorino Andre

    6 de Abril de 2021 at 9:37

    Agora
    Tudo isso é vivido pela fé
    Antes era a tradição
    Mas Deus quero os verdadeiro adoradores para o adorar em espirito e em verdade
    Pois agora dentro do coraçao a morte e a resureição devem ser intenso todos os dias

  4. Vanda

    6 de Abril de 2021 at 12:12

    Obrigado, São, Conceição Lima, por ajudar, com este belo e vívido texto, a ressuscitar a memória e as memórias dos são-tomenses. Um bem-haja, amiga. Obrigado, Albertino Bragança, pelo seu comentário.

  5. Adonis

    6 de Abril de 2021 at 12:28

    Amigo Vitorino André, acha que há incompatibilidade entre tradição e fé? Acha que os rituais dos são-tomenses naqueles tempos não estavam impregnados de fé? Em todo o mundo há pessoas que jejuam hoje em certas quadras religiosas, como os são-tomenses faziam naquela época. Fé ou tradição? E se daqui a 50 anos o ritual da hóstia for substituído por outro diferente? Passará a ser entendido como ”tradição”? Deixará de ter sido manifestação de fé? As missas deixaram de ser rezadas em latim. Era tradição sem fé? Tenha um santo dia.

  6. C. Júnior

    6 de Abril de 2021 at 13:13

    Saudações, Conceição Lima, sempre brilhante.
    Já sentia falta de um texto que me devolvesse às Ilhas.
    Muito agradecido.
    Caetano

  7. Cavja

    7 de Abril de 2021 at 3:10

    Caríssima São Lima,

    O seu texto, que merece ser degustado, saboriando palavra por palava,reflete a chama viva no imaginário e no coração de muitos Filhos da Terra. Somente àqueles que viveram os diversos aspectos dos momentos únicos, descritos por si com excepcional altivez, conseguem recordar, valorizar e sentir, como se fosse hoje!
    É reconfortante saber que, no meio de tantas incertezas e falta de esperança, alguém nos alerta para os nossos valores, a nossa cultura e as nossas raíses…


    Cavja

  8. Heleno Mendes

    7 de Abril de 2021 at 5:36

    Nostalgico, e brilhante!

  9. Sossegado

    7 de Abril de 2021 at 10:16

    O Adonis esqueceu-se de perguntar ao Vitorino Andre se a prática antiga dos dízimos e ofertas, pagos muitas vezes por sinceros crentes e devotos para encher, não poucas vezes, o bojo de um certo clero, era tradição ou fé. Esqueceu-se de perguntar se o facto de as hóstias serem hoje depositadas nas mãos dos fiéis e não nas bocas, como era sacramental antigamente, representa uma diminuição da fé ou se foi a tradição que mudou. Se os fiéis que se arrastam penosamente, muitas vezes de joelhos, durante quilómetros, para Fátima ou Santiago de Compostela, são ”apenas” herdeiros de uma tradição ou se são, igualmente, convictos praticantes da sua fé. Paz e harmonia.

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