Opinião

O Tempo do Imprevisível: regressão ou custo da democracia?

Torna-se ensurdecedor e difícil enumerar os choques que afectaram a sociedade são-tomense, relativamente à nossa economia, pois não se consegue conciliar os imperativos contraditórios do crescimento e da estabilidade financeira causada pelos grosseiros desmandos políticos face às questões fundamentais, do essencial, da exactidão, do cientificamente correcto e dos princípios universalmente reconhecidos.

Refiro-me ao Orçamento Geral do Estado 2015 e ao futuro de São Tomé e Principe. E, consequentemente, o tempo do imprevisível ou de uma possível regressão; pois se alguém não compreende a nossa cultura, custar-nos-á muito a nossa democracia.

Confesso ter dificuldades em compreender a democraticidade e as previsões insertas no recentemente aprovado OGE de São Tomé e Príncipe. Não é simples escrever sobre o assunto, e menos ainda sobre a história imediata. Apenas algumas observações e reflexão…

As intensas e profundas reflexões surgidas após o desencadear da solene, simples e curta discussão (deve ser obrigatória, com a presença do Primeiro-ministro, cuja opinião partilho…) do OGE foram provocantes, chocantes e vergonhosa (opinião generalizada), a forma como se discerniu importante actividade deixada aos nossos olhos na magna casa parlamentar – crise da governação! – permitindo decantar os problemas em questão. Por um lado, a opção entre dois riscos económicos – o da tábua rasa e o da transformação comedida para evitar uma implosão; por outro a eterna corrida de velocidade entre democratização política e económica.

Uma primeira constatação se impõe: – a democracia não é necessariamente uma boa professora de economia. Assim, a vitória dos detentores da governação nas eleições de Outubro 2014 foi interpretada como o toque de finados do urgente consumismo político e a primeira etapa no sentido da formação de um mercado meramente partidário e único, dirigida ao futuro embate eleitoral de 2016, sublinha-se.

Na prática a aplicação do plano de austeridade de recursos humanos na administração pública elaborada e orquestrada pelo partido vencedor só foi possível devido à benevolência dos menos educados políticos, trocando a paz social pelo monopólio político. As presentes e futuras possíveis privatizações (enumeradas e a enumerar) e a baixa evidente do nível de vida dos cidadãos surgem pois como um mínimo para escapar a falência e não como a transformação em profundidade de uma economia ainda estatizada em mais de 85%.

É demasiado para os são-tomenses, que brevemente, plebiscitarão Doutor Manuel Pinto da Costa e um desconhecido, nas próximas eleições de 2016. A legitimidade histórica e o carisma de Pinto da Costa conferem segurança aos cidadãos quanto ao seu estatuto de “ melhor classe “ em política; o sucesso de qualquer outro candidato materializaria um sonho a meio gás, apesar de serem de intrigas algumas zonas pouco claras do percurso de Pinto da Costa, no seio do MLSTP.

Coibido entre dois próximos Presidentes da República em 2016, Pinto da Costa (prestigioso alumni der Umboldt Universität zu Berlin) parece dar a mão aos políticos nacionais, no seu habitual e pedagógico discurso comemorativo de 1º de Maio, promovendo a garante de uma liberdade política que os são-tomenses imaginam tanto maior quanto mais forte se anunciam doentias regras e flageladoras restrições económicas de punição através de proibição de acessos dos adversários à administração pública nacional.

Julgo essencial e urgente relançar o debate sobre a eficácia do desmoronamento das estruturas da nossa função pública sob uma contínua suspeição e de afincada marginalização de um número crescente de indivíduos que, segundo se advinha, incita ao resfriamento do processo de reformas, com o receio de se dissolver o consenso criado em torno do actual Presidente Pinto da Costa.

A expressão “saneamento lento” vem contrariando os princípios sacrossantos da administração pública são-tomense desde o colonialismo até aos dias de hoje. E tudo isso diz muito sobre a decepção das expectativas da população. A tomada de consciência deste desfasamento representa pesado risco, já que incita os dirigentes políticos a antecipar os progressos económicos e a propor faseamento tão espectaculares quanto realistas!

A famosa monótona aprovação, sem aprofundada discussão do OGE pelos deputados da Assembleia Nacional é um crasso exemplo destas pseudoterapias dos conselheiros do Primeiro-ministro; salvo a excepção do meu antigo professor Agapito Mendes. Toda a gente sabe que no plano orçamental é inaplicável, inconstitucional, inadequado e antidemocrático – só em São Tomé e Príncipe -, pois, perante o descalabro do sistema produtivo são-tomense: um país em que todos os meses se cria menos riqueza e onde o desemprego é calamidade, a tentação do “ salve-se quem puder” é inevitável.

Os efeitos das declarações públicas de alguns dirigentes são-tomenses apresentam duas consequências temíveis. Ameaçar cidadãos com uma purga é correr o risco de uma explosão social, acompanhada por uma desagregação nacional, tanto mais o Estado não dispõe do mínimo de autoridade e de confiança. Decretar a economia de mercado num país sem homens nem cultura para a aplicar, sob pretexto da democratização e dubaismo, assume carácter de um simples voto piedoso.

Lembrem-se, caros leitores, na Polónia, dita situação conduziu o governo de Jan Bielecki a recorrer à chantagem democrática para colocar em cheque a censura dos ex-comunistas e impor a austeridade à uma população que viu o desemprego ascender a 10% da população activa. As estratégias intermediárias adoptadas baseavam-se na confiança em que as inevitáveis contingências poderão ser dominadas e em que os países parceiros apoiariam um compromisso que excluísse simultaneamente um plano Marshall e uma polícia de tábua rasa.

Ora, o laço implícito entre a democratização e “sangue novo“ é obviamente evidente para a opinião pública, essencialmente sensível às dificuldades quotidianas. As condições de um ciclo vicioso parecem estar reunidas: 1. As imposições económicas levam à gesticulação política, quer se trata de “radicalização” das reformas ou de endurecimento, até à “mascra pandê” ou seja, caricatura representada pelos abandonados. 2. A votação a favor ou viabilizada do OGE pelos Partidos da oposição implica – para o eleitor – a implosão do sistema económico, uma vez que pretende pelos vistos propagar a ideia de existência de correspondência entre vitórias democráticas e avanços económicos.

Ora, nem as eleições de Outubro de 2014, nem as próximas Presidenciais de 2016, conduzirão a tal marco. Parece-me que se programa uma transição segundo um hipotético calendário eleitoral bem definido. 3. A frustração alimenta-se das hesitações dos dirigentes, da sociedade civil, das resistências diversas (por culpa própria do partido vencedor das últimas eleições, infelizmente!) e da decepção das multidões, pois nessa altura todos os males e flagelos parecem renascer das cinzas. Deste modo, a situação dos antigos combatentes, a compensação inédita dos secretas do Estado, a dose felina da nacionalidade, fazem-me recordar a frase de Thomas Jefferson, popularizada num filme de grande audiência, intitulado “Se as pessoas não querem a democracia, nós faremos com que a engulam à força”.  

Ora vejamos, caros leitores. A verdade que se pensa, a verdade que se sente, desde que necessária, oportuna e útil, devem expressar sem máscara e em coerência. Pela minha pequenez e humildade, vivo como vós, inquietante à obscura realidade – no vendaval dos ódios e das paixões exacerbadas de uma redenção falsamente apregoada.

Escrevo os vossos sentimentos: -diz-se da imensurável sede de poder do mentiroso cinzentismo político, avassalador das instituições e das consciências, enroupado de capa de democracia, escondendo propósitos funestos e degradantes, no entretanto, proclama-se defensor das liberdades cívicas dos cidadãos. E é ridículo estampar-se de gigante e líder sobre a picaresca lenda de “o homem que sabe o que quer para o país”. Por este andar, só demonstra, sem dúvidas, que não sabe o que o País quer, em contraposição ao real e ao concreto do Povo, do Estado e da Nação.

O desfasamento entre os que concebem e os que executam chegou a tal ponto que provoca simultaneamente desinteresse, recusa e sentimento de asfixia perante o peso do sistema. Os princípios hierárquicos da administração pública, colocados em patamar de lama – controverso – e próprios de sistema partidários autocráticos são postos em causa porque implicam um distanciamento dos subordinados experientes, entendido como insuportável, quando a máquina esvazia o trabalho de qualquer sentido.

É sobretudo lenta e continua a ser apanágio das decisões centralizadas. Finalmente, não se esqueçam que o trabalho baseia-se num desejo de realização pessoal e colectiva que podem ser interpretadas de formas contraditórias. Para muitos quadros superiores e técnicos da administração central e camarárias do Estado, as fronteiras entre a vida privada e pública foram abolidas, ou seja, a sua sociabilidade organiza-se em labirintos político-partidários, o contrario daquilo que a Newsweek denomina de “ colarinhos riscados”.

De forma mais tranquilizadora, mas igualmente problemática, a desvalorização do político favorece a emergência e a expansão de correntes ideológicas. Pessoalmente, e por experiencias próprias, tranquilizo-me por considerar os partidos políticos MLSTP como histórico e o PCD como corrente compósita, que concilia a conversão de um militância revolucionária provenientes das portas do Berlim ocidental. Acredito que ambos partidos são reflexos conservadores da são-tomensidade, algumas vezes ambíguas, que se alimentam de quando em vez, da forma arcaica da angústia que se lhes apoderam por ocasião de cada grande crise ou derrotas eleitorais.

Mas também afirmam igualmente o carácter decididamente moderno, prospectivos, ou mesmo de um certo excesso de zelo em ditar as suas soluções ao conjunto de problemas colocados à sociedade são-tomense. Finalmente, oscilam correntes contraditórias internas (reina democracia…) com propósitos e similitudes entre o gosto de marginalidade e uma aspiração legítima à gestão dos negócios públicos – desde a inocente moda retro até a reivindicação mais ideológica de status quo alternativo.

É inútil dissimular o sucesso e capacidades intelectuais; o look suplanta o chique porque tem o charme do efémero e a sedução da democracia. Mas o progresso é inquietante pela sua violência e pelas recomposições que desencadeia, pois os níveis atingidos sugerem uma ruptura cultural em consequência da vida laboriosa que deixou de impor o seu domínio à existência.

Já não é necessário ter um futuro profissional para legitimar aspirações, sobretudo se experimenta a sensação de viver num mundo dinamitado de desagradável percepção, falsidades e ambições desmedidas, e que não realiza o ideal humano de progresso, a dimensão histórica nem a sustentabilidade da saúde cultural, económica e financeira de São Tomé e Príncipe.

A pausa é um momento de hesitação, de reflexão, em que todas as estratégias são concebíveis, ao contrário de pensamentos e ideais radicais ou xenófobos. Com efeito, ela é interpretada como uma ameaça ao clientelismo e populismo políticos habituais, às quais a intervenção dos poderes públicos não bastaria de conjurar.

Resta, apenas, o que é importante, qualificar este conhecimento.

Trindade, Maio de 2015.

Júlio Neto

 

 

 

1 Comment

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  1. José Jordão

    26 de Maio de 2015 at 10:08

    Excelente, de enorme profundideza reflexiva. Os meus parabéns, senhor Júlio Neto, por este sapiencioso artigo de opinião.
    A falta de debates da interpelação ao governo são um exemplo claro deste dissenso retartado no seu artigo. A discussão do OGE constitui um momento privilegiado de avaliação do debate, em que se reforça a justeza das próprias ideias e acções do governo, por oposição ao ‘descalabro’ da acção e ideias do adversário.
    E é verdade que, lendo seu artigo, aquela incidência do pensamento filosófico sobre a vida quotidiana salta à vista.
    O papel da contingência, da incerteza e do risco na vida política é revelado de uma forma que ilumina o que se vê no quotidiano, auxiliando-nos numa visão ao mesmo tempo mais distinta, mais nítida, e mais próximo, menos asfixiada, da realidade. A discussão dos mecanismos através dos quais a soberania deve ser concebida em estreita relação com a ideia de representação diz-nos muito sobre o modo mais geral como o Estado pode, e deve ainda, ser pensado. E a complexidade da reflexão do autor sobre a democracia permite fazer sentido daquilo que, reivindicando-se dela, simultaneamente a estrutura e a ameaça.
    Mostra-nos, no fundamental, se quisermos fazer algum sentido das suas múltiplas experiências. E, por conseguinte, um sentido que não seja uma mera alucinação passional de uma crença política.
    Aconselho vivamente, os quadros dirigentes partidários, a leitura deste artigo, pois mostra como a racionalidade política – mesmo nem sempre consegue verdadeiramente escapar ao domínio do passional – a vida política é estruturalmente passional –, pode, no entanto, almejar a uma inteligibilidade que, de certo modo, nos permite uma compreensão que vai além do estritamente politico.
    E a grande abertura e conhecimento do auitor sobre a realidade social e economica do país protege-nos da facilidade das indignações políticas e do retórico que fatalmente as acompanha; impede-nos de levarmos muito a sério a quase totalidade dos discursos políticos de alguns titulares que nos acompanham diariamente. Ou seja, de outra forma, não nos impede de levarmos à letra o contextos actuais da nossa governação e convida-nos a traduzi-los, por difícil ou improvavelmente satisfatório que o exercício pareça, nas questões fundamentais que se repetem.
    Escreva sempre, que São Tomé e Príncipe lhe agradece.

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