Cultura

No Lugar da Oração de SAPIÊNCIA

É uma intervenção que marcou a abertura do Fórum Nacional da Cultura. Frederico Gustavo dos Anjos, é o autor da intervenção, que toca profundo na alma são-tomense, despertando-a para a vida.

NO LUGAR DA ORAÇÃO DE SAPIÊNCIA

NA ABERTURA DO 1.º FÓRUM NACIONAL DA CULTURA 

Sua Excelência, Senhor Presidente da República,

Excelentíssimo Senhor Ministro da Educação, Cultura e Formação,

Excelências,

Distintos Convidados,

Digníssimos Representantes da Cultura Nacional,

Minhas Senhoras e Meus Senhores.

Só o meu próprio sentimento de desconforto face à realidade cultural do país e o respeito que tenho pelos companheiros com quem tenho partilhado as preocupações que se relacionam com a cultura nacional me impediram de recusar o convite para tecer essas considerações, por ocasião da abertura deste que pretende ser o 1.º Fórum Nacional da Cultura. Julgariam inconsistente, até mesmo traiçoeira, a minha atitude, habituados que estamos a reclamar o andamento das coisas da cultura, mesmo sem uma orientação específica que pudesse dar lugar a iniciativas culturais mais ambiciosas, mais ousadas do que as que ainda têm merecido alguma atenção nos espaços da nossa convivência.

Ainda assim aceitei o convite, pese embora as minhas reservas, pensando se essa tarefa não deveria ter sido reservada a uma pessoa mais conhecedora, mais experiente, cujo percurso não levantariam eventuais suspeições, nem dariam lugar a especulações desajustadas, estivéssemos ou não de acordo com as suas eventuais incursões em matéria de cultura que nos são tão caras.

Invadiu-me, então, uma profunda saudade da nossa amiga, a saudosa Alda Espírito Santo, que se aqui estivesse connosco – não tenho dúvidas! – arrebataria essa excelentíssima audiência, emproando-se ainda, modesta e serenamente, em defesa da nossa cultura, da nossa identidade. Paz à sua alma!

Enfim, é também em sua homenagem o meu esforço de participação e a ela dedico a leitura dessa minha modesta contribuição.

Queiram, Vossas Excelências, permitir, que ela não seja política, nem tão pouco diplomática, mas tão-somente a expressão de uma forma de sentir e pensar e partilhar sobre a cultura do nosso País.

À partida, a realização do Fórum Nacional da Cultura, indicado como o primeiro, expõe implicitamente um conjunto de promessas, já que, pelo facto de se sugerir como o primeiro, aponta necessariamente para a intenção de edições futuras. Essa sugestão, associo-a a um entendimento da cultura dinâmica, em cujos espaços se disputem fenómenos de adaptação e readaptações sucessivas aos novos contextos com novas realidades.

Excelências,

Minhas Senhoras e Meus Senhores,

Esquecemos que é sobre o nosso território que passa a Linha do Equador, aliás, uma referência importante de dar permanentemente a conhecer, mas para cujo acesso, hoje, quase temos que pedir licença prévia; não enquadramos devidamente o Jardim Botânico da Empresa Agostinho Neto; vemos transformarem-se em ruínas as casas das roças, de configurações arquitectónicas e simbólicas de um tempo que a história se encarregará de nos fazer lembrar; assistimos mudos ao fenecimento lento do Socopé, da Ússua; não transmitimos os significados do Mén Lofí, Santo D’Áua, Pagá Dêvê, Kotá Bambí, Sété Páçu , Pló Mon Dêçu…

Ó mores, ó tempora!

Bons tempos, outros tempos!

Não respeitamos os “mais velhos”; desistimos das sóias e do bligá; desprestigiamos surdos as línguas nacionais; kudurizamos os nossos espaços de festa; capoeirizamos a cerimónia oficial dos festejos da Independência Nacional; permitimos impávido e sereno o acantonamento da Fortaleza S. Jerónimo, que data de MDXXX; deixamos cair ao som do marulhar das ondas o que restou do Club Náutico; consentimos em nome de não-sei-que-interesse o deslocamento do padrão de referência em Fernão Dias; não registamos os nossos filhos; alinhamo-nos em campanhas de solidariedade ”cu inem ninguê cu fomi scá matá”, e não somos capazes de nos solidarizarmos internamente; pedinchamos miseravelmente a ajuda da comunidade internacional, mas não somos consequentes com as nossas próprias estratégias de redução da pobreza; não transmitimos aos nossos filhos o que herdamos dos nossos avós.

Empobrecemos. Porque não evoluímos a partir das nossas raízes.

Trago-vos a mágoa de querer ser o que não se pode ser, quando a cultura não é pensada a partir das suas raízes.

Catapultou-nos a história como fôrros, angolares e moncós – assim nos chamaram, não se pode negar -, santomenses, portanto. E colocou em paralelo – não importa agora com que estatutos – os portugueses, os cabo-verdianos, os angolanos, os moçambicanos, outros ainda… e, por causa disso mesmo, somos muitas vezes ainda pronunciados como “manta de retalhos”, como se os dias não tivessem contado; como se não nos tivéssemos ajeitado num corpo que se diferenciou das diferenças que o compôs; como se não tivéssemos inventado o Txilolí a partir da Tragédia do Marquês de Mântua e do Imperador Carloto Magno; como se não tivéssemos (re) criado as línguas nacionais através das quais se manifesta o pensamento e a visão do mundo (basta estarmos atentos à forma como vêm interferindo no uso quotidiano que fazemos da língua oficial); como se não tivéssemos com consistência e persistência sustentado a regularidade do São Lourenço, como é conhecida a representação do Auto de Floripes na Ilha do Príncipe…; como se não fosse por via dessa diferença que diferentemente reivindicamos o 12 de Julho e nos impusemos o nosso hino e a nossa bandeira, soberanamente assumimos o 30 de Setembro com todas as suas consequências, …

Queixem-se das nossas fraquezas e insuficiências. Costumo pensar: o pequeno não é anão, o anão é que é pequeno.

Nessa matéria, estou convencido, é preciso que saibamos diferenciar a morte natural do suicídio. Não precisamos de nos suicidar.

Minhas Senhores e Meus Senhores,

Confesso que é nessa dimensão que enquadro a preocupação do Ministério da Educação, Cultura e Formação, segundo a qual “em S. Tomé e Príncipe regista-se uma crise de valores com acentuada degradação do património, descaracterizando a realidade santomense” e que motivou a realização deste Fórum com o objectivo de “analisar a problemática cultural e propor subsídios para a definição de políticas de promoção cultural e de defesa da identidade nacional”.

É certo que em todas as gerações nos quatro cantos do mundo não faltarão vozes saudosas recordando que “no nosso tempo não era assim”.

O que importa, porém, é sabermos como é que é hoje, quem somos hoje que queremos “subsídios para a definição de políticas de promoção cultural e de defesa da identidade nacional”.

A esse propósito, perdoem-me inferir que, no meio das reclamações e insinuações em torno dos problemas que perturbam a consolidação da identidade nacional, é quase que inocentemente que preferimos escudarmo-nos nas influências e efeitos da globalização, como se tratasse de uma fatalidade a que nos entregamos sem possibilidades de qualquer reacção, ou nos remetemos às mensagens do silêncio não querendo correr o risco de se comprometer.

Todavia, mesmo assumindo alguns dos muitos discursos que veiculam como estamos todos cerceados pelo fenómeno da globalização, que sem ser novo vem-se mostrando pelo transporte de conteúdos e valores (para dentro), para espaços internos de convivialidade, por uma lado, e, por outro, motivando espaços de (des) motivação e (des) interesse pelo processo de recuperação de elementos que sustentam a identidade cultural dos santomenses, mesmo assumindo alguns desses discursos, creio não ser impossível contrariar a globalização que se nos oferece, significando criar anti-corpus, diria, anti-globalização no que tem de nefasto e pernicioso.

Continuo crente numa perspectiva que permita conciliar as expectativas que resultam das possibilidades e das oportunidades que a própria globalização representa; significa que, ao aceitar a coerência dos nossos propósitos, devamos também assumir o desafio de procurar e propor políticas públicas de cultura que tenham em consideração os espaços de afirmação cultural e os modos de relação com os bens culturais, sem perder de vista a necessidade de melhorar e generalizar o acesso aos bens culturais.

Com esse propósito, estamos em crer que importa sobremaneira que a cultura seja repensada numa perspectiva de abordagem não limitada ao seu universo específico, senão nas suas interacções com as demais áreas em que incidem as políticas públicas, implicando assim um desafio de intersectorialidade, implicando assim responsabilidades partilhadas e esforços conjugados para o alcance de objectivos comuns de desenvolvimento. Já estamos habituados a falar dos sectores da Comunicação Social e do Turismo e dos poucos agentes e promotores de iniciativas culturais conhecidos no nosso meio, mas esse desafio deve envolver igualmente, os mais diversos actores, quer da parte do Estado, incluindo Organismos da Administração Central, da Região Autónoma do Príncipe e dos Distritos, quer da parte das Instituições Privadas e das Organizações Não Governamentais e da Sociedade Civil organizada, de forma a garantir a eficácia e a eficiência de projectos e programas que, contribuindo todos para o desenvolvimento cultural, não percam de vista as especificidades e a diversidade das produções e manifestações, e os conhecimentos e prácticas nas nossas relações com o mundo.

Estaríamos então a falar de um processo de diálogo permanente para facilitar a negociação e interacção entre os diversos actores culturais.

Mas face as fraquezas e ameaças que se podem constatar na área da cultura, não justificará a existência de um pelouro próprio ao nível da Administração Central capaz de absorver as preocupações do sector e gerir as necessidades de articulação com todas as outras áreas?

Regozijemo-nos francamente com a realização deste 1.º Fórum Nacional da Cultura, mas não nos fique a vaidade da sua inauguração.

Registamos com satisfação a realização de uma iniciativa feliz, aproveitando a oportunidade que se revelou favorável à sua concretização e fazemos votos sinceros de reprodução de oportunidades para a reprodução de iniciativas culturais.

O terreno de desafios culturais em S. Tomé e Príncipe tem-se revelado particularmente sinuoso e escorregadio, apesar das vontades dos fazedores da cultura no país –

A União Nacional de Escritores e Artistas Santomenses (UNEAS) só foi respirando ainda enquanto Alda Espírito Santo esteve fisicamente presente.

A Casa da Cultura de S. Tomé, o elefante branco cobiçado, enfrenta problemas de financiamento para as actividades programadas.

Iniciativas como:

  • A criação de um Centro de Estudos para o Desenvolvimento (criado por Decreto Governamental);
  • A institucionalização do Prémio Literário Francisco José Tenreiro (também criado por Decreto);
  • A promoção anual da Gravana musical;
  • Concursos musicais nacionais e distritais;

para só citar algumas delas, foram aparentemente sem razão ficando pelo caminho do esquecimento.

Antes de terminar, permitam que partilhe convosco que é também neste contexto que

“Anima-me ainda

poder prever o amanhã

porque tive um ontem

de que não gostei.” 

Muito obrigado pela Vossa atenção.

2 Comments

2 Comments

  1. ESMERALDA

    23 de Novembro de 2011 at 15:26

    APESAR DE SER CANSATIVO LÊR TUDO ISSO, MAS É BOM SINAL. VIVA STP.

  2. eu

    23 de Novembro de 2011 at 15:33

    E ainda dizemos que não temos gente capaz.
    Grande intervenção!
    Que a implementemos no nosso dia-a-dia!

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