Opinião

Autonomia do Príncipe – 30 anos depois

(Luisélio Salvaterra Pinto)

1) Introdução: a promessa e a dúvida

No passado dia 29 de abril de 2025, a Região Autónoma do Príncipe comemorou os 30 anos da aprovação do seu Estatuto Político-Administrativo. A ocasião, marcada por solenidades e presenças institucionais de alto nível, mereceria também um exercício de memória e, sobretudo, de avaliação. O que mudou efetivamente para os cidadãos da ilha nestas três décadas?

Foi nesta linha que, em conversa recente com o pai de um amigo — a quem trato por “tio”, votou contra o estatuto de autonomia em 1995 — fui confrontado com uma pergunta: “Sabes que houve dois deputados que votaram contra?” Suspeitei imediatamente que ele teria sido um deles. E tudo indicava que sim. Não revelou abertamente as suas razões, mas percebi que talvez fossem as mesmas que se verificam hoje: fazia pouco sentido — e continua a não fazer.

A partir dessa provocação, senti o impulso de revisitar o percurso da autonomia, confrontá-la com o regime de poder local dos distritos da ilha de São Tomé, examinar o controverso projeto do “Dividendo Natural” e, sobretudo, lançar um convite ao debate aberto e desapaixonado sobre o futuro político e social do Príncipe.

1.1) Contexto histórico e aprovação da autonomia (1995)

A criação da Região Autónoma do Príncipe (RAP), aprovada em 1995 e institucionalizada por lei em 2010, surge de uma longa reivindicação de maior atenção política e administrativa à ilha menor do arquipélago. A promessa era simples: dar mais protagonismo aos princípianos, permitir soluções mais adaptadas à realidade insular e, por esta via, promover um desenvolvimento mais justo e sustentável.

Apesar da expectativa de melhorias rápidas, os primeiros anos revelaram atrasos na implementação. Até 2006, os titulares do governo regional continuavam a ser nomeados por São Tomé. Só após manifestações e pressão popular se realizaram eleições regionais, com verdadeiro exercício autonómico a partir de então. As primeiras eleições regionais realizaram-se em 2006, tendo sido vencidas pela União para a Mudança e Progresso do Príncipe (UMPP), sob liderança de Tozé Cassandra, figura central da política regional nas décadas seguintes.

1.2) 30 anos números: retrato de um desenvolvimento incompleto

Em 1995, São Tomé e Príncipe tinha uma população total estimada em cerca de 120 mil habitantes. Hoje, aproxima-se dos 230 mil. O Príncipe representa apenas cerca de 8% dessa população, mantendo-se como uma das sub-regiões menos populosas do espaço lusófono.

A nível nacional, os dados disponíveis indicam melhorias em alguns indicadores: a taxa de escolarização no ensino básico ultrapassa os 90%, mas o acesso ao ensino secundário e superior continua limitado, sobretudo no Príncipe. A mortalidade infantil diminuiu significativamente, embora persistam desigualdades regionais. A taxa de pobreza continua elevada, e o rendimento médio pouco evoluiu quando ajustado à inflação.

No turismo, o Príncipe registou avanços notórios em relação aos anos 90, com a chegada do investimento privado ligado ao grupo HBD e outros. No entanto, continua a depender de poucos operadores, com oferta limitada, cara e orientada para o turismo de luxo — um modelo que pouco beneficia as populações locais em larga escala.

2) Autonomia ou réplica do Estado?

Enquanto os distritos da ilha de São Tomé operam com câmaras distritais — estruturas de poder local previstas na Constituição — o Príncipe seguiu um caminho diferente. Criou-se uma réplica do Estado central: Assembleia Legislativa Regional, Governo Regional, Presidente do Governo Regional. Esta escolha institucional criou estruturas, cargos e processos, mas nem sempre acompanhados da capacidade técnica, financeira ou estratégica necessárias.

Essa configuração tem sido criticada por não aproximar o poder dos cidadãos. Muitos serviços continuam centralizados na vila de Santo António, sem presença efetiva nas comunidades. A lógica vertical manteve-se, apenas transferida para uma escala menor.

3) Avaliação do funcionamento e impactos da autonomia

Ao longo destas três décadas, a governação autónoma do Príncipe ficou marcada por uma repetição de padrões que já conhecemos da política nacional: disputas partidárias, escassa coordenação institucional, fragilidade técnica e dependência quase total do financiamento do Estado central. Apesar da existência de órgãos próprios, o exercício real do poder pouco se descentralizou dentro da ilha, com decisões concentradas em Santo António e escassa presença do Estado nas comunidades. A autonomia gerou uma nova elite política, mas não reformou a lógica de governação.

Persistem dificuldades estruturais em áreas-chave como a educação secundária e superior, o acesso a cuidados de saúde de qualidade e a criação de oportunidades para os jovens. A capacidade para gerar inovação institucional ou promover uma economia local robusta continua limitada. A responsabilidade por essa estagnação é partilhada por sucessivas lideranças regionais e pelas suas bases de apoio, que, em muitos casos, priorizaram alianças políticas e jogos de influência em detrimento de uma visão transformadora e centrada no cidadão.

4) O enigma do projecto “Dividendo Natural”: entre a inovação e a opacidade

4.1) Já ouviu falar da ideia de Dividendo Natural no Príncipe?

O projeto “Dividendo Natural” propõe atribuir uma compensação financeira regular aos residentes do Príncipe em troca do seu compromisso com a preservação ambiental. Inspirado por modelos de dividendos ecológicos (como os do Alasca), a ideia parece moderna e atraente.

Sou tentado a admitir que poucas pessoas conhecem o seu funcionamento real. Eu sequer sabia existência até umas semanas atrás.

4.2) Onde está o debate público?

A proposta foi negociada e firmada entre a liderança regional e o grupo HBD/Príncipe Trust com escassa discussão pública. Eu não tenho memória de audições, consultas ou debates comunitários de larga escala no Príncipe e em São Tomé.

O tema parece permanecer ausente da agenda mediática e política nacional. Isso é inaceitável.

4.3) Uma questão de soberania e equidade

Ver funções e responsabilidades do Estado passarem de forma informal para atores privados deve preocupar. E ainda mais quando há compensações financeiras diretas a cidadãos sem mecanismos de escrutínio claros. Quem gere os fundos? Como se mede o impacto? Que compromissos estão assumidos? Que consequências pode ter a médio prazo?

4.4) Filantropia transformadora ou ensaio assistencialista?

A ação de Mark Shuttleworth e da HBD tem méritos. É inegável que dinamizou o turismo, promoveu conservação e criou alguns empregos. Mas não pode substituir o Estado. E o risco de uma dependência disfarçada de ajuda filantrópica existe. Há que exigir transparência, escrutínio e inclusão de todas as partes — sobretudo das comunidades locais.

5) Perspetivas para uma nova etapa: por onde começar?

O Príncipe precisa de uma nova agenda. Sugestões concretas:

  • Descentralizar internamente a ilha: criar estruturas locais de gestão comunitária;
  • Apostar na capacitação de quadros e na educação técnica e universitária;
  • Lançar projetos económicos diversificados, fora da lógica do luxo e da dependência externa;
  • Promover o debate cívico, o jornalismo local e a exigência cidadã;
  • Estimular a criação de espaços para participação jovem e inovação social.

5.3) E qual é a minha solução?

Não tenho receitas milagrosas. Mas acredito que precisamos de discutir, propor, testar, ajustar. As soluções nascem do diálogo estruturado. E de uma nova forma de fazer política: com verdade, com proximidade e com responsabilidade.

6) A Identidade e o desafio da representatividade

A questão identitária tem vindo a ganhar espaço nas dinâmicas políticas e sociais do Príncipe, com implicações diretas no discurso público e na governação local. Mais recentemente, observou-se um crescente viés na afirmação de uma identidade cabo-verdiana entre a atual liderança política, o que, não sendo ilegítimo enquanto expressão cultural, torna-se problemático quando é instrumentalizado como pilar de representação institucional.

Segundo estimativas informais, cerca de 70% da população do Príncipe teria ascendência parcial ou total cabo-verdiana. No entanto, essa população representa menos de 10% da população nacional — o que significa que essa herança específica representa aproximadamente 7% da totalidade dos cidadãos santomenses. É um dado relevante, mas não exclusivo, nem representativo do todo.

Ao se reforçar, de forma pouco equilibrada, uma determinada ascendência dentro do discurso público regional, corre-se o risco de fragmentar a identidade coletiva do arquipélago, que é, por natureza, plural e mestiça. A construção da nação santomense não pode ser sequestrada por visões etnicamente orientadas, sob pena de se comprometer o seu projeto inclusivo.

Este ponto exige uma vigilância serena e uma pedagogia ativa. A diversidade cultural é uma riqueza e deve ser celebrada, não como bandeira política, mas como elo entre comunidades. Enquanto cidadão, celebro profundamente as minhas raízes diversas — entre elas, a minha trisavó cabo-verdiana — mas sou, na essência e por inteiro, santomense.


Considerações finais: uma nota de imprudente esperança

Não sou historiador, nem especialista em estatutos ou índices estatísticos. Sou apenas cidadão atento e curioso. E, como tal, sinto que tenho a liberdade de pensar e de fazer pensar.

Trinta anos depois, a autonomia do Príncipe continua a ser uma travessia inacabada. Ainda há tempo para retomar o rumo. Mas é preciso coragem — e é preciso começar.


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1 Comment

1 Comment

  1. Eusébio Pinto

    6 de Maio de 2025 at 9:52

    Excelente exercício de reflexão!
    Dou os meus parabéns ao autor!

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