Sociedade

O Soba Kubango no pesadelo do mundo real (Faxa vore, Kundip´a)

Desde miúdo que ando a tentar perceber o que é isso do bem. Há quem diga que o bem das pessoas é o bem da nação. Se eu ajudar um amigo a obter um emprego estarei a fazer o bem?

Então e a outra pessoa que deixa de ir para esse emprego só porque pus lá o meu amigo?

Ao fazer o bem a uma pessoa não estarei a fazer mal a outra ou às suas futuras vítimas?

O que  quero dizer é que a questão do bem e do mal sempre gerou mais perplexidade do que certezas.

O pai do Senhor Suco (Kubango, o Velho Curandeiro, com dons de cura gratuito), que vivia na Roça Monte Café, teve a resposta a este enigma no momento em que viu o mal na Sanzala.

Viu-o impregnado nos corpos carbonizados que se espalhavam pelos escombros, viu-o quando se questionou sobre o que levaria os homens a fazerem uma coisa tão cruel. Deparando-se com uma criança que saiu viva e ilesa debaixo do corpo queimado de uma desgraçada que a DGS e PIDE quase haviam morto, percebeu que há coisas que o mal, por mais que tente, não poderá conquistar.

O amor daquela mãe foi mais poderoso do  que o mal daqueles homens.

Mas só muitos anos depois consegui transformar em palavras a ideia que  desde então me andava a vaguear na mente.

O bem também é a capacidade de nos pormos no lugar do outro. Quando os soldados da DGS e PIDE matavam mulheres e crianças como quem mata formigas, possuídos pelo mal, pela crueldade e pela impiedade, não conseguiam pôr-se no lugar das vítimas, não conseguiam perceber a posição delas nem sentir o que elas sentiam. O mal é, entre outras coisas, a incapacidade de imaginar os sentimentos do outro e de os sentir como se pudéssemos ser nós.

O bem seria se os responsáveis por aquele horror, ou por outros iguais, se pudessem compadecer daquilo que fizeram ou fazem.

Dizem que, no momento anterior à morte, se revê a vida, o tempo vertido como areia que uma ampulheta despeja na eternidade.

Ficando assim num limbo, o homem confronta-se enfim com ele mesmo, a sua consciência, o sentido de decência, o dever de proceder bem fossem quais fossem as consequências.

Cada um de nós todos os dias faz muitas escolhas e é na hora da morte que tomará enfim consciência de todo o bem e o mal que cometeu.

Infelizmente, nessa altura já será demasiado tarde.

Agradeço ao Sr. Francisco Paulino,  ex-funcionário da empresa Monte Café, pelos materiais fornecidos  e pelo seu apoio à entrevista com a srª  Maria Olinda,   a mais velha dos roceiros, hoje com 102 anos.

(Faxa vore, Kundip´a) » por favor, não nos mate

Moscovo, Fevereiro de 2011

Filipe Samba

3 Comments

3 Comments

  1. António Veiga Costa

    11 de Março de 2011 at 13:52

    Gostei muito de seu artigo e da colocação do bem e o mal.
    Finalmente um escrito sobre o “interior”.

  2. Baptista

    12 de Março de 2011 at 11:19

    Muito bem amigo Samba. Uma reflexao de grande profundidade psico-filosofica de realismo puro.
    Saudacoes.

  3. 1982

    16 de Março de 2011 at 8:33

    Caro amigo!

    Como cidadão que defende o debate de idéias como uma forma de fomentar o que os especialistas na ária organizacional denominam de conhecimento tácito (muitas vezes definido como experiência transmitida por via da interação entre pessoas num determinado contexto)permita-me deixar aqui a minha contribuição para o tema.

    O bem e o mal são conceitos relativos orientados em grade medida por códigos morais de cada indivíduo ou grupo. Isso faz com que o conceito do bem e do mal varie ao longo do espaço e do tempo. Ou seja, o que pode ser considerado como o bem ou o mal para algumas pessoas pode não o ser para outras.
    É verdade que existem alguns elementos que parecem ser comuns a diferentes códigos (a proteção e o direito a vida, por exemplo) devido ao fato de tais elementos emergirem dos instintos mais primitivos do Homem (no caso, o de sobrevivência). Mas mesmo neste caso a relatividade existe, pois o valor de uma vida pode ser posta em causa perante a necessidade de defesa do coletivo abrindo caminho para a permissão de atos como o de sacrifícios religiosos ou a execução por pena de norte que noutras circunstâncias seriam considerados atos de mal.
    O Homem como qualquer outro ser na natureza vive numa incessante busca pela sobrevivência. Lá no fundo somos movidos por nossos instintos de sobrevivência. A racionalidade e o altruísmo são instrumentos que ajudam no equilíbrio desejado, uma vez que somos criaturas sociais e dependemos uns dos outros para sobrevivermos.
    A sobrevivência é uma razão poderosa para busca do bem – e pode mesmo ser a origem de diferentes motivações. Entretanto,a busca por um ideal pode servir como motivação para a pratica de atos considerados, em determinadas circunstâncias, por diferentes correntes, como ato do bem ou do mal relembrando diferentes episódios da história da humanidade. Indivíduos como Hitler e os seus seguidores consideraram ato de bem os comportamentos segundo o ideal nazi; Os talibans consideram ato de bem as mulheres usarem burgas e ficarem presa em casa sem aceso a educação e a outros direitos. Os extremistas islâmicos martirizam-se em nome dos ideais que defendem. E neste ultimo caso é pouco provável que se arrependam no momento de se fazem explodir.
    Em conclusão o bem é função da necessidade da busca de sobrevivência e da preservação do equilíbrio do individuo e/ou da sua sociedade. É relativo porque depende das circunstâncias, do lugar, do tempo e do código moral adotado. Os ideais por sua vez ajudam a alterar a posição do homem face a realidade, face ao significado do bem e do mal.

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