Análise

TRIBUNAL DE CONTAS É OU NÃO ORGÃO DE SOBERANIA?

 É no mínimo insólito edoutor-garrido.jpgscrever-se sobre isso, porque ninguém esperaria que houvesse tanta dúvida sobre esta questão, sobretudo de uma certa franja de intelectuais e políticos em STP.

                        Mas tenho que escrever, porque estando esta confusão a nível de alguns intelectuais e políticos (felizmente não juristas), devo dizer o que penso sobre isso, em jeito de uma achega,  para que, quiçá,  duvidas se dissipem  e não haja mais intoxicação de pessoas pouco versadas, direi mesmo, em cultura geral.

                     É que divagou-se por aí, em jeito de discussão estéril e até mesmo intoxicante para a sociedade, que o Tribunal de Contas não é um órgão de soberania! Que aberração! Até já ouvi isso no nosso Parlamento em que alguém dizia que “Tribunal de Contas de per se não é um órgão de soberania”. A pessoa terá querido dizer – como alias descortinei em discussão com alguns desses políticos e intelectuais – que o Tribunal de Contas faz parte dos tribunais, no sentido em que integram uma única instituição ou entidade “tribunais” que tem como órgão máximo o Supremo Tribunal de Justiça, representando o seu presidente, todos os tribunais que existem ou que possam vir a existir. Isto é muita ignorância!

                        Como é que é possível alguém interpretar dessa maneira o artigo 68.º da Constituição que diz:

                        São órgãos de soberania:

Presidente da República

Assembleia Nacional

Governo

d) Tribunais.     

                    Como dizemos em direito, só pode ser uma interpretação abrogante ou correctiva, ou direi mesmo abusiva. Abrogante porque se ousa dar um sentido supostamente melhor ao que o legislador consagrou e correctiva porque se pretende fazer uma espécie de correcção àquilo que o legislador previu na lei. Esta última interpretação é condenada pelas doutrinas mais conceituadas.

                        Mesmo um não jurista vê que esse artigo da Constituição só pode significar que todos os tribunais são órgãos de soberania. Ou seja, tal como STP, em todos os países os tribunais são órgãos de soberania. Todos sem excepção! Onde há tribunal Administrativo, Tribunal Marítimo, Tribunal Comercial, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas, todos são de per se (para usar a expressão que ouvi no Parlamento) órgãos de soberania. Também os tribunais de primeira instância são órgãos de soberania. E o próprio Supremo Tribunal de Justiça é um órgão de soberania. Estes são duas instituições independentes uma da outra, sem prejuízo da “hierarquização” estritamente para efeitos de recurso. No nosso caso – creio o único no mundo –   como os dois tribunais estão no mesmo edifício, então os leigos ou menos atentos pensam que são um único tribunal. Aliás, o próprio Ministério da Justiça e a Procuradoria Geral (na altura chamava-se Provedor de Justiça – aberração horrível!)  também lá morou por alturas do monolitismo.

                        A confusão que paira na naquela “tese” é que se entende que quando a Constituição diz que os “Tribunais” são órgãos de soberania, isso significa que os “Tribunais” correspondem ao tribunal judicial que tem como órgão superior o Supremo Tribunal de Justiça, ignorando que o Tribunal Judicial é uma categoria de tribunal, também designado por Tribunal Comum, sendo os outros tribunais especializados absolutamente independentes, porque, o que é decidido pelo Tribunal de Contas, Supremo Tribunal Militar, Supremo Tribunal Administrativo, Tribunal Constitucional (onde os há autonomamente) ou qualquer outro Tribunal superior especializado que existir não é recorrível para nenhum outro, porque nessas instâncias esgotam-se as respectivas jurisdições, ou seja, não há mais recurso para nenhum outro tribunal, nem mesmo para o Supremo Tribunal de Justiça que só recebe recurso dos tribunais inferiores da sua jurisdição, neste caso jurisdição comum.

                   Cada um desses tribunais constitui uma jurisdição independente – com as suas estruturas internas inferiores – de qualquer outra, mesmo do Supremo Tribunal de Justiça de cuja jurisdição é comum, tendo na sua “hierarquia” inferior, o Tribunal de Primeira Instância. Em Portugal a estrutura da jurisdição comum têm três instâncias: Tribunais de primeira instância, Tribunal de Relação e Supremo Tribunal de Justiça, sendo este a estrutura superior, onde esgota toda a jurisdição comum (tribunais judiciais).

                        As decisões dos órgãos superiores de uma jurisdição não são recorríveis, pois ali se esgota a jurisdição como já referi, para significar que acabou! Ninguém mais faz nada! É só para cumprir como manda a Constituição.

                        Portanto, o Supremo Tribunal de Justiça é o órgão superior da jurisdição comum (Tribunais Judiciais). As decisões do Tribunal de Contas não são recorríveis para mais nenhum tribunal. Ali esgota-se a jurisdição.

                        Para elucidar melhor ainda (porque Santos da casa não fazem milagre), passo a transcrever alguns trechos  do que disse o malogrado Professor Sousa Franco, no seu livro “Finanças Públicas e Direito Financeiro”:

                        “Na lógica da Constituição (portuguesa, entenda-se, e que não difere da nossa, como é consabido), o Tribunal de Contas é tratado como um verdadeiro tribunal, pois afirma o art. 212.º, n.2, que “haverá tribunais militares e um Tribunal de Contas”, resultando sem dúvida da conjugação do citado art. 212.º com o art. 205.º que se trata de um órgão de soberania”

                        “Poder-se-á sustentar, é certo, que o Tribunal de Contas não é um verdadeiro tribunal, já que as funções que a Constituição lhe atribui não serão nem exclusiva nem predominantemente funções jurisdicionais; e que o não serão as funções de auditoria económico-financeira, que cabem  a órgãos semelhantes existentes em diversos países”. “Para defender que se trata de um verdadeiro tribunal, pode-se, contudo, argumentar com mais força que a lei poderá atribuir outras funções Tribunal, independentemente das que lhe estão cometidas constitucionalmente (e que, obviamente, lhe não pode retirar).Mas mais importante é a verificação de que o Tribunal de Contas é um órgão independente que funciona como um tribunal quanto a sua estrutura e em cujas funções se incluem algumas (e tanto basta) que podem ser consideradas jurisdicionais.

                        O problema deve estar a prender-se com alguma hostilidade ao Tribunal de Conta (eventualmente, na pessoa do seu Presidente) que se começou a alimentar por aí, com o problema de protocolo de Estado. A confusão daqueles senhores é que o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça representa todos os Tribunais, na terminologia da Constituição. Estão redondamente enganados. Cada tribunal superior representa toda a sua jurisdição, sendo o Presidente dos Tribunais Judiciais representado pelo PSTJ e neste caso o Tribunal de Conta que também pode estruturar-se em primeira instância (que significa onde os casos dão entrada em primeira mão e são dirimidos os conflitos) é representado pelo seu Presidente.

                        Ora, em termos protocolares, é da praxis ou de costume, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça estar em primeiro lugar e os presidentes de outros tribunais superiores seguir-lhe. Mas, deve ressalvar-se o caso de Tribunal Constitucional que, nos termos constitucionais, é o Tribunal de primeira categoria, quer se queira quer não, porque diz as constituições modernas, nomeadamente Portugal e muitas outras (incluindo STP que até consagra uma capítulo para o T.C., definindo as suas competências e estabelecendo a forma da sua composição etc. etc., não fazendo o mesmo para com outros tribunais), que além do Tribunal Constitucional existem outros, nomeadamente Supremo Tribunal de Justiça, por aí fora (artigo 126.º ). No nosso caso, devido a juventude do TC, as circunstâncias e as vicissitudes que rodearam a sua existência, aliado a uma ausência de cultura nesta matéria, penso que a jurisdição constitucional, constituindo mesmo um plenário de cinco juízes conselheiros, maior instância jurisdicional do país, está relegado para o segundo plano.

                         O Professor Bacelar Gouveia também reconheceu esta primazia ao Tribunal Constitucional e referiu-se a Portugal em que nos primeiros tempos o Tribunal Constitucional era tratado assim, tendo sido o seu Presidente colocado protocolarmente em primeiro lugar. Hoje são tratados em pé de igualdade, não ocupando nenhum a primazia. Isso depende de cada país. Mas, literalmente pelas nossas Constituições, o Tribunal Constitucional tem de estar em primeiro lugar. Admito que havendo revisão constitucional tais protagonistas quererão não classificar o  Tribunal Conta como sendo órgão de soberania e, eventualmente, corrigir esta primazia que a Constituição dá ao Tribunal Constitucional, de certo sem fundamento plausível ou racional.

                        Desde logo, quem confere ou não a dignidade de órgãos de soberania são as próprias constituições. Não se trata de uma definição. É uma classificação expressa.

                        Não sei o que diriam tais intelectuais se souberem que, em Moçambique, o órgão de fiscalização de constitucionalidade chama-se Conselho Constitucional e a Constituição classificou-o de órgão de soberania. Um pouco paradoxal para mim, em termos de nome do órgão. Talvez seja um pouco a vontade de ser diferente.

                         “Os tribunais constituem um dos órgãos de soberania” (Constituição portuguesa anotada – VINICIO A. P. RIBEIRO – Edição de 1993 – Coimbra, p.281). Isso significa que havendo 4 órgãos de soberania “os tribunais” são um deles. Ou seja todos os Tribunais integram este órgão de soberania: Tribunal Primeira Instância, Supremo Tribunal de Justiça, Tribunal de Relação (tribunal intermédio que nós não temos), Tribunal Administrativo (onde existe autonomamente; temo-lo integrado no STJ), Tribunal de Conta, Tribunal Militar, Tribunal Constitucional, etc.etc., tantos tribunais quantos o poder politico quiser. Qualquer deles é um órgão de soberania, no sentido em que ao praticar um acto jurisdicional exerce fá-lo exercendo o poder soberano. E como já disse, cada Tribunal é independente, sem prejuízo da hierarquia que existe no seio de cada jurisdição, como também acima já disse, apenas para efeitos de recuso. Ou seja se um Tribunal de primeira instância profere uma sentença, ela é passível de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, por ser este o órgão superior na jurisdição comum (tribunais judiciais). Já se houver uma decisão de um tribunal administrativo de comarca (Portugal), o que correspondente tribunal de primeira instância, o recurso só vai para o Supremo Tribunal Administrativo; o mesmo se pode dizer do Tribunal de Conta. Havendo qualquer decisão de uma instância inferior de conta, só o Tribunal de Conta que é o órgão superior dessa jurisdição pode conhecer do seu recurso. Exemplo em STP é se houver uma decisão de um juiz singular, dela cabe recurso para o pleno (reunião de todos Juízes Conselheiros).

                        É necessário frisar que o Tribunal Constitucional é o único Tribunal que tem competência para decidir, em sede de fiscalização concreta (casos submetidos aos tribunais) sobre os recursos das decisões de todos os outros tribunais, incluindo os tribunais superiores, maxime, o do Supremo Tribunal de Justiça, desta feita, por motivo da especificidade da sua função que é a de fiscalização de constitucionalidade de todos os actos normativos, ou seja fiscalização das normas constantes de leis, decretos-leis, decretos e diversos regulamentos, tais como portarias, despachos e outros actos emitidos no âmbito do poder administrativo com carácter geral e abstractos.

                        Esta especificidade das funções do Tribunal Constitucional advém também do facto de o poder de fiscalização de constitucionalidade competir também a todos os tribunais sem excepção, conforme reza o artigo 129º/1 que diz: “Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou nos princípios nela consagrados”. É a chamada fiscalização difusa (todos os tribunais fiscalizam a conformidade dos actos normativos com a Constituição nos casos que lhes são submetidos), contrapondo com a fiscalização concentrada que é a que compete ao Tribunal Constitucional, no sentido em que mesmo decidindo todos os outros tribunais sobre fiscalização da constitucionalidade, é a ele que compete decidir em última instância ou seja ter a última palavra sobre esta questão de constitucionalidade em recurso.

                        Por último como também paira a dúvida sobre quem sãos os titular de órgãos de soberania, apraz-me acrescentar que são: Presidente da República, Deputados, Ministros (incluindo obviamente o Primeiro Ministro porque também ele é um Ministro primus super pares), Juízes de Direito (Tribunais de lª. Instância) e Juízes Conselheiros e não os presidentes dos tribunais superiores, pois estes são representantes dos respectivos tribunais ou dentro dos respectivas jurisdições. Explicando melhor, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça não é por si titular de órgão de soberania mas sim o Juiz Conselheiro-Presidente. E só representa todos os tribunais comuns, incluindo o próprio STJ. O mesmo se diz, mutantis mutandis, do Presidente do Tribunal de Conta que só representa esta jurisdição.

                        É bom que se saiba que todos os juízes conselheiros têm a mesma dignidade, do ponto de vista legal e até constitucional, o mesmo se dizendo dos presidentes dos supremos tribunais.

                                                                                               HILÁRIO GARRIDO

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