A embrionária democracia Santomense tem tido, ao longo dos tempos, uma capacidade extraordinária de surpreender o mundo pelas qualidades de perversão, dos valores e práticas, do referido regime político, que começam a cristalizar na nossa sociedade, ganhando contornos de uma “descoberta científica” susceptível de ser estudada, compreendida, e, eventualmente, exportada. Já Aristóteles, na tentativa de classificação dos regimes políticos, denunciara que a democracia degeneraria em demagogia quando todos, procurariam satisfazer os seus próprios interesses, descurando o interesse geral.Infelizmente, em S.Tomé e Príncipe, ainda, é este o quadro. Toda a gente coloca em primeiro lugar os seus próprios interesses, esculpindo regras, procedimentos e acções, pouco transparentes, atentatórias da liberdade de expressão e manifestação dos outros, sufocando-os, lentamente, até que morram ou desistam de lutar. E isto é grave, ou muito grave, porque é o próprio Estado Santomense que se converteu nesta espécie de jibóia neurótica-obsessiva espremendo e sufocando os cidadãos, ou grupos comunitários, em prol da afirmação de interesses individuais e de grupos bem identificados. Isto ficou claro, anteriormente, com a população do Ilhéu da Rolas e, mais recentemente, com a população do Príncipe.
Toda a gente sabe, desde o tempo colonial, que o Príncipe tem um aeroporto, pouco ou nada funcional, com uma pista em estado de degradação final, sem estruturas que suportem a sua operacionalidade, com o mínimo de dignidade, e, por isto mesmo, se converteu, há muito tempo, numa espécie de museu aberto com algumas “sucatas do ar” no seu espaço nobre.
Infelizmente, também, toda a gente sabia que não existia um barco, há muito tempo, com o mínimo de condições de segurança que garantisse a ligação inter-ilhas e, consequentemente, o transporte de pessoas e mercadorias com dignidade desejável. Havia um projecto e meios financeiros, para a sua aquisição, no governo do senhor primeiro-ministro, Tomé Vera Cruz. O projecto e os meios financeiros, em causa, desapareceram no governo do senhor primeiro-ministro, Patrice Trovoada e, voltaram a aparecer, pelo menos em intenção, com a entrada, em funções, deste governo.
Quantas mulheres do Príncipe, em estado adiantado de gravidez, não perderam a vida, ou o filho, por complicações de parto, irresolúveis localmente, que exigiam, por isso, o evacuamento rápido para S.Tomé, não realizável, no entanto, por inoperacionalidade nocturna da pista do aeroporto regional do Príncipe?
Quantos pais não perderam os seus filhos, no Príncipe, com patologias ou complicações momentâneas de saúde, que requeriam o rápido evacuamento para S.Tomé, mas que um exercício de espera matinal, para que o avião pudesse chegar em condições de segurança, ao Príncipe, transformou a dita esperança numa tragédia?
Quantos acidentes de aviação não foram evitados, por perícia invulgar dos nossos pilotos, tendo em conta o estado de degradação da pista do aeroporto do Príncipe e de outras estruturas de operacionalidade e de apoio ao mesmo?
Quantas “carcaças”, convertidas em projectos viáveis, sob caução do Estado Santomense, para transporte marítimo, de pessoas e bens, entre as ilhas, não afundaram, no meio do Atlântico, provocando a morte de muitos inocentes, a maioria deles do Príncipe, que, somente, procuravam circular livremente, em todo o território nacional, fazendo negócios, procurando usufruir de acesso à saúde e educação condigna ou fazendo outra coisa qualquer?
Quantos destes barcos não andaram, durante dias ou semanas, à deriva, no meio do Atlântico, na sua incansável e insubstituível missão de ligar as duas ilhas, colocando em risco a vida dos seus resistentes e humildes utilizadores, a maioria deles do Príncipe, condenados a pena, de terem de suportar este fardo, indefinidamente, pelo simples facto de terem nascido, ou optado por viver, nesta parcela do nosso território?
Estes seriam, inevitavelmente, a par de um forte impulso, indutor do desenvolvimento regional e nacional, argumentos suficientes para que qualquer governo, decente e preocupado com o interesse geral, se prontificasse a meter mãos à obra considerando o investimento, no aeroporto regional do Príncipe, bem como, a aquisição de meios de transporte marítimo e de suporte portuário inter-ilhas, como projectos prioritários de interesse nacional, em prol da coesão nacional e promoção de igualdade de oportunidades em todo o espaço territorial. O que é que, no entanto, aconteceu?
Como a população do Ilhéu da Rolas, que tem sido sacrificada em prol do desenvolvimento de interesses privados, a população do Príncipe foi, mais uma vez, vítima de desprezo, mesquinhez e desconsideração. Entre as opções de investimento público, equivalentes, para a revitalização do aeroporto regional do Príncipe e a construção de uma Doca Pesca, em S.Tomé, que ninguém sabe para que serve, o anterior governo optou por este, em detrimento daquele. Como todas as decisões políticas erráticas, despidas de estudos prévios, a montante, tendencialmente discriminatórias, injuriosas e mesquinhas, hoje, ouve-se dizer, que o governo central não sabe o que fazer com a dita Doca Pesca e, já há planos para a sua eventual alienação aos interesses privados. Para um país pobre em recursos financeiros, isto é o cúmulo da indigência espiritual, desrespeito pelos outros, ignorância ou loucura. O senhor Presidente da República aparece agora, a “chorar”, reclamando a rapidez com que o país esgotou os milhões de dólares decorrentes dos leilões dos blocos petrolíferos realizados anteriormente. Onde é que o senhor Presidente da República estava, na altura, que não emitiu qualquer opinião quando estas opções e decisões políticas foram tomadas? É exactamente isto que se pede a um Presidente da República: que tenha uma intervenção mais pedagógica e preventiva do que reactiva e choramingas.
Convencido que o desvario atingira o clímax, enganei-me redondamente. Um grande investidor estrangeiro, que é simplesmente o maior empregador privado da região do Príncipe, vinha, repetidamente, manifestando interesse na realização de um contrato de concessão, com o governo Santomense, que permitisse a requalificação, modernização e gestão do aeroporto regional do Príncipe minimizando, assim, os constrangimentos supra citados relacionados com a referida infra-estrutura, dotando, simultaneamente, o país de melhores condições de comunicação inter-ilhas e, consequentemente, de condições amplificadoras do desenvolvimento económico, regional e nacional. Perante várias propostas, do referido empresário, ao governo central e repetidas recusas deste, em negociar, numa atitude de total menosprezo pelo Príncipe, arrogância e autofagia, a população do Príncipe e seus legítimos representantes, saíram à rua, em manifestação, contra o isolamento, marítimo e aéreo, e o ostracismo, imposto à região e aos seus habitantes. Já não eram suportáveis o número de vítimas e as condições de prisão ou isolamento impostas ao Príncipe por aqueles senhores. Foi a resposta adequada, num contexto democrático, contra a arrogância, a humilhação e o desprezo, do referido governo central, relativamente ao Príncipe. O que é que queriam que a população do Príncipe e seus legítimos representantes fizessem depois do governo central entender que é mais razoável e racional, do ponto de vista económico e social, realizar um avultado investimento público na criação de uma infra-estrutura como a Doca Pesca, que já não sabem para que serve, em detrimento da requalificação e modernização do aeroporto regional do Príncipe ou na aquisição de um meio de transporte marítimo e, mais grave do que isso, impedir que privados o pudessem fazer, num contexto de contrato de concessão, substituindo o próprio Estado? Ou seja, é a típica arrogância inqualificável que caracteriza os sucessivos governos nacionais: eu não faço, porque não sei ou porque não quero; e, não desejo que os outros façam. Pensam eles: a população do Príncipe que se amanhe com o aeroporto e ausência de meios de transporte marítimos e todos os outros problemas! No Príncipe, já há quem pense, que, esta reiterada pré-disposição para humilhar e marginalizar a região faz parte de um plano, mais abrangente, para “matar”, paulatinamente, a sua cultura, sociedade e economia, criando um ambiente de claustrofobia local que obrigue a sua população a abandonar a ilha. É óbvio que eu não acredito nisto! Mas dá que pensar, sobretudo, porque foi a mesma receita utilizada com a população do Ilhéu das Rolas, perante o “silêncio” do senhor Presidente da República. Desta vez, perante a resposta da população do Príncipe, numa manifestação democrática avassaladora, o senhor Presidente da República quebrou o silêncio para se manifestar indignado com a qualidade de organização, participação e envergadura da referida manifestação, contra o governo central, reclamando a viabilização de condições que permitissem a assinatura do contrato de concessão, com o referido empresário, possibilitador da requalificação do aeroporto regional do Príncipe.
O mesmo Presidente da República que fica em silêncio quando a população do Ilhéu da Rolas é humilhada e expulsa do referido Ilhéu; manifesta-se indignado e amuado quando a população do Príncipe sai à rua em situação de resposta à humilhação e desconsideração similar. O mesmo Presidente da República, que, “bate palmas” quando os representantes legítimos do Governo Regional, do Príncipe, são impedidos de falar aos órgãos de comunicação social estatal do país, pelo primeiro-ministro, Patrice Trovoada; transforma-se, posteriormente, num choramingas quando a população do Príncipe saí à rua em manifestação democrática.
O mesmo Estado que quis entregar, de borla, todas a praias do país, incluindo as do Príncipe, a um grupo privado estrangeiro; manifesta-se, por outro lado, preocupado e inquietante com a assinatura de um contrato de concessão, com um empresário estrangeiro, que permitiria a modernização e gestão privada do aeroporto regional do Príncipe. O mesmo Estado, que, hipotecou milhões de dólares, prejudicando todos os Santomenses, com a assinatura de um contrato nefasto, para o país, com a ERHC, Synergies Investment; invoca, mais tarde, interesse público, como impedimento para assinar, com um empresário estrangeiro, o contrato de concessão e gestão do aeroporto regional do Príncipe. O mesmo Estado que estimula e promove o “banho” convencido da sua integridade e bondade na divulgação ao mundo de um contributo invulgar para a democracia; denota, com ar de virgem ofendida, desorientação perante uma manifestação popular, sem precedentes, no Príncipe, e manda investigar o empresário referenciado convencido que este financiara toda a população do Príncipe para a realização deste propósito reivindicativo. Esta é a democracia Santomense no seu máximo esplendor, digna de ser estudada e exportada para outras paragens. É óbvio que a população do Príncipe não se verga perante humilhação, desprezos e marginalização e, comportou-se, neste caso concreto, como um “Príncipe Quase-Perfeito e Premonitório”. É pena que alguns excessos marginais, sem significado maior, acabaram por manchar esta afirmação de liberdade democrática traduzida em manifestação e luta contra a humilhação e desprezo. Comecem a habituar: um PRINCIPE não se verga!
Não foi preciso esperar muito tempo para que a desgraça, do Therese, que ceifou a vida de mais de uma dezena de inocentes, a maioria deles originária do Príncipe, viesse confirmar a pertinência e oportunidade política da realização da referida manifestação popular, no Príncipe, dando razão ao Governo Regional e, sobretudo, à população do Príncipe pelo referido “atrevimento” democrático reivindicativo.
Muitos preferiram, nesta altura, estar calados; outros, como o senhor Presidente da República, entenderam que aquele gesto reivindicativo, da população do Príncipe, era uma séria ameaça ao regime e instituições democráticas; outros, ainda, consideraram-no um sinal de populismo exacerbado.
Com a desgraça do Therese, todos choram e manifestam pesar e condolências às vítimas e já há quem manda o Governo Regional “falar mais alto porque os assuntos do país são sérios” enquanto, permaneciam, durante a manifestação popular no Príncipe, nas suas conchas ou carapaças, preocupados com os seus devaneios políticos. Foi mais uma boa lição de vida: o povo tem sempre razão!
Como diria a minha avó Maria Preta, citando Emmanuel Mounier: «…Resta uma saída e só uma: afrontar, inventar, investir, a única que, desde as origens da vida, pode sempre triunfar sobre as crises. Os animais que, para lutar contra o perigo, se esconderam em tranquilos recantos, envolvidos em pesadas carapaças, mais não nos deram do que amêijoas e ostras. Vivem de restos. O peixe, que correu a aventura da pele nua e da deslocação rasgou o caminho que leva ao Homo sapiens. Mas há muitas maneiras de investir…»
As minhas maiores condolências aos familiares das vítimas desta autêntica catástrofe.
Adelino Cardoso Cassandra