Opinião

JUSTIÇA CONSTITUICIONAL, UMA ILUSTRE DESCONHECIDA.

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DDoutor Hilério Garrido Juiz Conselheiro do Tribunal Constitucional, mostra a justiça constitucional em STP como sendo uma ilustre desconhecida.


Com intuito de divulgar – já com algumas alterações e por minha conta e risco – o que é jurisdição constitucional, Tribunal Constitucional, sua competência, organização e funcionamento, para que, essencialmente, a comunidade nacional, sobretudo os não juristas tenham alguma ideia do que é este tão importante Tribunal, pelo menos no quadro da nossa Constituição, como são as outras do mundo civilizado e não só, decidi publicar um trabalho que apresentei numa reunião internacional, propondo e comprometendo-me, desde já, ir aprofundando esta matéria numa linguagem mais acessível aos não juristas, na medida do possível.

Mas, tendo em conta algumas confusões que pairam na cabeça das pessoas sobre o papel e as funções do Tribunal Constitucional, permito-mo adiantar desde já, que tal como está previsto na nossa Constituição – como de resto existe na maioria das constituições modernas – em matéria de fiscalização da constitucionalidade, o Tribunal Constitucional só julga ACTOS NORMATIVOS ou NORMAS JURIDICAS, e não ACTOS POLÍTICOS, nem mesmo ACTOS ADMINISTRATIVOS, como se pretende por aí. Por exemplo, a dissolução da Assembleia Nacional, a nomeação do Primeiro Ministro ou dos Ministros são feitos por actos políticos, logo, judicialmente não sindicáveis.

Importa salientar que o Tribunal Constitucional tem também outras funções que não fiscalização da constitucionalidade (em que só decide e não dá pareceres), entre as quais em matéria eleitoral.

A boa doutrina diz que o “contencioso de constitucionalidade é sempre de NORMAS em que se fundam as decisões recorridas e não um contencioso de DECISÕES”. Isso para lembrar aos juristas distraídos que não se recorre dos acórdãos ou sentenças, mas sim e sempre, das normas que eventualmente estes actos aplicam ou deixam de aplicar (isto em sede de fiscalização concreta em que qualquer cidadão através do seu advogado por suscitar uma questão de inconstitucionalidade.

1. RESENHA HISTÓRICA

O constitucionalismo de cariz democrático imbuído dos princípios e valores que brotaram da revolução liberal do sec. XIX não tem história em S.Tomé e Príncipe, senão na estrita medida em que fosse possível até a Independência Nacional existir algum impacto nas Ilhas de alguma justiça constitucional, quiçá, no plano meramente formal naquilo que foi a colonização, mesmo após a consagração no direito português de então da fiscalização jurisdicional da constitucionalidade instituída pela Constituição de 1911.

De resto, após a Independência Nacional em 12 de Julho de 1975, foi implantado um regime de partido único que durou uma década e meia, no qual não se pode dizer que houve algo em termos de fiscalização da constitucionalidade dos actos normativos, porque o regime não se compadecia com essa função como facilmente se pode compreender.

Com o advento do movimento democrático que culminou com a Constituição de 1990, foi institucionalizada uma forma precária, sui generis e atípica de fiscalização de constitucionalidade que paradoxalmente elegeu a Assembleia Nacional (Parlamento) como ultima instância dessa fiscalização, sendo, portanto, uma fiscalização mista de constitucionalidade, porque há uma primeira intervenção dos Tribunais, sobretudo de primeira instância nos casos submetidos ao pleito, aos quais incumbe não aplicar normas inconstitucionais.

Essa fiscalização era apenas sucessiva e concreta, pois como dizia o artigo 111º dessa Constituição “Nos feitos submetidos a julgamento, não podem os Tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou nos princípios nela consagrados

Com a revisão constitucional de 2003, aperfeiçoou-se melhor o sistema incipiente e mórbido anterior, passando a consagra-se um sistema de fiscalização de constitucionalidade aceitável tal como se pode ver na maioria das constituições modernas, ainda assim com algumas lacunas e imperfeições.

Assim, podemos verificar que já se consagra um sistema puro de fiscalização judicial de constitucionalidade, difusa, preventiva, sucessiva e concreta, competindo ao Tribunal Constitucional tomar decisões nessa matéria, ao declarar inconstitucional todos os actos normativos e com força obrigatória geral, expurgando do ordenamento jurídico as normas que infrinjam a Constituição (artigos 129.º, 131.º e 144.º a 150.º).

2. GARANTIAS DA CONSTITUIÇÃO

 

a) Garantias políticas

A nossa Constituição consagra no seu artigo 6.º/1 que “A República Democrática de S.Tomé e Príncipe é um Estado de Direito democrático, baseando nos direitos fundamentais da pessoa humana”.

Nesta base, criou vários órgãos de soberania classicamente conhecidos, cabendo, em primeira linha ao Presidente da República garantir a defesa da Constituição, cumprindo e fazendo cumpri-la. A par disso, os outros órgãos de soberania têm também a incumbência de defender a Constituição, no caso concreto, na implementação de todos os meios e mecanismos com vista a realização da justiça constitucional.

Nesta medida, está cometido, em primeira linha, ao Presidente da República, ao Primeiro Ministro e a um quinto dos Deputados à Assembleia Nacional desencadear o processo a fiscalização preventiva de modo a prevenir que o ordenamento jurídico fique infestado de normas ou diplomas que violem a Constituição, fazendo com que o Tribunal Constitucional aprecie a constitucionalidade ou não das normas contidas nos diplomas já aprovados mas ainda não promulgados e publicados, antes de se integrarem no ordenamento jurídico (artigo 145/3).

Do mesmo modo, depois de os diplomas estarem em vigor – mesmos os que já o estão há anos ou mesmo séculos, como é o caso do nosso ordenamento jurídico (Código Penal de 1886) – é conferido ao Presidente da República, o Presidente da Assembleia Nacional, o Primeiro Ministro, o Procurador Geral da República, um décimo dos Deputados à Assembleia Nacional, a Assembleia Legislativa Regional e o Presidente do Governo Regional do Príncipe, o poder de requerer ao Tribunal Constitucional a declaração da inconstitucionalidade ou de ilegalidade das normas que infrinjam a Constituição, com força obrigatória geral (artigo 147/2).

 b) Garantias Legislativas

Neste domínio, estamos ao mesmo ritmo ou na mesma medida comparada com o estádio embrionário do sistema de fiscalização da constitucionalidade que a última revisão constitucional consagrou. Temos, pois, nesta fase a Constituição como única fonte – pelo menos do ponto de vista substantivo – de garantia legislativa que temos, socorrendo-nos, em termos processuais, sobretudo e subsidiariamente, das regras do Código de Processo Civil, sabendo-se, em abono da verdade, que ainda não existem leis que instalam (art. 156.º) e que regulam a organização, funcionamento e o processo do Tribunal Constitucional, sendo certo que os projectos dessas leis já foram aprovadas há já alguns meses, tendo o Tribunal, mesmo assim e paradoxalmente, decido algumas questões em matéria de fiscalização da constitucionalidade. E, até então, o Tribunal só se pronunciou sobre a fiscalização preventiva e fiscalização concreta.

Existem, portanto, já aprovados, vários diplomas legislativos tanto substantivos como processuais que visam a implementação da jurisdição constitucional.

Importa precisar que foi ainda este ano de 2006 que se recompôs o Supremo Tribunal de Justiça com os dois juízes conselheiros para a jurisdição constitucional, como assim manda a Constituição quanto a modalidade provisória desta jurisdição.

c) Garantias jurisdicionais

Como já foi referido, o actual sistema de controlo da constitucionalidade assenta numa fiscalização judicial, estando cometido ao Tribunal Constitucional essa tarefa de velar pela conformidade dos actos normativos com a Constituição.

Tendo em conta que ainda não há nem prática nem cultura dessa tarefa a nível do Estado e mesmo da sociedade em geral, senão a nível académico em que o domínio e o conhecimento é apenas dos juristas e alguns políticos e intelectuais curiosos, por um lado, e por razões de ordem financeira e até mesmo infraestruturais, por outro, a própria Constituição actual optou por consagrar duas fases para institucionalização do Tribunal Constitucional.

Numa primeira fase transitória, o legislador constituinte optou por cometer ao Supremo Tribunal de Justiça a acumulação de funções de Tribunal Constitucional, precisando o artigo 156.º que “Enquanto o Tribunal Constitucional não for legalmente instalado, a administração da justiça em matéria de natureza jurídico-constitucional passa a ser feita pelo Supremo Tribunal de Justiça…”.

 

Para o efeito, determina o artigo 157.º que “Enquanto exercer as funções de Tribunal Constitucional, o Supremo Tribunal de Justiça é composto por cinco juízes, designados para um mandato de quatro anos…”, sendo que três são os actuais conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, dois outros provêem da nomeação pelo Presidente da República e eleição pela Assembleia Nacional.

Importa salientar que mesmo nesta vertente, a integração da função de fiscalização da constitucionalidade no Supremo Tribunal de Justiça, subsistem dificuldades de vária ordem, mesmo em termos de instalações, dado que o actual edifício onde está instalado o Supremo abarca também o Tribunal de Primeira Instância – o que já em si é desaconselhável. E que ainda não há legislação própria que regula a orgânica, o funcionamento e o processo nessa formula encontrada.

A par desta estruturação transitória, a Constituição contempla no seu artigo 131.º a existência do Tribunal Constitucional de raiz e autónomo, estabelecendo uma composição de cinco Juízes, todos eles eleitos pela Assembleia Nacional, para um mandato de cinco anos.

3. CONTROLO DA CONSTITUCIONALIDADE

a) Fiscalização preventiva

 

Está previsto no artigo 144.º da Constituição a fiscalização preventiva que compete apenas ao Presidente da República. Entretanto, quanto aos diplomas que devam ser promulgadas como lei orgânica, o n.º 3 desse artigo confere a algumas entidades poderes para suscitar a verificação ou confirmação da conformidade dos actos normativos com a Constituição em caso de dúvida, antes que os diplomas que o comportam entrem no ordenamento jurídico como lei orgânica. Ou seja, o Presidente da República, o Primeiro Ministro e um quinto de deputados testam a constitucionalidade de normas aprovadas, embora ainda não promulgadas e publicadas. São normas de diplomas submetidos ao Presidente da República para promulgação como lei orgânica.

Saliente-se que a possibilidade de intervenção de tais entidade pode considerar-se subsidiária, tendo em conta que se trata de diplomas todas elas submetidas a promulgação do Presidente da República como lei orgânica.

E para o funcionamento desse mecanismo subsidiário, a Constituição exige que o Presidente da Assembleia Nacional comunique ao Primeiro Ministro e aos Grupos Parlamentares todos os diplomas que forem enviados para promulgação como lei orgânica.

b) Fiscalização sucessiva concreta

                

A fiscalização concreta prevista no artigo 149.º da Constituição contempla, obviamente, uma fiscalização sucessiva e difusa, na medida em que se trata de aplicação ou não de normas que forem julgadas inconstitucionais no pleito.

Fiscalização concreta, por se tratar de aplicação de normas aos casos subjudices, ou seja nos processos em curso nos Tribunais. Obviamente sucessiva porque os Tribunais só aplicam ou não normas que já estão em vigor, ou seja normas contidas nos diplomas aprovados, promulgados, publicados e já eficazes (vacatio legis).

Difusa, porque, como reza a constituição no seu art. 129/1 que deve ser conjugado com o art. 149.º,  “Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais, aplicar normas que inflijam o disposto na Constituição ou nos princípios nela consagrados”. Ou seja todos os tribunais estão incumbidos de fiscalizar a constitucionalidades das normas jurídicas em vigor, mas, obviamente, em primeira instância e passível de recurso para o Tribunal Constitucional que decide, a final, se as normas são ou não constitucionais.

Sendo concreta, a legitimidade de recurso para o Tribunal Constitucional cabe às partes ou ao Ministério Público, nos termos gerais. Saliente-se que há recurso obrigatório por parte do Ministério Público quando esteja em causa a não aplicação de normas previstas nas convenções internacionais, nos diplomas com “valor reforçado” e ainda quando os Tribunais apliquem normas anteriormente julgadas inconstitucionais ou ilegais pelo próprio Tribunal Constitucional.

c) Fiscalização sucessiva abstracta

Na fiscalização sucessiva abstracta prevista no artigo 147.º da Constituição, temos que se trata, desde logo, de normas que já se encontram em vigor (sucessiva) de cuja fiscalização da constitucionalidade suscitada não se baseia em nenhum caso em si, mas sim trata-se de uma preocupação de fazer expurgar do ordenamento jurídico normas inconstitucionais, por se verificar que a sua aplicação prejudica os interesses dos cidadãos ou do próprio Estado e a declaração de inconstitucionalidade dessas normas tem força obrigatória geral, ou seja aproveita a todos (abstracta).

Daí que, tratando-se de normas de cuja declaração de inconstitucionalidade tem força obrigatória geral, só têm legitimidade para suscitar a sua fiscalização de inconstitucionalidade o Presidente da República, o Presidente da Assembleia Nacional, o Primeiro Ministro, Procurador Geral da República, um decimo de Deputados à Assembleia Nacional e Assembleia Legislativa Regional e o Presidente do Governo Regional do Príncipe.

Ainda nesta sede de fiscalização abstracta, o Tribunal Constitucional fixa jurisprudência quando, tenha havido declaração de inconstitucionalidade de uma norma em três casos concretos, ficando esta decisão com força obrigatória geral. Ou seja é uma situação em que de casos concretos (processos judiciais) brota para uma generalidade de situações da vida social como se de uma norma legal se tratasse.

d) Fiscalização por omissão

Finalmente, temos a fiscalização por omissão, ou seja uma não concretização de normas programáticas, não exequíveis por si própria, previstas na Constituição, sobretudo no domínio legislativo. Ou seja há inconstitucionalidade por omissão quando o legislador ordinário não produz leis em implementação do que vem previsto na Constituição. Pode inclusive haver inconstitucionalidade por actos políticos ou de governo.

Esta modalidade de fiscalização de constitucionalidade está prevista no artigo 148.º da Constituição que diz que “o Tribunal Constitucional aprecia e verifica o não cumprimento da Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias para tomar exequíveis as normas constitucionais”. Acrescentando no n.º2 que “Quando o Tribunal Constitucional verificar a existência da inconstitucionalidade por omissão, dará disso conhecimento ao órgão legislativo competente”.  

A legitimidade para suscitar a fiscalização de inconstitucionalidade por omissão é restrita ao Presidente da República e ao Presidente da Assembleia Legislativa Regional, a este apenas quando estejam em causa os direitos da Região Autónoma do Príncipe.

HILÁRIO GARRIDO

Juiz Conselheiro do Tribunal Constitucional

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