Cultura

O texto curatorial da BIS é uma obra de arte

O Texto Curatorial da VII Bienal Internacional de São Tomé e Príncipe(BIS), é de autoria da jornalista e poetisa São de Deus Lima. Um manifesto, do maior evento cultural de São Tomé e Príncipe, que começa oficialmente este sábado. 

VII BIENAL

Re(design) in STP

No princípio, foi a incandescência das lavas. Magmas. O primeiro designer, arquitetura primordial.

E esculpidos foram os basálticos contornos, a elevada sinuosidade das linhas, a robustez dos ombros, a musgosa espessura da testa.

Desígnios de expansão e dominação nos panos soltos ao vento, vieram depois as caravelas, desafiando tormentas e adamastores. E, de réplicas do paraíso, as ilhas se converteram em ignóbil laboratório de (des) humanas experiências. Cortados, porém, do seu chão, bastardos da palavra e patronos da voz trouxeram, agarrados às fímbrias do coração, incrustados na planta dos pés, os ecos de perdidos Kwanzas, distantes rios, a potência das suas raízes.

E, certo dia, do ventre do mar, uma ensimesmada criança viu emergir uma nova e estranha flor.

Aquela flor mastigava coágulos de sangue, sementes de orvalho, partículas de insepultos ossos, ambíguas orações, a inusitada lembrança de uma música erudita, algas e fetos, a bondade dos frutos e o viço do sol, para se abrir depois, arduamente, revelando a imparável marcha das horas. No seu profundo, penoso nascimento, aquela flor dançava um ritmo assombroso.

Implacáveis, o tempo e o modo insulares inventavam os seus habitantes.

Aqui os canaviais, aqui o café, aqui o cacau. O espectro, também, de longínquos, apenas imaginados, algodoais, que Gorée é e será sempre nome de ilha, perfil de irmã.

Ínsula, de nome santo chamada, por aqui transitaram escoltados, atados caminhantes: seus olhos de infindo medo e imperecível saudade, seus batuques abafados, suas proibidas liturgias, a indestrutível ressonância dos seus cantos, a libertadora adaptabilidade dos seus desterrados deuses.  As frias pedras das fortalezas guardam ainda o timbre de suas díspares falas. Também elas impregnaram a invenção que fomos, a reinvenção que fomos sendo, pássaros de hirsutas asas perscrutando rotas entre escolhos.

A cerimonial Ússua, a Dêxa, o Socopé, o Danço-Congo, o Vindes-Mininos, o Kiná, o Txiloli, o Auto de Floripes, o Bokado, a Puíta, o Ndjambí, a Xtleva, o Xtlundo dizem da composta  marca dos nossos pés na terra por nós proclamada nossa enquanto nos fomos, inexoravelmente, construindo.

Mesmo quando a mordaça pesava qual condenação, logramos despedaçar a mudez. Entre sombras e luz, continuamos nos desenhando e redesenhando. Rejeitámos renunciar ao tempo da palavra, ao tempo da voz própria.

Para derrotar o fantasma da loucura e vencer a solidão, muitos nomes foram esquecidos, outros amassados e subvertidos, novos modos de dizer se instituíram. De distintos idiomas forjámos novas sementeiras.

Permutámos signos e rituais, códigos e senhas. Lado a lado, plantamos o mikokó e o manjerico, aprendemos a amar o caribenho sabor da fruta-pão, empunhamos, orgulhosos, o ceptro da rosa de porcelana. Nessa permanente inconclusão, fomos esculpindo e reesculpindo as nossas feições de obô e de mar.

Ave somos e tronco e rizoma, sintetizados na nossa atlântica singularidade. Imitando, em Aimé Cesaire, o poema, convocamos o apelo de outras ilhas, arquipélagos e continentes.

Não diz o Bulawê dos diversos tempos do verbo dançar conjugados em nós? Não é imprescindível o aroma do alho na frescura do nosso peixe? Não se mistura harmoniosamente o louro ao óleo de palma na esverdeada tonalidade do calulú? Em que outra ilha se tempera a cachupa com ossami e pau – pimenta? Não ganha o orientalíssimo caril, nas nossas bocas, um inimitável sabor de manga verde e de trópico? Não solicitamos a bênção dos santos padroeiros e pagamos o dêvê?

Nesse nosso modo tão nosso de não nos destituirmos, eis que gravámos, no centro de uma drapejante bandeira, a iridescência do arco-íris, os altos acordes do hino.

Porém, a partir do centro da bandeira e das alturas do hino, queremos continuar a navegar com um rijo e forte remo. Queremos, com os pés fincados no chão da terra, (re) desenhar voos e navegações, penetrar a luminosidade de longínquas cidades, desvendar o mistério dos mares que liquefazem as nossas dores, redescobrir as linhagens dos griots, conquistar os segredos de todas as ciências, revelar as nossas mutáveis frontes de ontem e hoje e futuro.

Nestes tempos de planetários constrangimentos e angústias e desafios, queremos decifrar os recados de ontem e de antes de ontem, escavar os insuspeitados prodígios do presente, não renunciar jamais ao usufruto dos sumarentos dias vindouros. A nossa pele murmura a nossa sede e o nosso amor das frutas torrenciais.

Queremos globalizar as desavindas parcelas dos nossos sonhos e anseios, cicatrizar as nossas lacerações, viajar ao outro extremo da terra na moldura de um pequeno ecrã, conhecer os enigmas da tribo azul, entender a linguagem dos cometas, regressando sempre ao coração da casa que é nossa.

Queremos compreender a razão das nossas agruras de hoje, o longo mas sempre tão vigoroso lamento das mães, a extensão das distâncias percorridas pelas nossas crianças rumo à escola, a disparidade nos nossos modos de caminhar, nossos desajeitamentos, o espinho nas discrepâncias ente vizinhos e irmãos, a persistência das falas desencontradas. E porque, citando a poetisa, ‘’ quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem’’ queremos, a partir do que fomos e do que estamos sendo, refundar a nossa relação connosco próprios e com os outros. Ousemos ser ambiciosos, buscando incessantemente a justeza no nosso jeito de ir sendo e de ir estando.

Ousemos despedir o estigma do medo e dos preconceitos que ameaçam tolher-nos as asas. Ousemos incutir uma justa, suficiente dose de impaciência no nosso modo, no nosso ritmo de fazer. Queremos reaprender a celebrar o nosso esplendor e a esconjurar os nossos horrores. Repensar o nosso modo de olhar e de nos olharmos, sem jamais nos renegarmos, porque somos.

Queremos muitas bibliotecas, centros de leitura, livrarias. Que o livro seja um prolongamento da mão.

Queremos repensar os desenhos das nossas ruas e a condição das nossas casas. Queremos conquistar a água pura e a luz em prumo como um direito. Queremos enterrar a indigência, a cabisbaixa mão estendida.

Queremos reconceber a função e o destino dos patrimónios materiais e imateriais que nos distinguem. Queremos redesenhar um quadro que autenticamente nos reflicta e nos projecte no que de melhor temos e somos.

Queremos preservar as flores cujos nomes nos foram legados pelas nossas avós e escrever os nomes de novas flores.

Intacto o verde das nossas florestas, cristalinos, de novo, os nossos rios com seus ágeis cardumes de charrocos e camarões e papês.

Queremos escutar o acervo de um velho kontadô soya e chamar-lhe respeitosamente mestre. E gravar num livro sagrado as soyas para que não se desvaneçam.

E, sim, queremos projectar e celebrar o talento dos nossos criadores: nossos músicos, pintores, escultores, escritores, dançarinos, estilistas, os artistas do Txiloli, do Auto de Floripes, do Danço-Congo….

O que é o lema da VII Bienal de Arte e Cultura, senão o esforço de afirmação de tal imperativo, de tais desígnios?

Apostar na conjugação das valências existentes mas amiúde ignoradas em São Tomé e Príncipe, vindimar a interactividade entre o arquipélago e o mundo, promover múltiplos fóruns de reflexão para identificar e trilhar os melhores caminhos, reforçar os laços com artistas e criadores dos espaços de língua portuguesa, numa celebração do idioma comum que não exclui, antes amplia o abraço a outras fonias, moradias. Permutas, mútuos conhecimentos, mútuas aprendizagens. Estratégias que nos redesenham, que estimulam o outro a redesenhar-se desenhando-nos, estratégias que nos incitam a redesenhar-nos no contacto com o outro.

Porque o nosso destino de ilhas é habitar a casa-mundo, a Bienal vem cumprindo a vocação de ser uma janela que, trazendo até nós as formas e as vozes do mundo além, leva além-mundo as nossas formas e a nossa voz.

  • Sophia de Mello Breyner Andresen

Conceição Lima

Poetisa e jornalista

21 Comments

21 Comments

  1. B-13

    29 de Novembro de 2013 at 20:39

    Conceição Lima simplesmente genial. Nao e todos os dias que nos e oferecida a oportunidade de ler uma obra da tamanha inspiracao intelectaul, movida de um espirito patriotico civico.Sintom-me um preveligiado por ler esta cronica e orgulhoso em saber que temos gentes com gabaritos capaz de nos guiar no ponto de vista Humanistico.

    • Verdadeiro admirador

      30 de Novembro de 2013 at 13:52

      Esse texto dignifica Sao Tome e Principe e dignifica a Bienal. Arte de escrever com profundidade e beleza, mesmo quando fala de fenómenos hediondos, como a escravatura. Siga sempre em frente, São.
      Obrigado.

    • MESTRE DA ROÇA

      1 de Dezembro de 2013 at 9:21

      Dra São Lima, conheço a sua grande poesia e os seus escritos, não todos infelizmente. Este texto é na minha opiniao uma especie de manifesto nacional.

      Fala dos horrores do passado sem ressentimeto, do presente com mágoa e esperança, projeta o futuro que todos queremos. Um documento visionário.

      Agradeço as suas citações de DOIS grandes poetas, Aimé Cesaire e Sophia de Mello Breyner. Faça-nos grande favor de nao deixar de escrever.

  2. admirador

    29 de Novembro de 2013 at 22:29

    Bom, achei o texto muito fraco e muito má ideia misturar citações da grande Sophia de Mello Breyner

    O melhor de tudo é sem dúvida a foto da poetisa e jornalista São de Deus Lima. Acho-a super sensual..

    • Juven

      30 de Novembro de 2013 at 11:48

      Admirador,

      Você é a voz pura da inveja.

      Deve ser alguém que gostaria de escrever e de pensar como a Conceição Lima.

      GRANDE texto, GRANDE Conceição.

  3. Estudante

    30 de Novembro de 2013 at 0:28

    A CASA

    Aqui projectei a minha casa:
    alta, perpétua, de pedra e claridade.
    O basalto negro, poroso
    viria da Mesquita.
    Do Riboque o barro vermelho
    da cor dos ibiscos
    para o telhado.
    Enorme era a janela e de vidro
    que a sala exigia um certo ar de praça.
    O quintal era plano, redondo
    sem trancas nos caminhos.
    Sobre os escombros da cidade morta
    projectei a minha casa
    recortada contra o mar.
    Aqui.
    Sonho ainda o pilar –
    uma rectidão de torre,de altar.
    Ouço murmúrios de barcos
    na varanda azul.
    E reinvento em cada rosto
    fio a fio
    as linhas inacabadas do projecto.

    Conceição Lima

    in ‘O Útero da Casa’

  4. Angolar

    30 de Novembro de 2013 at 11:03

    PATRIMÓNIO IMATERAL DA NAÇÃO.

  5. Mina santome

    30 de Novembro de 2013 at 11:53

    Obrigado, SAO DEUS LIMA.

  6. Rodnusca

    30 de Novembro de 2013 at 15:53

    Seja lá quem for o sr. admirador nota-se que é uma pessoa extremamente invejosa que não percebe nada de literatura e que nao se inibiu em vir cá a este forum espelhar o seu ressentimento contra uma grande mulher e escritora com um talento inquestionável….

  7. Barão de Água Izé

    30 de Novembro de 2013 at 17:39

    Há críticos literários que afirmam que há escritores não ingleses que escrevem melhor que os ingleses, nomeadamente, escritores indianos.
    Conceição Lima está no patamar dos escritores não portugueses que está acima do que muitos escritores portugueses produzem. A escrita tem género? Na minha opinião só falta, e desculpe-me, esta pequenina critica, um pouco de doçura, de suavidade, então aí será de certeza uma das principais escritoras da Língua Portuguesa.
    Parabéns por esta bela peça para a BIS!

    • PROFESSOR DE LITERATURA

      1 de Dezembro de 2013 at 20:06

      Barão de Água Izé, o senhor está um pouco atrasado. Conceição Lima já é considerada um dos grandes nomes da literatura de lingua portuguesa com três livros publicados. O problema de muita gente é que ela pratica um lirismo muito doloroso as vezes, porque remexe na história e uma história com horrores. Mas a sua poesia é profundamente lirica mesmo quando parece ser ou é épica.

      O poema que o Esudante publicou aqui, chamado A CASA é uma grande prova do seu lirismo profundo, isso que voce chama doçura e que eu nao sei muito bem o que é. Conceição é profundamente lirica sem ser piegas. GRANDE POESIA, GRANDE ESCRITA. Obrigado.

    • Poesia

      1 de Dezembro de 2013 at 21:02

      Arquipélago

      O enigma é outro -aqui não moram deuses.
      Homens apenas e o mar, inamovível herança.

      Conceiçao Lima in ‘A Dolorosa Raiz do Mcondó’

    • Barão de Água Izé

      1 de Dezembro de 2013 at 21:55

      Caro Professor de Literatura; Pieguice é sinónimo de doçura? Não, não fácil para qualquer escritor exteriorizar doçura na escrita sem ser piegas, melado ou tolo. O Caro Professor não leu bem: escrevi que C. Lima já está no patamar de quem melhor escreve em Língua Portuguesa. O que tem a ver a Literatura com a questão do género, que referi? Com a resposta correcta, compreenderá o que escrevi.

  8. Me Posson

    1 de Dezembro de 2013 at 0:39

    Passado, presente e visão de futuro do nosso país numa escrita simplesmente fabulosa.

    Agradeço a Sao por ser são-tomense sempre e não só quando convem como certos ditos escritores santomenses que circulam por aí batendo no peito e fazendo muito barulho não sei para quê.

  9. Hintze

    1 de Dezembro de 2013 at 22:05

    sr. Admirador, o seu comentário invejoso, questionavel e sarcástico é prova do tamanho da sua ignorância e mesquinhice.
    cresça,ganhe maturidade e deixe de ser invejoso.
    E ja agora volte pra escola e vê se minimiza a sua burrice.

  10. Mentu

    1 de Dezembro de 2013 at 23:24

    Santos de casa não fazem milagres.
    Vieram os angolanos e a São escreveu esse magnífico texto para a BIS. Quantas coisas medíocres não são encomendadas todos os dias a gente que nem sabe conjugar como deve ser? E mais não digo a não ser que os votos contra são de invejosos e mal agradecidos.Deviamos sentir orgulho. Fui.

  11. Carlos Magno

    2 de Dezembro de 2013 at 5:17

    Doutora São Lima, quando alguém lhe perguntar quem é e o que faz, responda assim – sou poeta, escritora e jornalista. Penso e faço pensar os meus compatriotas de todos os quadrantes.
    Muito obrigado deste seu admirador.

  12. C.C.

    2 de Dezembro de 2013 at 9:35

    Domínio da História, da cultura e visão do presente e do futuro colectivos. Domínio exímio da língua portuguesa. Esse texto escorre poesia do princípio ao fim. Obrigado, São.

  13. De Longe

    2 de Dezembro de 2013 at 17:25

    Admira-me que alguém consiga harmonizar tanta informação e tanta formação social com um estilo tão irrepreensível de produzir o belo.
    “Ousemos incutir uma justa, suficiente dose de impaciência no nosso modo, no nosso ritmo de fazer. Queremos reaprender a celebrar o nosso esplendor e a esconjurar os nossos horrores. Repensar o nosso modo de olhar e de nos olharmos, sem jamais nos renegarmos, porque somos.”
    Detive-me no parágrafo que transcrevi e, perdoem-me a revelação, perguntei-me: – Quem é a São e quais os limites dessa pensadora?
    Para além de falar dos locais, dos acontecimentos, dos horrores, da beleza, a São ainda tenta transportar-nos para uma luta interna – dentro de cada indivíduo – para nos libertarmos no sentido de busca conjunta de uma sociedade mais iluminada.
    Se o imortal Bob Marley dizia “Libertem-se da escravidão mental; Ninguém além de nós mesmos pode libertar as nossas mentes”, a São ensina a fazê-lo.
    Acredito que mesmo que o processo se vá retardando, a terra que produza uma São não o faz em vão. Ainda que seja noutras gerações esta passagem pela vida terã de dar frutos.
    Peço a todos que nos não atrasemos muito.
    São,
    tem uma lindíssima imagem feminina que muito aprecio, mas tenho a certeza de que seria muito redutor não a apreciar pelo dom que mais a orgulha e a faz sentir útil à Nação e ao Mundo.
    Sincero admirador das suas qualidades universalistas.
    Horácio Will

  14. Joe

    3 de Dezembro de 2013 at 10:08

    Recomendável como texto de leitura e reflexão para alunos do secundário (9º em diante) e estudantes do Ensino Superior. E, também para reflexão e debate, em ciclos de leitura, tertúlias, etc.

    Quem somos, donde viemos e para onde vamos? Perguntas que nos devemos pôr permanentemente.

  15. Manuel da Graça

    10 de Dezembro de 2013 at 1:59

    Caro amigo Horácio Will,

    ‘Kè labado a ka koncê djinà xcada’ – assim dizemos na nossa língua materna (Forro).

    A robustez intelectual e a pujança cultural que a nossa admirada São de Deus Lima vem, de há muito, denotando já não devia causar admiração ou espanto. Ao invés, o ‘suspense’ e o deleite tomam conta de mim, deixando-me com tanta “água na boca” que, o desejo de ler SAO DE DEUS LIMA se torna insaciável. Assim, além do justificado parabéns à poetisa, quero aqui também deixar os meus sinceros agradecimentos e votos de sucessos para a sua carreira.

    Bem haja, São!

    Graça

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