Estive presente na abertura do ano judicial em São Tomé e quero partilhar com os leitores a ideia com que fiquei sobre a justiça neste nosso pequeno, mas deslumbrante arquipélago.
Ouvi com particular interesse o discurso do Senhor Bastonário da Ordem dos Advogados. Devo confessar que fiquei deveras surpreendido com as criticas que este teceu ao sistema de justiça, mais concretamente ao poder judicial. Isto causou um certo mal-estar a alguns dos juízes presentes na sala que optaram por abandonar os seus lugares, assim que o Bastonário começou a falar do caso GGA (Gabinete de Gestão das Ajudas).
Pode-se alegar que os juízes saíram por um qualquer outro motivo e que não se sentiram incomodados com a crítica do Bastonário da Ordem dos Advogados. Em princípio qualquer explicação poderia ser plausível, mas se fizermos uma análise mais aprofundada, constataremos que não. Assim que Bastonário mencionou o caso GGA os juízes responsáveis pelo caso deixaram a sala. Nestas coisas a que dizer-se “não há coincidências”.
Foi bom ouvir as críticas do senhor Bastonário ao sistema, isto caracteriza um verdadeiro Estado democrático de direito, onde a função do Bastonário dos Advogados é ser o advogado dos advogados. Além do mais é importante frisar que o advogado participa na administração da justiça e como tal tem a obrigação/dever de colaborar para o bom funcionamento da mesma.
Para alguns é uma voz incómoda, para outros trata-se de uma voz que se levanta na defesa dos direitos e das garantias dos cidadãos. Estamos com os que defendem a segunda posição.
Antes de entrada em vigor do Estatuto da Ordem dos Advogados (2006) o controle do exercício da profissão (quer o acesso a esta, mediante inscrição, quer a observância das normas que a disciplinavam) estava confiado aos Juízes. Neste modelo sacrificou-se assim a independência dos Advogados.
Hoje com o Estatuto da Ordem dos Advogados, veio-se a estabelecer que a Ordem dos Advogados (instituição de direito público representativa dos licenciados em direito que, em conformidade com os preceitos deste Estatuto e demais disposições legais aplicáveis, exercem a advocacia) é independente dos órgãos de Estado, livre e autónoma na sua organização e na realização das suas atribuições. O facto de ser independente, não significa ser libertino, O advogado é responsável perante a lei ou seja a sua liberdade tem limites dentro do Estado de Direito.
Não há dúvida que a Ordem dos Advogados significou um ganho para a nossa justiça. Com a criação da Ordem dos Advogados tornou-se possível saber o que pensam os advogados sobre a justiça. O sistema não os pode ignorar, pois estão aqui para participarem e darem o seu contributo na administração da justiça. Os senhores juízes têm que compreender que de agora em diante a voz dos advogados terá de ser tida em conta, ao contrário do que acontecia no passado com o controle feito pelo conselho superior da magistratura.
Apesar de o Estatuto da Ordem dos Advogados constituir já um significativo avanço no nosso sistema de justiça, ainda assim convém fazer alguns reparos como sejam o Estatuto da Ordem dos advogados compara o Bastonário da Ordem Dos Advogados ao Procurador geral da República, mas deixa de fora outros membros. É nosso entendimento que este Estatuto devia ir mais longe e comparar os membros do Conselho Superior, Presidente do Conselho Jurisdicional e os membros do Conselho Jurisdicional aos Juízes Conselheiros, e os restantes advogados deviam ser comparados aos Juízes de Direito. Só assim seria possível dar uma maior dignidade a profissão de advogado.
Agora analisando o discurso do Senhor Presidente da República (referente a abertura do ano judicial) devo dizer que fiquei um pouco apreensivo quando este sugeriu uma avaliação por parte de avaliadores estrangeiros, aos Magistrados de STP. A minha primeira reacção foi a de que isso é inconcebível num Estado independente. Reflectindo nas palavras do Senhor Presidente surge a dúvida, se este não confia nos magistrados do seu país, se tem alguma razão para não deixar esta avaliação nas mãos de entes nacionais, no entanto, os próprios senhores Magistrados têm contribuído para esta desconfiança e descredibilização na classe.
Como exemplo temos vistos vários concursos para cargos de Magistrados a serem completamente desvirtuados, assim como o comportamento de alguns senhores Magistrados não tem sido a mais adequado no seio da sociedade. Esperamos que com a nova Presidência do Conselho Superior da Magistratura as coisas mudem para o melhor, porque só com juízes respeitados e honrados nos seus cargos é que teremos uma justiça digna desse nome.
Outro dos aspectos que achámos relevante no discurso do Senhor Presidente foi a sugestão de que todos os Magistrados deveriam ter formação em Direito e que aqueles que não fossem licenciados deviam-se inscrever na licenciatura em causa, ou então se assim o não fizessem, deveriam abandonar o exercício da magistratura.
Neste aspecto não podemos estar de acordo com o Senhor Presidente da República, é preciso recordar que muitos destes magistrados que hoje não têm uma formação superior em Direito prestaram no entanto um inestimável serviço ao país. Com a independência não dispúnhamos de quadros formados em número suficiente para garantir o exercício da magistratura no arquipélago. Foi graças a estes senhores, que com dedicação e sacrifício pessoal, foi possível manter o sistema judicial a funcionar com dignidade, sem eles, teríamos conhecido o caos.
É obvio que os tempos mudaram, mas devemos respeitar os direitos adquiridos e como tal não se pode obrigar estas pessoas a matricularem-se num curso de Direito. Se houver uma lei nova em que os senhores juízes devam ser licenciados em Direito esta deverá aplicar-se somente aos novos juízes e não àqueles que já estão a exercer a profissão ao abrigo de uma outra lei em que não era exigido ser-se licenciado em Direito.
Não faz sentido obrigar estes juízes a inscreverem-se agora numa universidade para tirar um curso de Direito, estas pessoas ganharam um estatuto na sociedade e devem ser respeitados como tal. É um direito adquirido, que para mais foi conseguido nas horas difíceis, em que tudo era novo e havia que dar respostas imediatas, não sejamos ingratos para com estes homens.
Ora, já que estamos a falar da justiça de uma forma generalizada convém tecer algumas considerações sobre a prática do notariado em São Tomé. Não se admite que haja apenas um serviço de notariado para servir todo o São Tomé e este não oferecer as mínimas condições, quer para aqueles que lá trabalham, quer para os cidadãos. Se chover não existe forma de proteger os arquivos e com isso milhares de dados correm o risco de desaparecer. É inconcebível não haver um lugar adequado para conservar o arquivo da Conservatória do Registo. Em pleno século XXI ainda existem documentos a serem feitos (na conservatória dos registos) pelas antigas máquinas de escrever.
A explicação é no entanto razoável, perante as constantes falhas de energia, este instrumento de trabalho parece o mais adequado para responder de forma célere aos cidadãos. A pergunta que faço é simples, como é possível num edifício onde funciona serviço dos Tribunais e o Notariado não haver um meio alternativo para se fazer face às falhas de energia? Não podemos querer repostas dos serviços enquanto o governo não resolver o grave problema da energia no nosso país. Para o bem do nosso povo é urgente o governo resolver essa situação, de modo a que, não só os serviços essenciais, mas toda a população, todo país possa de alguma forma usufruir deste bem essencial que é a luz eléctrica.
Outras das coisas que contribui em grande medida para a morosidade, é a burocracia existente no nosso sistema de justiça. Como exemplo, para que um cidadão possa interpor uma acção ou requerer o que quer que seja perante o tribunal, tem que sempre fazer o reconhecimento da assinatura, quanto não, o documento não será aceite. Uma simples procuração não pode ser feita por computador, tem que ser escrita à mão e proceder-se ao reconhecimento da assinatura.
Estas coisas parecem pequenas, mas na prática são um estorvo ao cidadão. Imagine-se alguém que não sabe ler nem escrever e por um motivo imperioso teve de se ausentar do país e precisa de passar uma procuração a um seu familiar para que este resolva cá os seus assuntos, este cidadão não poderá fazê-lo. A procuração só poderá ser válida, se feita mediante presença do conservador. Onde ficam aqui os direitos dos analfabetos?
Penso que no futuro, para desburocratizar a nossa justiça há que passar mais competências aos advogados. A conservatória de São Tomé está a abarrotar de serviço e considero que muito destes serviços como o reconhecimento da assinatura, entre outros, podia e devia ser feito pelos advogados.
Afinal todos queremos o mesmo, uma justiça célere, mas segura, que como sabemos constitui um indiscutível pilar do desenvolvimento, que todos queremos e desejamos para as nossas ilhas.
Odair Baía