Ninguém era capaz de especular ou duvidar de uma só vírgula. Tudo teria vindo de um agente policial. Nada de anormal. O homem da lei viu e reagiu a tudo sem que da pistola fosse capaz de atirar uma só bala.
Todos sabiam que não faltavam fantasmas pelas ruas da cidade em conluio com uns mestres que, de lua em lua, desenterravam cabeças de defunto para penitências da vida no lugar da morte ou da morte no sítio dos vivos.
Não tardara que a manhã de sábado fosse invadida por mais uma misericordiosa notícia. Em Porto Real ou Sundy, Belo Monte ou confins do ilhéu Bombom até Ponta do Pico Negro, todos já crebentavam o mundo que Deus há muito abandonara aos diabos.
Havia seus filhos aos olhos do mundo que despistavam o futuro a morar em Santomé. Barcos que tardavam em chegar com a vida ou por vezes, de tempo em tempo, afogada e enterrada a dezenas no mar sem enterro.
A vida que se arriscava em pirogas até Gabão onde o futuro também por lá jamais morou de verdade. Tudo era de suportar pela insularidade.
O último abanão vindo da noite de sexta-feira era mesmo de elevar-se as duas mãos aos céus rogando pela urgente intervenção do Divino. Fim do mundo.
As segundas e sextas eram dias em que tudo podia acontecer quer numa, quer na outra ilha. São Tomé e no Príncipe. No centro das decisões do Estado ou na parcela subjugada aos castigos do isolamento.
Os fantasmas preferiam soltar a força ao meio dia ou nas noites de abrir e fechar a semana útil. Não eram de dar-se ao trabalho. Talvez pretendessem que os homens consolassem o sacrifício apenas de terça à quinta-feira ou adiar tudo, leve-levemente, para amanhã.
Não era a primeira vez que hecatombe provocava eco em toda a ilha com o sumiço de uma criança levada pelo demónio.
Ainda não havia eleições democráticas para que os homens num acto alucinado e em nome do Estado mandassem fechar eternamente as escolas públicas pela segurança das crianças ávidas de regressar ao desfile das batas e de conhecimentos em contraste ao faz-de-conta da classe docente que nem tá aí.
Nem era conjuntura para que os portugueses cultos – políticos, advogados, académicos e jornalistas – no gozo da democracia, darem cartas em defesa e lisonjeio do Príncipe, o filho do Rei, intimado pela Justiça para esclarecer ao assassinato de Valdevinos, o filho do povo da Corte Baixa.
Até os adultos com oração na boca já se puseram em fuga e o satanás cavalgando, rondou-lhes a casa matando todos os animais de cria e de subsistência familiar.
Vez e outra chegavam as mesmas notícias de Santomé que pouco a pouco se via defendida dos demónios devido ao cheiro de combustível que os carros soltavam na circulação. Gasolina e gasóleo afugentam as más almas.
Os que não abdicassem da ciência como o São Tomé – o santo verdadeiro – diziam que os fantasmas viviam no escuro dos olhos e da mente. Tal o “banho”, a electricidade e o desenvolvimento tiram-lhes a vida.
Pura mentira! Que diga o agente Falésia.
O agente Falésia, o tempo rasura alguns nomes da memória, era mais um dos guardas vindos de Santomé para a manutenção da ordem pública e já corriam rumores que andava na traição ao futuro das miúdas embebidas de rumar para longe do paraíso.
Na noite de sexta-feira correu com fôlego cima-cima até a esquadra policial onde passou ao colega de serviço a tragédia dos seus olhos. Foi preciso um copo com água para juntar-lhe a saliva e organizar as palavras que iriam constar no relato da sua ronda.
O colega do turno tentado pelo que via e ouvia já tremia e não só esbofeteou o narrador com umas mãos de urina, porque não usava saia. Apenas a urina de mulheres afugenta olho leve.
Malandros, os homens das ilhas! Cabra pode non comer folha se passar nariz…
Tudo ficara esclarecido no relatório caligrafado, de tirar o chapéu, do inconsciente homem que lutava com as palavras certas no seu testemunho.
“Na calada da noite, concretamente, a meia-noite aquando da habitual ronda a cidade, após deixar seguro o Paço de Concelhos, a antiga casa do governo colonial legada ao acidente da história, começou a chegar aos meus ouvidos um estranho ruído no silêncio que até a altura apenas quebrado pelas ondas do mar.
Afinei a minha escuta e observação a 100%. Comecei a tomar todas as precauções. Não é do antigamente as notícias de que o inimigo vem rondado as ilhas nos barcos como no tempo dos corsários e piratas franceses e holandeses.
A dada altura deu para distinguir que o ruído era de ferrinhos confirmado pelas faíscas acendidas no escuro subindo ao céu.
A falta de luz na cidade já há anos se faz sentir para a dificuldade do nosso desempenho. O gerador presenteado pelo PM português, dizem por cá, que apenas no dia de inauguração deu uns roncos na central eléctrica. Está morto!
Concentrei toda a minha atenção e o bicho de quatro patas de altura acima da muralha vinha de cemitério em minha direcção abrindo por vezes a boca donde saía um clarão de fogo.
O ar começou a cheirar ao bode, mas não era parceiro de cabra. O bicho era muito grande. As pernaltas esticavam de um passeio ao outro. As ilhas não têm girafas.
Enquanto dirigia-se à mim, mais alto ficava sob o risco de quebrar e enterrar-me no alcatrão esburacado.
Os cabelos puseram-se em pé na minha cabeça de sangue gelado. As pernas aceleravam e eu não saía do lugar. Puxei da arma e carreguei ao gatilho, mas nada. Nem fumaça.
Os cães tomaram a cidade com o uivar jamais ouvido na minha existência de humano confirmando ao que eu via. Mas, consegui lutar contra o diabo e correr até a esquadra a busca de reforço.
O colega Tôtô, o mais baixo do policial que herdou a alcunha de Tôtô Morais, o irmão de Piquina-Piquina e o mais aclamado no famoso relato de futebol do locutor de Santa Margarida, disse-me que eu devia tirar duas fitas de cabelo e fizesse uma cruz no fúsil. Abatia ao diabo.
Infelizmente para manter-me em prumo e como emana a doutrina, fiz corte no dia anterior. Ele opinou que eu podia ter usado o pelo lá debaixo, mas não me ocorreu na altura.
Nenhuma oração organizou-se devidamente na minha cabeça que ficou leve como tafão. Não! Pesada como chumbo. Não! Uma coisa e a outra ao mesmo tempo mas de difícil explicação.
Aliás, na esquadra enquanto eu tomava o chão da terra, vim a deparar que a diabólica situação me impediu de tirar o gatilho de segurança.
Foi uma tragédia que só coragem, luta e fuga impediram a minha morte.
Príncipe, noite de sexta-feira.
O agente”
Foram três dias de pânico e recolher obrigatório por imposição do diabo. Para emaranhar ao alarme as noites nem eram de Lua Cheia para que os especialistas decifrassem na bola lunar algo a imputar ao Estado ou ao Divino.
A juventude que se concentrava na praça para ver a noite acelerar os projectos ancorados na Baía de Santo António, recolhiam cedo aos seus aposentos.
Os vigias que punham ao nu todos os segredos fechados nas casas, nos quintais ou em qualquer canto do escuro que os corpos traiçoeiros alimentavam a alma, perderam os filmes.
As idas a Água Namoro passaram a acontecer antes que o sol se escondesse. Os pescadores andavam em grupo até a faina.
No domingo, as duas missas, da manhã para as mais velhas deixarem a igreja no acerto das fofocas e a da tarde, para os jovens refugiarem-se no namoro, abarrotaram-se para lá da porta sagrada. O entusiasmo do padre rezou e exigiu oração de salvar as ilhas da maldade e do transtorno.
Na tarde de segunda-feira com os copos no senhor Barbosa, não é que apareceu o agente assombrado pelo diabo que lutava para restaurar a bravura policial?
Pôs-se a contar tim-tim por tim-tim toda a ocorrência que só a sua valentia não estaria vivo para relatar a verdade dos factos. O que a vista viu e os ouvidos ouviram a meia-noite de sexta-feira. Noite que deprimiu Santo António quase ao golpe de morte da ilha do Príncipe.
Gabava-se no seu consciente que lhe valera a coragem em enfrentar o demónio ao contrário dos jovens que no banco di Féla Ma Lungua punham em dia a língua portuguesa, relegando no terreno alheio e em coma profundo o lunguiê.
Ao invés de darem-lhe uma mãozinha com que pudessem prender o diabo, aterrorizados, puseram-se em relâmpago. Desapareceram-se do escuro sem deixar qualquer rasto de sumiço.
O único branco, um velho português de Porto que resistiu as investidas de Abril junto a sua esposa negra, foi quem mais o fala-barato abriu gargalhadas para o espanto da malta de idade compondo a veia com um copito da tarde de Santo António.
Aplicou a mão direita no ombro do fastidioso que gozava o dia de folga e esbofeteou-lhe as palavras.
– Oh caro amigo! Afinal! Foi isso que se passou? Na noite de sexta-feira, foi o meu burro que se soltou com a corrente para limpar o capim a cidade.
Na verdade sô Cardoso da Vovó Preta, o velho manco, tinha um burro com o qual o neto carregava a roça Obá até a cidade de Santo António.
Foram necessários três dias de pesadelo para que a ilha contasse a estória com sorriso nos lábios e a paz das almas vivas de regresso ao paraíso.
Ao que ninguém meditava deu-se do inesperado. A rumaria de todos, mesmo os vindos de Santomé, tomou de assalto ao quintal de Maria Preta. Todo o mundo pasmado a fotografar o burro preso que mandou na ilha, pelo menos, por três longas noites.
A velha Lavres recebia os visitantes com canções de dêxa que só ela tinha na ponta da língua. Numa delas e que ninguém leu na altura a tradução para o português, Vovó Preta, o nome de herança do tempo, prometera pouca coisa. No quintal que nasceu e criou o burro para mandar em Santo António, tinha nascido o papagaio que um dia viria a dar outro rumo a navegação da paradisíaca ilha.
Num temporal abanando as ilhas, únicas, ajustadas no meio do mundo, não era de descortinar que o futuro podia morar tão perto das mentes atrofiadas na desconfiança do tempo correndo no registo das memórias.
Há desafios únicos de um burro como que autor de um testamento falso para crentes levarem ao juízo e um papagaio dando voos na caminhada hábil e sábia na insígnia da Natureza.
Inimaginável! Da génesis de uma Maria Preta do Príncipe, velha crente no iluminar das consciências no desenvolvimento sustentável entranhado na mais emblemática das dêxas, reinventou-se o embalo da ilha para a relíquia santomense pondo fim aos fantasmas e traumas de Santo António.
02.10.14
José Maria Cardoso