Muitos se perguntam: o que teria acontecido se os vídeos sobre os acontecimentos de 25 de Novembro não tivessem sido divulgados? Que sequências teriam tido os acontecimentos? Quem seriam os culpados? Haveria mais vítimas? Onde estraríamos hoje? Já todos sabemos que antes dos vídeos houve uma narrativa e depois dos vídeos novas narrativas se sucedem. Mas uma pergunta fica no ar e paira como uma espada sobre algumas cabeças. Haverá mais vídeos dos acontecimentos que ainda não foram divulgados?
Publiquei há algum tempo atrás um texto com o título de Crimes sem castigo, culpados sem perdão, no qual apresentei o relato de Hanna Arendt sobre o julgamento de Eichmann, um alto oficial nazista. O julgamento de Eichmann aconteceu em 1961. Durante o julgamento declarou-se inocente, afirmando que era um funcionário que só cumpria ordens.
Durante o julgamento o Procurador-Geral israelita apresentou a transcrição de uma entrevista com correcçõesfeitas pela mão do próprio Eichmann onde ficava claro que mais do que um simples funcionário que cumpria ordens, era de facto, um dos arquitectos da Solução Final, um ideólogo que executou a missão de exterminar milhões de judeus.
Eichmann negou a veracidade da transcrição e exigiu que o Procurador apresentasse as gravações a partir das quais as transcrições haviam sido feitas. Durante o julgamento o Procurador não conseguiu apresentar as gravações e a tarefa de condenar Eichmann ficou dificultada. No entanto ele acabou finalmente por conseguir que o criminoso fosse condenado a morte pelos seus hediondos crimes.
Perguntas se levantaram na ocasião. Por que razão as gravações não foram apresentadas em Tribunal, o que teria facilitado a condenação do criminoso. Existia mesmo uma gravação?
Vi na semana passada um documentário intitulado “A Confissão do Diabo: As Gravações Perdidas de Eichmann: que revela o conteúdo das gravações das conversas do criminoso alemão com outro criminoso nazista.
As gravações foram feitas por Willem Sassen, um jornalista holandês e propagandista nazi durante a Segunda Guerra Mundial, que fez parte do grupo de nazis que se refugiaram em Buenos Aires. Sassen e Eichmann avançaram para um projecto de gravações tendo em vista a publicação de um livro após a morte de Eichmann.
Após a captura de Eichmann por parte dos israelitas, Sassen vendeu as transcrições à revista Life, e terá guardado outras cópias que eventualmente comercializou.
A seguir à execução de Eichmann, os áudios originais foram vendidos a uma editora europeia e posteriormente adquiridos por uma empresa que quis permanecer no anonimato e depositá-los nos arquivos federais alemães em Koblenz, com instruções de que deveriam ser usadas apenas para fins académicos. As autoridades alemãs e o proprietário dos áudios deram aos cineastas israelitas acesso gratuito a 15 horas das gravações que ainda existem (de um total de cerca de 70 horas).
Recorde-se que ao analisar o comportamento de Eichmann durante o julgamento Hanna Arendt cunhou o termo “banalidade do mal”. A autora considerava que o totalitarismo nazista criou um novo modelo de criminoso, na medidaem que a execução sistemática e organizada de milhões de seres humanos, não éconsiderada apenas uma monstruosidade por parte de um grupo, mas um actoperpetrado por pessoas que cumpriam obrigações burocráticas. Eichmann foi acusado de 15 crimes entre os quais propiciar as condições que visavama morte de milhares de pessoas…de perseguir judeus em com base em motivos raciais, religiosos e políticos…execuções,… destruição física e psicológica, aprisionamento, etc, etc.
Eichmann declarou-se inocente de todas as acusações e não se sentia responsável pelos seus actos porque, defendeu-se, estava apenas a cumprir ordens do seu governo, era um funcionário que não sujava a mão com o sangue das suas vítimas, declarou mesmo que nunca matara ninguém. Nas suas observações Hannah Arendt revela um fenómeno novo. Aquele que comete o mal não precisa ser forçosamente um indivíduo sádico, genocida, monstruoso.
O réu mostrava uma profunda indiferença pelasvítimas. Ele cumpria cegamente as leis. Ele era uma pessoa normal, dentro de umanova “normal social”. O acto de exterminar pessoas” pode se tornar somente umassunto administrativo numa estrutura de poder totalitário. O nazismo inverteu aordem e os valores morais numa sociedade e o “mal se converteu em norma, estava generalizado e banalizado”.A expressão banalidade do mal aplica-se, segundo a autora, a indivíduos como Eichmann que, convencidos dos seus deveres, praticam o mal sem motivos especiais, de maneira gratuita, sendo pouco capazes de sentir ressentimentos, muito menosreflectir sobre os seus feitos.
No documentário “ As Gravações do Mal “ estão registas as múltiplas conversas cujas transcrições – feitas por Sassen e revistas pelo próprio Eichmann – ocuparam milhares de páginas, é possível ouvir o homem que coordenou a logística do Holocausto reconhecer e gabar-se dos seus feitos: “Fizemos o que pudemos. Se tivéssemos matado 10,3 milhões de judeus, eu diria com satisfação: Bom, destruímos um inimigo. Então teríamos cumprido a nossa missão. Eu sei que o que estou a dizer é duro e que serei condenado por isso, mas não consigo dizê-lo de outra forma. É a verdade. Por que o deveria negar? Nada me irrita mais do que quando um tipo depois nega as coisas que realizou”. (nosso sublinhado).
“Nem me importava com os judeus que enviei para Auschwitz. Não me interessava se estavam vivos ou se já estavam mortos. Havia uma ordem do Führer do Reich que dizia: ‘Todos os judeus capazes de trabalhar devem ser submetidos ao processo de trabalho! Os que estejam incapazes de trabalhar têm de ser submetidos à solução final.’ Ponto final.”
“A Confissão do Diabo: As Gravações Perdidas de Eichmann” recorre a entrevistas com vários historiadores para contextualizar e analisar o momento do julgamento, o seu impacto em Israel e nas relações com outros países, assim como o caminho percorrido até àquele momento, que culminou com a execução do nazi em 1962.
O documentário examina os interesses das lideranças de Israel e da Alemanha num momento de crescente cooperação entre dois países e questiona como eles podem ter influenciado os processos judiciais. Os participantes no documentário mostram como o Primeiro-ministro israelita da época preferia que as gravações não fossem ouvidas, por causa de detalhes comprometedores que poderiam surgir, nomeadamente entre outros, sobre um nazista que trabalhava no Gabinete do Chanceler alemão.
Lideranças de países implicadas num processo para evitar que a verdade seja conhecida e comprometer o desenrolar normal de processos judiciais não são novidade. Aqui, neste pequeno país, estão a acontecer. Mas a verdade, com gravações ou sem gravações a verdade do 25 de Novembro pode vir a ser conhecida um dia, mesmo que todos os responsáveis não sejam nem conhecidos, muito menos castigados.
Mas precisamos estar mais atentos ao fenómeno da violência. A violência no nosso país tem causas muito profundas e não pode ser atribuída a um grupo específico. Recentes imagens que vieram a público, entre outras, sobre o tratamento dado a um ladrão por populares na localidade de Santa Catarina, mostram que actos de violência tornam-se cada dia mais banais, e estão presentes em todos os sectores e camadas da nossa população. Precisamos de aprofundar a análise sobre as causas da violência (algumas são conhecidas) no nosso país e adoptar medidas para fazer o seu controlo. A banalização da violência pode levar a mais violência. E pode chegar a um ponto de ser incontrolável.
Rafael Branco