Opinião

Crónicas de Lisboa – “Um Amarelinho da Carris e uma História de Amor a Quatro”

Naquele domingo de início de novembro, eu quis usufruir a minha cidade de adoção, desde há cinquenta e nove anos que aqui arribei, vindo da minha aldeia beirã e, usando uma “benesse” desde governo, peguei no meu passe de sénior e saí de casa logo de transportes públicos. Dei folga ao meu carro e contribui para a diminuição de consumo de combustíveis poluentes, para alem de que usufruir de certos recantos e das zonas históricas das cidades, e Lisboa ainda mais, só a pé e de transportes públicos (TP).

Tomei dois autocarros, o passe permite estas mudanças para quem é ágil, no meu caso e nos meus setenta e um anos ainda me considero ágil, e depois mudei para um percurso que é também coberto, em parte, por uma linha de elétricos (os amarelinhos da Carris que fazem as delícias dos turistas – e dos carteiristas, estes mais na carreira 28, qual praga que nos envergonha) recuperada pela Carris, há poucos anos.

A carreira 24 com um percurso de Campolide à Praça Luís de Camões, no Chiado, e vice-versa, num total de menos de quatro quilómetros para cada lado. Confesso que, logo à entrada, fiquei surpreendido com a juventude e aprumo do condutor – conhecidos por Guarda-Freios.

Em mangas de camisa (*), a tarde estava solarenga bem melhor do que no habitual tempo do Verão de S. Martinho, e gravata azul de nó aberto lá ia ele. Contudo, logo no primeiro banco, conhecido por “banco dos palermas”, porque quem ali se senta, na vertical, fica exposto aos olhares dos restantes passageiros, mas também pode observar todos os outros, ia sentada uma jovem muito “bem-apresentada” e, a seu lado, sentados os seus dois cãezinhos pretos, cuja raça desconheço, mas fazem parte das cerca de quatro centenas, sim é isso, de raças de cães existentes no mundo.

Para além disso, despertou-me a atenção o facto dela os acariciar e beijá-los, mas também o enlevo com que o condutor olhava para trás. Confesso que eu não estava a gostar daqueles olhares, porque ele conduzia um veículo de passageiros, apesar de circular em carris, e sermos poucos àquela hora de domingo, mas também porque todo o percurso é feito por ruas antigas em que as viaturas e os TP passam a rasar uns nos outros. Pensei até que aqueles olhares repetidos fossem uma forma de “engate ou de conquista”, mas depois, pelas trocas de diálogo, apercebi-me que seriam namorados ou até casados.

No final da carreira, no Camões, descemos do veículo, mas a jovem e os seus cãezinhos permaneceram sentados. “Nova viagem nova corrida”, este o pregão das feiras de carrosséis, e lá iniciaram uma nova viagem, esta de sentido inverso.

As cenas que presenciei, por um lado podem ser representativas de amor, mas a quatro: pai, mãe e dois filhos que é assim que muita gente se intitula e o mesmo para os seus animais caninos. Mas, por outro lado, também é uma amostra da mudança de mentalidades e comportamentos que ocorrem em muitas pessoas que se refugiam nos animais para obterem os afetos que deveriam ser “afetos entre os humanos“.

Se nos idosos, principalmente os que vivem sós, os animais de companhia desempenham um papel importante, embora haja exageros comportamentais, em adultos jovens, casais ou não, estes exageros evidenciam uma transferência dos afetos dos humanos para os animais, como compensação daquilo que não trocam na interação com outros humanos, incluindo o não apelo ou vocação para a maternidade e paternidade e a própria conjugalidade (vida a dois).

Tomemos este diálogo, que não é tão ficção como possa parecer: Ele – Queres namorar comigo? Ela -Sim, mas levo comigo os meus filhos. Ele -Tens filhos? Ela – São os meus dois meninos, melhor, um menino e uma menina. Ele- Ah, também serão meus filhos. E vamos querer ter uma criança? – perguntou ainda o candidato a namorado. Ela – Nem pensar.

A gravidez é uma coisa…e depois a criança dará tanto trabalho, chatice e outras coisas mais. Bastam-nos estes dois “meninos” para sermos felizes…Na minha crónica, com o título “Uma Criança ou um Cão?” já abordei estes comportamentos que nos devem deixar preocupados com o rumo que a sociedade está a tomar. É também crescente a invasão dos animais no seio da sociedade, isto é, acesso aos transportes públicos, estabelecimentos de restauração e hotelaria, onde alguns até ladram…. e também na via pública com muito movimento de pessoas.

Já não são só os “passeios higiénicos”, que os seus donos fazem com eles, agora até existem “parques de diversão canina” construídos pelas autarquias, mas sim a companhia dos seus donos nos passeios citadinos (“baixa”, etc) de fim de tarde, – tipo passeio das vaidades e de ostentação de raças – como presenciei no meu percurso pela “baixa” e zona ribeirinha naquela tarde.

Os cães invadiram a sociedade e a cidade? É um tema que começa a ser discutido, enquanto os governantes locais ou regionais vão fazendo muita coisa para agradar aos respetivos donos, que dão votos, desviando recursos que seriam necessários em projetos mais prioritários. Tomemos o exemplo daquilo que presenciei e que não precisei de falar com os intervenientes, porque bastou-me a minha observação.

A jovem, presumo que namorada, achou que era um ato de amor acompanhar o seu amado naquela tarde domingueira e de trabalho para ele. Perfeito e pouco importa se ela pagou bilhete ou tinha passe, mas, também com um ato de amor para com os caninos, levou-os também e logo num veículo de transportes públicos. O “quadro” seria ainda mais brilhante se o seu amado estivesse escalado para conduzir um elétrico da mundialmente famosa carreira 28, embora nesta não haveria lugar para os cãezinhos irem sentados, tal a lotação “à pinha” com que circulam os elétricos adstritos àquela carreira cuja receita de bilheteira é uma importante fonte de “divisas do turismo”, (osresidentes, com passes também podem usar e eu já usufrui, ao fim de muitos anos). Ali, cujos turistas tentariam captar em foto, a “imagem ternurenta da jovem” correria mundo, tal a fama que tem o “Elétrico 28”, já um “ex-libris” de Lisboa, até pelo seu percurso pelas sete colinas de Lisboa, todo ele muito estreito, sinuoso e acidentado desde o Martim Moniz até à Parada dos Prazeres e regresso, como outra viagem.

Confesso que gosto de ver todas as “cenas” de amor, e todos os lugares são palco para ele ser manifestado, mas AMOR é entre humanos e não para com animais. Para estes, o verbo é GOSTAR. Inversão de conceitos, mas também de atitudes e mentalidades. “Quanto mais conheço os humanos, mais gosto de animais”. Esta expressão pode ser usada com dois significados diferentes…

(*) – Todos o pessoal da frota da Carris, apresentam-se impecavelmente fardados, sejam homens ou mulheres, estas agora também a aderir à profissão.

Serafim Marques

Economista (Reformado)

1 Comment

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  1. SEMPRE AMIGO

    14 de Novembro de 2021 at 17:40

    Confesso que não percebi a intenção!

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