Opinião

Contra o nevoeiro das perdas identitárias de São Tomé e Príncipe

Luís Viegas
Butá Kloson ba Lônji. Cancioneiro da Música Popular São-tomense
Lisboa: Edição de Autor, 2019.

Contra o nevoeiro das perdas identitárias de São Tomé e Príncipe

A tradição oral preserva-se através da transmissão de mensagens que são veiculadas através da oralidade de uma geração para outra, isto é, de avós, pais ou (ou outros Mais Velhos) para filhos e netos (isto é, mais novos). Por outras palavras, mensagens “pacientemente transmitidos de boca a ouvido, de mestre a discípulo, ao longo dos séculos”. Tais mensagens podem tomar forma de histórias, canções de músicas, contos, fábulas, provérbios, anexins, máximas – enfim, véssus, sóias ou contájis…

Ora, vivemos numa época em que nem sempre é possível os mais velhos cumprirem essa função sem a utilização do sistema de escrita ou outros meios de carácter normalmente breve que permitam que se guarde uma informação na memória.

Por isso, a recolha da tradição oral tem um papel importante na preservação do passado porque os textos da oralidade, como são tanto as letras de canção quanto o conto maravilhoso (ou outras expressões textuais orais), podem tornar-se fonte histórica para o conhecimento da história colectiva, política ou cultural: vejam-se os casos de canções como “Gandú” (p. 36) ex-libris do cancioneiro são-tomense, que é um hino de resistência, ou a canção “Para aumentar a produção e a produtividade” (p. 73), “Bom dia, São Tomé e Príncipe” (p. 71), “Governo da República” (p. 114), estas últimas claramente canções propagandística da 1ª República, para além de muitas outras em português e em forro); ou, até, para histórias de vida (“Laulu defensor di Xiportingi”, p. 52; “Piquina, Piquina”, p. 84) – para citar alguns exemplos de textos que, estou convencida, um historiador ou um sociólogo não negligenciará no seu trabalho, se quiser escrever uma história tanto inclusiva quanto possível. A escrita torna-se, neste contexto, guardiã da memória e responsável por activar o passado às novas gerações.

Foi isso que pensou Luís Viegas neste primeiro volume de Butá Kloson ba Lônji. Cancioneiro da Música Popular São-tomense, dedicado aos agrupamentos LEONINO E OS UNTUÉS. No livro, estão reunidas 17 canções do Conjunto Leonino e 110 canções do Conjunto Os Untués, em crioulo forro da ilha de São Tomé, e traduzidas para o português. O autor explica por que razão este 1º volume é dedicado a estes dois conjuntos (e não a outros cujas histórias e canções se esperam para breve):

“O presente volume é consagrado aos conjuntos Leonino e Os Untués, dois agrupamentos que se apresentam em comum muitos fatores genéticos, ao nível de fundadores, local de nascimento, os primeiros simpatizantes, etc….” (p. 17)
As canções-poemas são precedidas de uma exposição histórica sobre o conjunto e interpretações das canções mais emblemáticas dos conjuntos.

Um trabalho feito com a colaboração de pessoas que conhecem o mundo musical são-tomense – Albertino Bragança, Edgar Torres e Rufino Espírito Santo, a primeira das quais com quem adoro conversar porque aprendo sempre e de quem tenho bebido, dada a sua generosidade, muito da cultura popular de São Tomé e Príncipe, sejam sóias, contági, vessus ou anedotas: na verdade, Albertino Bragança faz parte desse grupo de Mais Velhos sobre os quais disse um dia Amadou Hampaté Bâ: “Em África, quando um velho morre é uma biblioteca que arde”…

O livro de Luís Viegas é, aliás, um trabalho feito com uma disponibilidade para uma abertura ao crescimento, à crítica, pois o autor vai sugerindo, na sua subtil modéstia, ao dizer que a recolha é apenas “uma tentativa de provocação aos atores culturais e uma tentativa de reavivar o espírito crítico em torno da expressão artística própria” do país: ora, este trabalho é muito mais do que isso: é um trabalho etnográfico como há muito tempo não víamos em São Tomé e Príncipe – de que vamos conhecendo alguns exemplos, mais ou menos conseguidos nas suas intenções, como A Coroa do Mar (1998), de Carlos Espírito Santo, A Música Popular Santomense (2005), de Albertino Bragança, Manifestações Culturais São-tomenses (2014), e, porventura, o mais conhecido dessas incursões etnográficas, Povô Flogá – O Povo Brinca: Folclore de São Tomé e Príncipe (1969), de Fernando Reis – o livro que mais convoquei na leitura deste de que falo agora, até pela forma como os autores justificam o seu trabalho: enquanto Fernando Reis diz “Reunimos neste livro o actual panorama do folclore de São Tomé e Príncipe, este folclore que não sofreu ainda a perniciosa influência das intromissões”, Luís Viegas afirma que o seu intuito em não deixar que a expressão artística própria do país não se deixe “sucumbir as novas tendências musicais importadas, sobretudo tendo em vista as novas gerações, ávidas como estão de consumir o que é mais popular e comercial”. Lapidar, diria eu, não soubéssemos todos o quanto a tradição musical se vem esfumando, não por não ser praticada, mas sobretudo por não ser conhecida. Trata-se, assim, de um trabalho que não se limitou a recolher, mas que levou a que o autor entrevistasse os autores e os compositores, identificasse a autoria da maioria dessas quase 130 canções, referindo o contexto da sua escrita, desvelando o seu significado metafórico, a função das canções – enfim, um trabalho que nos permite entrever o percurso da sociedade são-tomense. E, tão importante quanto isso, falando dos momentos históricos em que esses conjuntos actuaram, os seus elementos e o papel social desses agrupamentos musicais. Por isso, esperamos com ansiedade o(s) volume(s) que nos trarão informação e letras de músicas de Trindadense, Mindelo, Sangazuza, Os Quibanzas, África Negra, Leonenses, ou, os mais recentes, já nos estertores do colonialismo, os Kikos Verdes, Os Répteis ou África Verde (p. 17).
Interessante é o título que o autor optou para designar esse conjunto: “cancioneiro”, isto é, compilações de músicas tradicionais próprias de uma região ou de um país (e é interessante notar que o autor prevê um volume específico a conjuntos de música folclórica) contendo não apenas letras de canções, cantigas de trabalho ou de rua, canções políticas populares, cantos patrióticos, cantilenas, mas também a música – e, neste contexto, seria extraordinário que os são-tomenses pudessem ter acesso à musica, portanto, registo áudio, destas canções recolhidas. Para o que o mecenato, cuja lei já existe em São Tomé e Príncipe há alguns anos, deveria ter um papel decisivo…

Vale dizer também que este tipo de trabalho, este livro particularmente, constitui, como refere Rufino Espírito Santo, que o prefaciou, um inigualável contributo às línguas nativas como veículo de comunicação e como elemento sui generis” (p. 27) da cultura são-tomense. E disso está ciente o autor, pela brevíssima discussão que enceta na sua introdução, quer ao referir porque optou pela designação santomé – opção de que discordo em absoluto (embora este não seja o lugar para essa discussão) – quer ensaiando uma metodologia para a escrita e a leitura das palavras crioulas numa “Breve nota a escrita do crioulo santomé” (p. 19-24), fundamentando as suas opções ortográficas, com uma terminologia que é própria da Linguística, e revelando um cuidado científico que parece contradizer a afirmação do seu autor quando nos fala em “geração espontânea”, “passatempo”. É preciso ter em conta que o rigor científico não é contraditório com a paixão do autor pelo repertório musical são-tomense… Eu, por exemplo, professora de literatura, só trabalho os romances, poesias e contos de que gosto…

Não posso deixar de referir as condições em que o autor recolheu essas canções, as transcreveu e as traduziu. Numa narração singular em que a afectividade se cruza com o interesse cultural, o autor fala das suas motivações para este projecto que, afirma, nasceu em 2007, em Timor Leste quando na altura se impunha, nessa parte do mundo, o recolher obrigatório – transformando, interessantemente, essa razão física detonadora de uma percepção emotiva em razão cultural, como afirma numa singela e poética descrição:

“Foi então que, numa demorada estadia longe das ilhas, estava eu em Timor-Leste, num dado dia, sentindo uma saudade quase pueril das coisas deixadas a tantas milhas de distância, deleitava-me com as minhas deambulações, numa viagem interminável que se ia desvelando enquanto, umas a seguir a outras, músicas nacionais se iam desfilando e enchendo o meu quarto e alimentando o meu imaginário.

Nesse ambiente propício a formulações metafísicas, surge a ideia de transcrever e traduzir para Português as letras dessas músicas a que muitos nos habituamos a ouvir e a cantar, mas que “escondem” quase sempre passagens pouco percetíveis para a maioria de nós. Exercício a que me dediquei com o maior deleite, atenta minha outra grande paixão, a fala e a escrita dos crioulos de São Tomé e Príncipe.”

Este livro, Butá Kloson ba Lônji. Cancioneiro da Música Popular São-tomense, de Luís Viegas, é um livro singular em São Tomé e Príncipe. Com ele, o autor abre uma senda para a inscrição do país. Uma senda que, espero, venha a ser produtiva em termos de exemplos, terminando como comecei, a reafirmar a importância da tradição oral, que forneça material para que os “empresários da memória” (José Manuel Oliveira Mendes) procedam à inscrição de São Tomé e Príncipe, não para dizer que o que se faz hoje não é digno de se inscrever na memória e no imaginário históricos do país, mas para desafiar as instituições a preservarem um dispositivo cultural do imaginário colectivo porque – e para me socorrer de uma afirmação à La Palisse – não consegue construir o Futuro uma comunidade que não conhece o seu Passado. E o Presente é o ponto de intersecção entre aqueles dois tempos – ou, como diz uma canção de Os Untués, “Pya Wê (ku) Pya Tláxi Sa Lumon”…

Inocência Mata

5 Comments

5 Comments

  1. Sotavento

    18 de Julho de 2019 at 7:23

    Muito confuso,dá preguiça ler…

    • Cos

      18 de Julho de 2019 at 15:51

      Nada confuso. Preguiça do leitor que, talvez, prefere ler SMS.

  2. CES. Coimbra

    18 de Julho de 2019 at 21:14

    Excelente artigo de opinião. Extremamente edificante para uma boa reflexão Sociológica.

  3. Coerência

    21 de Julho de 2019 at 6:51

    Caros jornalistas editores do Telanon, este jornal é uma das fontes que todos recorremos para nos informar sobre os assuntos que marcam atualidade no país. Ora, neste momento está a decorrer uma polêmica entre o tribunal de conta e os tribunais judiciais e estamos sem perceber o que se está a passar. Telanon Pode criar uma notícia sobre esta atualidade para nos elucidar?

  4. Joao

    21 de Julho de 2019 at 14:35

    Interessante

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