Em completa oposição à etimologia grega, a qual descendem, também, muitas palavras que chegaram até nós, aqui e além,hoje sabe-se que a “prática efetiva de atos sexuais com crianças (p.ex., estimulação genital, carícias sensuais, coito etc)”tem uma versão redefinida na qual nos fixamos: a palavra pedofilia. Talvez seja uma coincidência sem qualquer relevância, ou não, a seguinte verdade: a perversão que leva um indivíduo adulto a se sentir sexualmente atraído por crianças é, por assim dizer, a “pedomania”.
Porque, literal e originalmente, a palavra pedofilia significa amor (ou, se for vista a partir da sua própria nascente, amizade) pelas crianças, e não propriamente uma obsessão por elas. Por isso, escreve Oliveira Ramos na “Ciber dúvidas da Língua Portuguesa”, 2002: “a ideia de pedofilia é demasiado bela para ser associada a certos comportamentos da besta humana”.É verdade: as marés linguísticas, por vezes, trazem-nos estas e outras novidades significativas. Sem fazermos, porém, desta prática num “método universal de ensinar tudo a todos” – que Coménio define como Didática Magna –, fixemos, pra já, naquilo que nos interessa, que é a realidade dos factos: a pedofilia e a sua voz ressentida, um fantasma que insiste em ensombrar a vida de muitas crianças na nossa terra.
Com o reacender desta prática,repugnante e perniciosa para as faixas etárias mais vulneráveis, as crianças (sobretudo, menores de dezasseis anos), e o silencioso olhar com que, em casos mais célebres, são desfeitas, talvez seja necessário estender a nossa observação, mais uma e todas as vezes que possível,sobre este mal que gradativamente tem enfraquecido e destruído o nosso organismo social.
Lembro-me, um menino de então, no primeiro dia do mês de junho –a data memorável para qualquer criança,universalmente –ter lido ou escutado, por inúmeras vezes, uma expressão concisa, fácil de lembrar: “As crianças são o futuro de um país”. Esteslogan, só por si,carrega consigo todo seu realismo,em termos lógicos – talvez, ou certamente, porque o futuro de qualquer país está num turbilhão de sonhos que muitas crianças esperam ver germinadas. Por isto:se elas continuarem a serem violadas, violentadas,psicológica e sexualmente, que futuro terá o nosso país?
Pois, qualquer indivíduo formado em psicologia e que a aplica no seu trabalho sabe que um menor violentado na sua sexualidade “deixa de poder ser sujeito do seu próprio destino, da sua própria história sonhada, projetada ou construída. A história que lhe vão impor ultrapassa-o em velocidade e substância, deixa de ser “sua” para passar a ser aquela que não lhe ensinaram, para a qual não pediram sequer um assentimento seu que fosse”. Para Paulo Guerra, esse menor violentado e, consequentemente, retirado-lhe o desejo de sonhar, transfigura-se numa pessoa magoada, solitária e taciturna, pois,“de si, apenas um murmúrio surdo, um grito abafado na calada do quarto dos fundos, no canto recôndito da garagem mal iluminada, um “não” ouvido nas paredes da sua alma que não tinha voz suficiente para soar. De si, apenas uma imagem de um corpo usado como vazadouro de néctares infelizes, numa toada de lamento e dor”.
Portanto, sem sombra de dúvidas: a criança é um campo traumático de elevada sensibilidade; e, por isso, espanta-me como é que alguns,com estatuto social elevado e poder administrativo, ou não, continuam com esta vertiginosa paixão,que só ensombre e faz da vida das nossas crianças um autêntico “campo de concentração nazista”, sem que sejam responsabilizados– sem extremar, evidentemente – pela tamanha desgraça factual.
A sumariar: sem uma chave dialógica sobre a justiça entre o direito e a psicologia, tudo isto continuará como tem sido: as fianças, as casas mobiliadas e o silêncio familiar são(e serão) moedas de compra da irresponsabilidade dos predadores,constituindo também em autênticos açoites no flagelo dessas crianças. Talvez seja a altura de percebermos que, por isto e por outras demandas, os prevaricadores devem ser responsabilizados (pra dizer outra coisa) em defesa da pluralidade– que, neste caso, são os nossos menores,constantemente,violentados na sua sexualidade e psicologicamente traumatizados.Boa reflexão.
Francisco Salvador
Filho de RA
16 de Setembro de 2020 at 10:51
Mais uma contribuição de uma cabeça pensante no âmbito do exercício de cidadania, os meus parabéns ao inolvidável amigo por este trabalho de pendor científico!
Assim não dá!
16 de Setembro de 2020 at 20:06
“[…]
A sumariar: sem uma chave dialógica sobre a justiça entre o direito e a psicologia, tudo isto continuará como tem sido: as fianças, as casas mobiliadas e o silêncio familiar são(e serão) moedas de compra da irresponsabilidade dos predadores,constituindo também em autênticos açoites no flagelo dessas crianças. Talvez seja a altura de percebermos que, por isto e por outras demandas, os prevaricadores devem ser responsabilizados (pra dizer outra coisa) em defesa da pluralidade– que, neste caso, são os nossos menores,constantemente,violentados na sua sexualidade e psicologicamente traumatizados.Boa reflexão.”
Mais além STP
17 de Setembro de 2020 at 8:02
Uma opinião muito bem conseguida. É verdade que temos que falar disso, sobretudo neste momento em que os casos de abusos sexuais de menores tem se aumentado de forma preocupante! Parabéns, meu caro Chico, e um grande abraço.
só coragem
17 de Setembro de 2020 at 12:57
Um flagelo nas nossas ilhas de nome santo!!O exemplo vem de cima. Quantos dos nossos politicos, directores, professores e até juizes da nossa praça tem colados a eles casos de abuso de criança??
Problema é que coisa fica escondido no meio da familia a troco de algumas dobras, uma casa de madeira e pronto…criança abusada vai entender o que? que nem familia lhe dá apoio é comprada por migalha a sua infancia e inocencia!E os poucos que são chamados á responsabilidade se for um qualquer leva alguns anos de prisão mas director da cadeia deixa preso ao fim de alguns meses ír para casa, se fôr algum peixe graudo- e tivemos um caso recente de um juiz que foi afastado/suspenso do cargo por esse crime- o que fizeram?assim que mudou governo, alguns politicos amigos voltaram a colocar ele no sistema!!!e assim vamos….
O Parvo
17 de Setembro de 2020 at 16:31
A criança é um campo traumático de elevada sensibilidade. Excelente! Esses homens não fazem leis que punem esses violadores, porque eles mesmos é que são violadores das nossas crianças. senão, eles já deviam revê as leis. O país precisa de uma reforma urgente da justiça!
Assim nao dá!
18 de Setembro de 2020 at 8:17
O país nao pode continuar assim: aqueles que fazem mal, ou comete o violação, paga fiança ou da mobilias as famílias, para continuarem impunes. A lei tem ser cumprida e a punição também! Um bem haja ao nosso articulista por tocar neste cancro social.
Joaquim João d’ Almeida
19 de Setembro de 2020 at 10:17
É preciso mudar alguma coisa, para que tudo permaneça como sempre esteve. Por isso, há que se fazer uma reforma, urgentemente, no sector da nossa justiça. Parabéns jovem Francisco por este brilhante artigo!