O epítome faz-nos sorrir, é um pouco cómico, porém, se quisermos, acaba por expor-nos perante a nossa realidade de uma maneira bastante profunda.
Uma advertência que é, entre nós, muito usada, e ouvimos frequentemente em relações de intimidade, por um filho que se sente abandonado pelo pai que lhe prometera tudo, seja mundo seja fundo, e não cumpriu; ou pode ser proclamada por um membro partidário numa reunião de militância; ou ainda, ser proferida por um cidadão que vê o seu país num estado periclitante e em consequente degradação. Há um filósofo alemão, Friedrich Nietzsche, que dizia, por exemplo, que “tudo é interpretação”.
Tudo é interpretação, porque, entre a linguagem do outro e o nosso pensamento há uma perceção que depende do próprio recetor, tendo por certo que a linguagem nem sempre é o espelho fiel do nosso pensamento. Em tudo isto, é pensável ou, então, admissível aquilo que nos estrutura: vivemos numa ilha-arquipélago da inocência.
Porém, e como bem formulou o poeta madeirense Herberto Helder (1930-2015), numa joia de obra, “Servidões” (Porto Editora, 2013), que a Assírio publicou dois anos antes da sua morte e que talvez tenha passado, entre nós, praticamente despercebido: “vivemos demoniacamente a nossa inocência”. Faça justiça as palavras deste poeta, por uma razão muito simples, traduzida para a nossa realidade: mesmo sabendo que o homem ou, melhor dizendo, o senhor anda demasiadamente a falhar, nós acreditamos nele, muitas vezes, como se ele fosse mudar, esquecendo-nos de que a humana pessoa é sempre a mesma em todo o tempo e lugar (leia-se o axioma de identidade proposto por filósofo alemão G. W. Leibniz). Precisamente por isso, somos diabolicamente inocentes.
Na inocência, pode concluir-se também a cegueira. Desta forma, ser cego não é uma questão física, como também da inocência, podendo-se dizer de um inocente que não vê ou que vê enviesado. Ressoam-nos as últimas palavras do nobel português José Saramago, no seu “Ensaio sobre a cegueira”: “penso que não cegamos, penso que estamos cegos, cegos que vêem, cegos que, vendo, não vêem”. Ou, então, para usarmos a palavra do poeta romano Horácio, diríamos que “deixamo-nos enganar por falsas aparências da verdade”.
Daqui também é taxativo o discurso ou a ação que simula virtude com objetivos escusos. Apenas isso. A afirmação central, e tão glosada, que faço, e que nos habituámos a ouvir, por todos os cantos e recantos, traduzida tão bem como “pelo poder se conhece o homem”, tem de fato outra linha equinocial. Pode traduzir-se assim: “se quiser pôr à prova o caráter de um homem, dá-lhe o poder”.
Terá sido o político norte-americano Abraham Lincoln o grande proponente desta célebre frase. Deixemos, porém, para lá tudo isso. Por ora, centrando-nos na noção do líder, vale a pena lembrar que liderança é um fenómeno social extremamente banal. Apesar de haver grandes líderes, que nos fascinam, a primeira coisa que as pessoas pensam é que a liderança só está ao alcance de alguns génios. Há muitos animais que socorrem da liderança para se sobreviverem.
É interessante, por exemplo, como os ganços de Canadá, que todos anos emigram milhares de quilómetros, do Canadá para Califórnia, região sul norte-americana, voam todos em bando, porque tem uma inteligência animal muito perspicaz: liderados por um ganço que vai à frente.
O animal que vai à frente, ao longo do voo é revisado e, desta forma, vai passando para trás, e outro passa para frente, rodando assim a posição de liderança por todos. Ora bem, essa rotação, ao longo de milhares de quilómetros, permite poupar sessenta e cinco por cento da energia.
Uma pergunta imediata que podemos aqui fazer é esta: como é que os ganços descobriram isso? Na verdade, os ganços intuem (ou sabem) que se colocarem nesta postura em “v”, e rodando o que está a frente, todos conseguem chegar ao final do caminho. Ou seja, esta forma social de se organizarem está a favor da sobrevivência de todos. E o líder, ou seja, o que assume o comando do pelotão, o que abre caminho, deixando-se substituir por outros, é aquele que permite que todos se sobrevivam e façam o trajeto.
É nisto que está a liderança. Ora, isto acontece até com as pessoas, em muitas circunstâncias sobejamente conhecidas. No fundo, liderar é a coisa mais simples que existe. O difícil mesmo é exercer. Liderar é, com efeito, influenciar os outros para atingir os objetivos comuns. Para isso, porém, precisamos de reaprender todos a voar como os ganços de Canadá. Boa reflexão.
Francisco Salvador
João pontes
27 de Maio de 2022 at 14:42
Em São Tomé não há liderança há sim roubo e perseguição nas instituições. Até os concursos públicos são fraudulentos. Mesmo as instituições de topo no país como banco central e tribunal supremo não escapam.
Só ladrões neste país.
Durrute Soares
27 de Maio de 2022 at 21:33
Os meus parabéns pelo artigo 👏👏👏
Como sempre, um pouco enigmático, mas muito assertivo nas palavras estilo característico de um verdadeiro intelectual;
Uma reflexão que nos leva à reflexão de forma transversal sobre os caminhos que devemos seguir de forma resiliente, rumo ao nosso desenvolvimento colectivo.
Célio Afonso
28 de Maio de 2022 at 11:02
Muito interessante porque encaixa perfeitamente bem no estilo dos “líderes políticos” Saotomenses.
Mas eles nem estão aí!
Só querem roubar, roubar, e roubar.