A frase que mais ouço actualmente é: “agora posso respirar livremente”. Eu entendo o que as
pessoas querem dizer nas actuais circunstâncias que vivemos no nosso país, mas fico
preocupado, muito preocupado. È que respirar é um acto natural, biológico; respirar, é
condição essencial para estar vivo. Se as pessoas podem respirar livremente agora quer dizer
que antes não respiravam livremente, isto é, reprimiam a sua respiração. A pergunta e a
resposta parecem evidentes, mas não são. Quem impedia a respiração livre? O autocrata agora ausente? Como conseguia ele fazer isso? Um segurança atrás de cada um? Mesmo que tal fosse possível, respirar é um acto individual, natural. Só pode ser impedido pela força, que foi usada infelizmente em 25 de Novembro.
Repito, entendo perfeitamente a afirmação, mas fico preocupado. Se uma parte das pessoas
não respirava livremente a culpa era somente sua. Fizeram a opção de não respirar livremente,
submeteram-se consciente ou inconscientemente e privaram-se dessa faculdade vital:
respirar, exercer o seu direito de ser livre.
Eu sei, havia o medo, o receio … e a covardia. Respirar é uma liberdade vital. Exige
conhecimento de si e prudência. Devemos evitar respirar num ambiente tóxico. O que
fazemos? Saímos do ambiente tóxico. Combatemos a toxidade. Ou fugimos. Ou nos
acomodamos a viver assim, morrendo lentamente.
É este espírito de acomodação, é esta predisposição à sujeição pessoal, é este aceitar
passivamente as circunstâncias que nos rodeiam que me preocupa. É certo que as acções do Presidente da República nos livraram do autoritarismo que nos abafava. Mas afastar um actor autoritário, não acaba com o autoritarismo.
O autoritarismo está profundamente enraizado na nossa sociedade. Quinhentos anos de
colonialismo, 15 anos de partido único, oito anos em pleno regime democrático. Não admira pois que o autoritarismo continue a existir em diversos sectores da nossa sociedade. Observemos com atenção. Existe autoritarismo em alguns dos partidos políticos da
nossa praça. Respira-se livremente? Temos a liberdade de respirar, isto é assumir nossas ideias
e posições mesmo que isso nos coloque em situações difíceis?
Olhemos para as organizações da sociedade civil. Respira-se livremente?
Exigimos que os partidos políticos realizem Congressos electivos regularmente e que prestem
contas, que mudem as suas lideranças, dando lugar a novos protagonistas. Há mudanças de
liderança nos sindicatos e ongs? Há prestação de contas? Nas organizações estatais as pessoas respiram livremente? Não existe autoritarismo nestas organizações? Não é o chefe que pode e manda e tem sempre razão? Não falo de organizações militares e de segurança, nem quero por em causa a disciplina que é essencial em qualquer organização. Mas existe cultura democrática nas nossas organizações, públicas ou privadas?
O meu ponto é este. Ainda não temos uma cultura verdadeiramente democrática na nossa
sociedade. Eleições regulares não são garantia de democracia e de liberdade.
O fraco envolvimento das pessoas conduz a falta de iniciativas e a desconfiança nas instituições. Na realidade as pessoas não se vêem como agentes de mudança e desistem de fazer a diferença. Desistem de respirar. Além disso a desconfiança entre as pessoas aumenta, sobretudo entre aqueles que não são próximos dando lugar a diminuição da interacção social, que inviabiliza uma colaboração essencial para a transformação de qualquer sociedade.
Democracia pressupõe liberdade para pensar e agir com responsabilidade. Exige também
respeito por ideias contraditórias e uma atitude de tolerância e de diálogo construtivo.
Nós estamos sempre na expectativa que alguém nos venha libertar, nos deixe respirar
livremente. A nossa atitude é no geral passiva, nalguns casos parece que precisamos ser
domesticados.
Quando manifestamos alguma liberdade de pensamento é em círculos fechados, protegidos.
Não ousamos procurar um outro com quem compartilhar nossas ideias e projectos. Queremos
ficar confortáveis no nosso grupo. Abrir-se para outros é perigoso, eles podem não concordar
com tudo o que dizemos, tira-nos do conforto e a segurança de ter sempre razão. Não criamos
convergências só porque existem uns detalhes que nos separam.
É isto que me preocupa. Depois do afastamento do actor autoritário, agora mais uma vez
ausente que a todos ameaçava, voltamos ao normal. Os partidos continuam a falar apenas
com os apoiantes que são fiéis a liderança do momento, as organizações da sociedade civil
continuam na mesma lógica de sempre, mesmo agora que podem “respirar livremente”. A
maioria dos chefes continua a mandar enquanto pode. Pouco contestam ordens absurdas,
ninguém quer se abrir a sociedade, apresentar novas ideias e projectos. Todos têm medo de
ser castigados, contestados ou simplesmente criticados.
Haverá excepções, reconheço. Mas elas não têm dimensão nem profundidade suficiente para
mudar a regra. É minha convicção que enquanto existir esta tendência para a servidão voluntaria, para a obediência cega e acrítica, para a renúncia de assumir posições não conformes, haverá sempre real possibilidade do regresso do autoritarismo. Talvez com um novo sujeito, que tenha aprendido a respeitar mais o seu povo e com um pouco mais de humildade, mas autoritário de todo o modo.
Para acabar com o autoritarismo, temos de combater todos os autoritarismos. O combate ao
autoritarismo começa com as atitudes e comportamentos de cada um. A mudança que
queremos para a nossa sociedade tem de começar em nós, no nosso pensar e agir perante as
circunstâncias que nos rodeiam, talvez impulsionados por líderes que inspirem confiança,
empatia e capacidade de inovar.
De outro modo o autoritarismo pode ser destino que nos espera.
Se não começarmos a pensar e agir de modo diferente.
Rafael Branco
Domingos Costa
31 de Janeiro de 2025 at 20:04
“Tenho medo dos vendedores de democracia
que sacrificam no altar da liberdade quem não pensa como eles
Tenho medo dos vendedores da justiça
que acorrentam e esmagam quem não aceita as suas leis
Tenho medo de quem tem medo
que lhe tirem o poder de mandar e acorrentar ideias e sonhos
Tenho medo de quem se vende por trinta moedas
e de quem sacrifica ao Deus dinheiro a sua dignidade de pessoa
Tenho medo de indignados que já foram
e de vozes roucas de gritar palavras que outros lhes ditam
Tenho medo que um dia acordemos amordaçados
e tenhamos de chorar escondidos
a saudade do tempo em que fomos livres!
Bispo D. Manuel António, 2017