Introdução
- Hesitação inicial
Devido ao simbolismo emocional que reveste o último dia do ano – fim de um ciclo, tanto no calendário como na vida económica –, pretendi ter terminado e partilhado um artigo de opinião com o essencial de um pensamento que vinha aprofundando ativamente desde novembro último. Não aconteceu. Talvez por insegurança, fui adiando a sua conclusão, ora absorvido por trabalho útil e deveres familiares corriqueiros, ora tolhido por distrações banais. O que é certo é que hesitei, e o artigo não saiu no dia 31 de Dezembro de 2024.
O arrastar dessa hesitação atirou-me, desaninhado, a baloiçar entre três possibilidades: i) face à torrente de acontecimentos e contra-acontecimentos políticos que entretanto irromperam e animaram o país no ínicio de janeiro, se não devia esperar a poeira assentar e só depois organizar melhor as minhas ideias; ou então, ii) quedar-me quieto a murmurar comentários dispersos durante o concurso doméstico “Curandeiro da Política Nacional” daqueles dias, ou por último, iii) conservar os meus ímpetos de flá vón vón[1] para permitir que as minhas já recorrentes inquietações, pudessem por força do acaso, decantar-se em ação concreta.
Receoso, decidi-me por aquela que seria talvez o mais confusa de todas: como transformar uma opinião em ação concreta, como no refrão bem kizombado “tá falar, tá fazer”[2]
Vai daí que, inspirando-me naquela que é uma das mais populares divisas dos santomenses – “ver para crer”-, vou fazer por justificar a accão que proponho como substituta da mera opinião.
O itinerário desta viagem começa por travessia pelos caminhos da opinião, cruzará atalhos, inclui pausas para recuperar o fôlego de realidade e, por fim, se formos bem-sucedidos, chegaremos ao encontro da ação. Para não maçar e evitar rodeios, o leitor, sinta-se à vontade para saltar parágrafos e ir direto ao essencial.
- Nota ao Leitor
Antes de seguir com esta análise, faço um esclarecimento necessário: as reflexões aqui apresentadas são baseadas na minha vivência e percepção da sociedade. Algumas conjecturas podem não corresponder exatamente à realidade, mas refletem a minha impressão sobre o país.
Não pretendo chocar sensibilidades alheias nem parecer preconceituoso. Tampouco desejo generalizar características que não são aplicáveis a toda sociedade. O objetivo deste ensaio não é apontar verdades absolutas, mas sim convidar à reflexão, à troca de ideias e ao questionamento dos caminhos que temos seguido e dos que ainda podemos construir juntos.
O ensaio centra-se essencialmente no intervalo temporal de 4 semanas anteriores e posteriores ao desfecho político de 6 de janeiro de 2025. Este reparo é devido, dado que o tempo entretanto decorrido, alterou algumas cambiantes do contexto em que sustento a minha análise. Vamos a isso.
- O que Ví
- O prenúncio das chamas
Os acontecimentos do pós-6 de janeiro evidenciaram uma assinalável pulsação de vitalidade política. Algo já há algum tempo ausente do país.
Entretanto, e apesar do frenesim e suspense que, surpreendentemente, decidiram juntos sair à rua, o cheiro e o crepitar abafado de algo a arder tornaram-se inegáveis. Por instantes, aquele som discreto soava familiar, sussurando camuflado em brasas de queima lenta.
Nestas circunstâncias o perigo instala-se de forma discreta e traiçoeira: sem alarde, os alertas são ignorados ou mal interpretados, enquanto as consequências se agravam.
Para nosso infortúnio, os ventos fortes da primeira quinzena do novo ano trouxeram-nos mais do que agitação: avivaram as chamas, tornaram o cheiro mais denso, o rugir das labaredas mais audível e, finalmente, o calor sufocante. Assim temos vivido, sob o jugo de uma natureza insular atiçada pelas alterações climáticas tão assustadoras quanto “lucrativas” – e igualmente inúteis.
Os ventos de janeiro apenas expuseram o que já ardia há décadas. Era, enfim, a nossa democracia em chamas. Vejam bem: o sistema de valores, estruturas e práticas que, desde 1990, com charme, elegância e altruísmo , acenou o país com renovação, esperança e voluntarismo admirável, consumia-se diantes de nós, num ritual de autodestruição. Pela enésima vez, a nossa democracia sucumbia, como se estivesse presa a um destino inevitável.
“Cuesa pegô fogo dele outra vez, hém!!!”[3]
Filho de meses a seguir à independência, eu tinha 14 anos em 1990 e via a democracia como um edifício imponente, majestoso e cheio de encantos românticos. Esse olhar adolescente cedeu, com o tempo, ao de um adulto maduro que acompanhou o seu denguê[4] desengoçado, rumo ao colapso.
Aos poucos, sua grandiosidade desmoronou nas mão da classe dirigente e seus correlegionários, que a moldaram. O que antes se assegurava sólido e inabalável, revelou-se uma estrutura frágil, corroída por anos de negligência que mascaravam o seu verdadeiro estado.
Não é a primeira vez que o descaso da classe dirigente e seus agentes de serviço deixam marcas tão visíveis – basta olhar além mar. Tragamos à memória as imagens que, há poucos meses, inundaram os ecrãs do mundo: os incêndios vorazes em Los Angeles, Califórnia. Quanto mais opulentas as mansões, mais farto o festim das labaredas. Tudo ruía – símbolos de solidez, engenho e afluência-, tragados pelo caos.
Não foram só as chamas de destruição que impressionaram. Por entre as temperaturas insuportáveis do ambiente circundante – fumaça, gases mortíferos e destruição –, não faltou espaço para a infalível criatividade humana. Quem não viu salteadores emergirem na escuridão para aproveitar-se da baixa visibilidade? Quem não viu gente atear fogo sorrateiro por motivos de inconcebível malevolência? Quem não se apercebeu de passos furtivos rumo ao saque de bens de uma vida de labor? E como se não bastasse, houve até aqueles que, saindo do conforto dos seus sofás à temperatura amena, prometeram extinguir o incêndio alheio com sopros de vaidade e alguma teatralidade.
Estas imagens desnudaram falhas estruturais profundas: gestão florestal irresponsável, infraestruturas inadequadas, recursos hídricos insuficientes para o combate às chamas, modelos de urbanização insustentáveis e, não menos importante, o desleixo sórdido das autoridades diante das evidências irrefutáveis dos efeitos das mudanças climáticas.
Por ora, chega de metáforas: em São Tomé e Príncipe, o que arde tem nome, rosto e deixa queimaduras no corpo da Nação. Longe das chamas Califórnia, esta é a realidade que agora me proponho falar, sem evasivas.
- O incêncio consumado
A nossa democracia, tal como foi proposta à Nação em 1990, esgotou-se. São 35 anos de um rosário de promessas não cumpridas que gritam esta verdade crua. O fogo alto, avivado pelos ventos fortes do início do ano, escancarou uma face do edifício em ruínas.
Era para ser um amanhecer de mudança, como as democracias prometem às sociedades que as abraçam. Aos santomenses, calhou-nos uma fealdade cara-mamão[5]: o quotidiano de conflitos que fervem noite adentro.
Nós vivemos uma democracia de papel: cumpre calendário eleitoral, ergue instituições – algumas só de nome-, copia orçamentos ano após ano, festeja datas solenes com honrarias quase obsoletas. O país, esse, não sai do chão. Quando, com muito esforço, endireita-se e procura por-se de pé para caminhar, só consegue ir para trás porque não sabe sequer por onde começar para ir em frente.
Com efeito, a nossa juventude, outrora celebrada como promissor “dividendo demográfico”[6], já não acredita nesta democracia: fogem em massa. Os nossos idosos fitam-na com desconfiança, prostrados pela indignidade de uma velhice esquecida. Até mesmo os recém-nascidos, se pudessem, pediriam o passaporte ainda na maternidade, prontos a emigrar assim que suas mamas recebessem alta- no ventre captaram vibrações que não prometem futuro.
Isso dói na alma da gente de todas as fés.
Como aguentámos tanto tempo de paz fingida, fazendo de conta que estava tudo bem? Quantas vezes defendemos com unhas, dentes e punhos cerrados, o que sabíamos ser errado? Depois de tudo o que fazemos uns aos outros, o que resta dos nossos sentimentos?
Então, não somos todos filhos da mesma família?
Intuo que os nossos laços de sangue, que à primeira vista podem parecer indecifráveis, na história secular deste chão e destas gentes, revelam-se: em São Tomé e Príncipe, somos uma Grande Família, forjada a partir de cruzamentos improváveis -cunhada no paradoxo orgulhoso: “Somos Todos Primos”
Pois bem, se assim é, o que se apoderou do país? Estaremos condenados a uma má sorte sem fim, ou há algo mais por trás deste destino mufinado?[7]
- As raízes do atraso
- Raiz principal: o poder político
Como em quase todos os momentos solenes da nossa vida colectiva desde de 1975-quiça antes mesmo-, os “incêndios” nacionais sempre se deflagaram a partir do mesmo lugar: na “Corte” do Poder Político. Pouco importa o nome que assume em cada época – o epicentro das crises permanece o mesmo.
É lá, no tabuleiro do malfadado xadrez político do poder, que as regras do jogo se moldam à conveniência do momento; onde a batota se disfarça de estratégia; onde o que pertence ao coletivo, desaparece sem pudor e sem deixar rasto; onde a vaidade e os egos se impõem à integridade e ao bom senso. É precisamente nesse espaço, onde, invariavelmente, os tlugudus – confusões- dentro do quintal familiar tendem a começar e alastrar-se à sociedade.
Filhos desta terra e dos mares que nos circundam, gente simples e de boa fé, ao pisarem os corredores do poder passam por uma transformação inquietante. Habituam-se ao estalido bajulador das portas dos carros oficiais, que nunca tocam a partir do interior—sempre abertas por fora por mãos alheias, num gesto automático de vassalagem; o tapete vermelho comprido estendido à sua passagem; às reverências vazias; à pompa dos títulos “Suas Excelências” e “Chefes” de toda e qualquer coisa. O peso da responsabilidade, antes sagrado, dissolve-se no conforto da vénia lombar desnecessária.
E assim, já não são os mesmos. Em contacto com o poder, uns tornam-se irreconhecíveis; outros apenas revelam aquilo que sempre foram, agora sem freios. No fim, todos se tornam reféns do jogo que um dia juraram mudar.
Mas o espetáculo da Corte não se desenrola sozinho. O poder político conta com três aliados, dois deles fiéis e poderosos: a elite do atraso[8], a imprensa cúmplice e o silêncio da sociedade.
- Raiz co-adjuvante: elite do atraso
A elite do atraso não governa formalmente, mas governa na prática. Sustenta-se no “absolutismo” do conhecimento, na vaidade do título académico, na expertise tecnocrática jamais posta a prova, ou ainda, na simples proximidade com os donos da Corte. São os articuladores dos negócios do Estado e mestres da indústria do financiamento para o desenvolvimento.
Contudo essa lucratividade não se traduz em progresso real. Em 2018, a dívida pública dos países africanos já representava 46,5% do PIB, com algumas regiões ultrapassando os 85,4%. A experiência demonstra que, em vez de resolver problemas estruturais, o financiamento externo mantém o país aprisionado na lógica da dependência. Entre 2007 e 2017, a ajuda ao desenvolvimento na África quase dobrou, mas sem impacto duradouro na redução da pobreza ou no fortalecimento da economia real.
Enquanto o país empobrece, essa elite do sistema, floresce silenciosamente, acumulando influência sobre os fluxos financeiros e mantendo a sua posição intocável como de intermediária entre o Estado e os credores.
Essa casta distingue-se pelo distanciamento, indiferença e, por vezes, desumanidade. O cidadão comum é visto como descartável, uma engrenagem menor na grande máquina de extração de recursos. O país aproxima-se de uma nova forma de plantação do século XXI, onde a segregação não se dá pela cor da pele, mas pelo acesso a círculos de influência e oportunidades restritas.
Controlam políticas, influenciam investimentos e desviam recursos internacionais para os seus próprios interesses. O seu sucesso não advém de inovação, mas da habilidade em operar dentro de um sistema viciado. Protegidos pela máscara da neutralidade técnica, mantêm o país preso ao atraso.
Além da elite local, há também oportunistas externos, infiltrados nessas redes, cultivando afinidades e tornando-se, num piscar de olhos, referências de sucesso inflado. Enquanto a massa de talento nacional permanece sufocada por leis inoperantes, fiscalidade opressiva, acesso dificultado ao crédito e burocracia paralisante.
- Raiz co-adjuvante: imprensa cúmplice
A imprensa cúmplice molda percepções, protege interesses e perpetua narrativas convenientes. Outrora semi-independente, transformou-se num braço ativo do sistema. É preciso distinguir entre profissionais honestos, marginalizados e desamparados, e os serviçais que poluem o espaço público com falsidades, gritaria vazia e monólogos manipuladores — traindo a verdade que deveriam defender.
As rádios, televisões e redes sociais tornam-se palcos de encenação, onde a realidade se dobra ao gosto de quem paga melhor.
Juntos, o poder político, a elite do atraso e a imprensa cúmplice formam um triângulo de influência que sufoca qualquer tentativa genuína de mudança.
- Raiz co-adjuvante: inércia do silêncio e da omissão da sociedade
Perante esse triângulo viciado, a contaminação da sociedade foi inevitável. Corroeu-se o sentido de pertença, amizade e solidariedade que, em tempos, nos uniu. Esse espírito habitava nossas memórias de infância, nos quintais felizes, antes que os tlugudus destruíssem tudo.
Enquanto alguns, de boa índole, passaram pelos corredores do poder com integridade, a maioria de nós assistiu em silêncio. Por medo, por cansaço ou por desleixo. Ficámos à sombra, permitindo que o que éramos se apagasse. Eu, apesar dos meus esforços noutros domínios, também faço parte desse grupo. Dizer isso custa-me.
Nunca imaginei que chegaríamos a tanto. Nunca quis acreditar que permitiríamos tanto.
E agora pergunto-vos: estarei mesmo sozinho?
.
Nos momentos-chave daquelas tórridas semanas, vi o quintal maior da república sacudir o pó da longa, angustiante e semi-desculpável cãibra que o paralisava; vi “pagadores de promessas” saírem das sombras; vi aprendizes de curandeiro improvisados de fato-macaco e gravata; vi fardas demasiadas em corpos franzinos, que pareciam sussurrar um sonho reprimido de oportunidade de formação ou emprego produtivo; vi fanáticos do mesmo clube “desamigarem-se” em ringues improvisados a céu aberto; vi, outra vez, o previsível e desconcertante subir de escadas flutuantes à primeira contrariedade; vi também setores das redes sociais cunharem o percebido alívio nacional, carregado de paternalismos heróicos—sob o risco desse entusiasmo converter-se em “praga”.
Vi, sobretudo, um ar leve sobrepor-se ao antigo, mais pesado. Um respirar aliviado que se espalhou pelos pulmões da praça e dos quintais.
Mas será suficiente?
O poder e o seu meio-irmão, o contrapoder político, mudaram alguns rostos, mas, na essência, permanecem nas mesmas mãos. Os riscos de repetirmos a mesma história continuam intocados. Não há sinais de que o ciclo vicioso tenha sido rompido. Tudo aponta para o mesmo teatro, com alguns novos actores e o velho enredo. Mais, como sempre, a única pressão real parece ser a de governar com os olhos postos nas eleições do próximo ano.
Recuso-me a continuar um respeitável figurante num país que precisa de protagonistas à altura dos desafios que precisa ultrapassar. A mudança real não virá do sistema, a menos que a sociedade a exija. Se queremos um futuro diferente, precisamos começar a construí-lo agora—pensar, questionar e agir sobre o processo. Depois de descrever o que vi, sigamos, sigamos para o qeu creio que deve se
[1] Falar a toa
[2] Música do cantor CEF Tanzy
[3] Algo está a arder outra vez
[4] Gingar, remexer
[5] Cara de poucos amigos
[6] É o benefício económico potencial que ocorre quando a população em idade ativa supera a proporção de dependentes (crianças e idosos), criando uma janela de oportunidade para crescimento económico acelerado
[7] Má sorte
[8] Inspirado no artigo do cronista Armindo Laureano do semenário angolano, “Novo Jornal”
Rolando Raposo carvalho
23 de Março de 2025 at 19:46
Parabéns, mais vale tarde do que nunca. Abraço
Derio Costa
23 de Março de 2025 at 23:27
Muito interessante esse exercício, é importante esse tipo de atitude/atividade como cidadão para se fazer valer a democracia/liberdade de opinião e mais os anseios socioeconómicos do país.