Autópsia da Alma, é uma proposta literária muito apelativa do autor são-tomense, Dias Cardoso, natural da Trindade, radicado em França, com passagem por Portugal, do seu nome, José Maria Cardoso. É um tributo à sua filha Ellyzé, estudante universitária que residia em Londres, encontrada sem vida, aos preciosos 26 anos. A Ellyzé que jamais se renderia às quedas, aos tombos dos prognósticos “não reservados”, foi pela morte traída “numa emboscada” no seu quarto, durante uma noite de setembro.
Afastados fisicamente pela geografia, a sensação de impotência perante a incapacidade de ultrapassar a sentença da morte, diz o autor: «Sem dar lugar à boçalidade, fui penetrando no vão do tempo em que ninguém melhor que a mãe pudesse jogar limpo» … quiçá, para que a Autópsia da Alma apurasse com olhar clínico, os motivos pelos quais o ponteiro do relógio da vida parou. Como diz o próprio, na sua nota «Em busca de respostas onde não havia perguntas», convida o (a) leitor(a) a viajar por várias latitudes, quer física, pessoal, cultural e literária, indo ao encontro das suas vivências, vasculhando os meandros da tradição, da família, das sociedades e da religião, para digerir o sentimento da perda.
«A que idade a tua filha viu lua?» É a pergunta que promove um intenso diálogo com a memória inspiradora, aliás, um ponto de partida entre a história e a estória, a partir de um olhar refletido e preocupado com muitas incidências nas adversidades da vida. Dias Cardoso, explora outras motivações políticas e sociais na tentativa «de agarrar o tempo que corre veloz» em direção à natureza, um elemento presente em toda a obra, apenas para citar alguns (lua, terra, mar, chuva, etc.) e que confere e conjuga a obra no feminino. Estes ingredientes temperados em justa dose, serviram para anestesiar a notícia da morte, comparada pelo autor, a uma bomba detonada pela tia, desde Inglaterra e no meio da noite.
É patente e notória a sua liberdade em todo o território mental, expressivo e linguístico, muitas vezes menos contido. Dias Cardoso, assumindo um compromisso identitário e maternal com o seu chão natal, articula os dois extremos do fogo cruzado, entre a notícia da morte da sua filha e um ato terrorista. Na sua relação de proximidade com a ilha que o viu nascer, o autor ultrapassa as barreiras geográficas, culturais e até pessoais para dizer aquilo que lhe vai na alma, como sempre foi o seu apanágio. Não só pelo resultado de um exercício de memória, mas também, devo dizê-lo, com franqueza, pela sua manifesta apetência poética que mereceu a minha particular atenção.
O narrador demonstra uma capacidade criativa a ter em conta, penso eu, a mobilizar e convocar várias figuras de estilo, sendo a metáfora e a comparação, as evidências maior que dão fôlego à sua narrativa.
A obra editada com a chancela da Editora Pena Real e oportuna para a leitura nestas férias de verão e consecutivamente, de “gravana”, a ser apresentada brevemente, em Lisboa, já a venda na Internet (https://edicoespena.com/ ou https://www.zmacar.com/), é o primeiro título do autor, em prosa, que também escreve poesias, não editadas, já com provas dadas, entra no panorama literário são-tomense a pés juntos, atendendo a imprevisibilidade dos eventos, criando uma expectativa maior à medida que se lê a obra. O autor está de parabéns.
Além de oferecer ao (à) leitor (a) uma acutilância na sua narrativa, tanto na forma como no conteúdo, acaba por celebrar e cantar a sua nostálgica origem africana. «Não podia haver um sítio para gerir a ausência de uma filha, onde um pai poderia reservar a sua presença permanente, senão nas páginas de uma memória» da África, aliás, Ellyzé – Autópsia da Alma são-tomense.
Lisboa, 25 de julho de 2024
Por: Manuel Bernardo
(Escritor e poeta)