Não há dúvidas que a questão se aparenta desenquadrada da escandalosa partilha sazonal do bolo nacional e respetivas migalhas partidárias que levaram pessoas esclarecidas ou que, se julga de consciência sã, quer no país, como algumas correndo do estrangeiro para encher de amarelo e azul, o Congresso Extraordinário de ADI, realizado no mês passado, na capital São Tomé, onde fez-se a reeleição de líder e dois vice-presidentes – sem contestação – por mascarada aclamação e adiou-se a distribuição de cargos para o recente Conselho Nacional, deparando-se o cidadão de pensamento livre no insólito bloqueio aquando da tentativa de interpretação e alcance do Novo Homem São-tomense.
O NHS, a sigla encomendada pelo atual 1º ministro de São Tomé e Príncipe, em sequência do sangue derramado pelos civis aprisionados, massacrados e assassinados pelas chefias militares, deixa leituras no ar e preocupantes inquietações de escorrer muita tinta, na medida que aquando do horroroso e sanguinário acontecimento de 25 de novembro de 2022, o governo do partido vencedor das eleições, com a maioria absoluta, acabava de ser empossado, pouco mais de uma semana. Depreende-se, facilmente, que o chefe do executivo são-tomense, apesar de não deixar à justiça o que é dela, não cansa de oferecer aos magistrados motivos suficientes para uma investigação séria concernente à brutalidade castrense.
Daí, nunca é demais partilhar com o público do Téla Nón, os detalhes da entrevista publicada, na semana finda, pelo professor Vicente Lima, o tio de Bruno Afonso, o Lucas, numa conversa com a imprensa, em que a prestativa e única testemunha civil do Massacre de Morro, sangrada e esfolada de forma desumana pelos militares, julgada e sentenciada pela justiça montada pelo XVIIIº Governo constitucional, dirigiu um oportuno desafio diretamente ao atual primeiro-ministro.
«Eu quero perguntar para Patrice Emery Trovoada. Eu é que fiz tua esplanada, em Morro Peixe. Eu Lucas, carpinteiro, você conhece-me, fiz tua esplanada. Essa casa lá, tua, em Morro Peixe, eu é que sou, fui teu carpinteiro. Eu formei em Água Izé, você próprio leu meu documento. Fiz carpintaria. Tua esplanada, onde você dava atividades, tua piscina, cadeiras que estão lá feitas, eu é que fiz.»
Algo degradante para a imagem do país e Estado do Direito democrático, mas que deveria ser poupado, caso não houvesse intervenção horrorosa do governante são-tomense – até prova em contrário – a peça central na “inventona” militar e na decisão judicial, desde a sua primeira declaração, cuja evidência não deve ser desarticulada do apoio recebido do presidente da república, da maioria parlamentar, dos magistrados e da comunidade internacional, na visível adulteração de conceito da democracia, anteriormente consagrada nas ilhas, apesar de debilidades económicas.
Num contexto assombroso, com desemprego juvenil gritante e crescente pelas voluntárias epidemias governativas, em que a força de trabalho útil, maioritária da população, alguns desnorteados assumem comportamentos que não se identificam com a tradicional elegância são-tomense, enveredando de forma descarada por caminhos de nada dignificantes, outros, em êxodo, na perspetiva de uma vida melhor, viajam para horizontes fora de fronteiras, um jovem batalhador e profissional reconhecido, ao invés de acarinhado pelo poder, foi um dos sorteados para derramar sangue na parada militar e por sorte, ao contrário de outros quatro civis assassinados, saiu com vida do corredor de morte. Lucas não teria contas financeiras, a acertar com o cliente, outrora beneficiado do seu profissionalismo?
«Peter Lopes e branco, quando estavam lá a trabalhar contigo, onde você Patrice passa nele, Fradique passa nele, Melo Xavier, non sei quê lá, passa nele, pá ir pá casa, essa ponte que está lá no lugar pantanoso, eu é que fiz juntado com os rapazes de Guadalupe.»
Não ficou esclarecida a questão. A greve na Agripalma, a maior unidade produtora privada para exportação, há mais de um mês e a dos professores que já leva duas semanas, as duas derivadas essencialmente do salário miserável, perante os gastos exorbitantes do executivo em viagens e mordomias, sem que o governante que prometeu Solução relâmpago, em 2022, aquando de namoro dos votos como que trouxesse consigo a varinha mágica, demonstram um país a meio gás e sem capital para dar resposta aos permanentes gritos de desigualdades sociais. Ao invés de diálogo responsável com os sindicatos, na busca de solução para reivindicações legítimas, depois de ameaças governamentais e tentativas de assédio para alguns docentes furar a greve, há movimentações do governo em virar os pais, cansados de filhos “sem escola” contra os professores.
Na direção oposta, as chefias militares acusadas pelo Ministério Público, no início de 2023, para imediata passagem à vida civil e o encaminhamento à cadeia, numa desobediência jamais vista e encetada pela bizarra manipulação da justiça, o pilar do Estado do Direito democrático, o 1º ministro, não separando os poderes constitucionais, manda em tudo e todos, promoveu os acusados, beneficiando-lhes de aumento salarial e mordomias.
Lucas terá contas financeiras por acertar com o antigo cliente desafiado por ele, o atual chefe de política económica e social dos são-tomenses, pela 4ª vez chefe do governo, lhe retirando dinheiro que daria resposta às reclamações da classe docente? Na condição de carpinteiro, supostamente teve acesso à burra pessoal do chefe do executivo como num dos mandatos, um segurança tirou benefício de soma avultada em casa do governante?
«Patrice Emery, o quê que eu devi você que você quer me matar? Eu quero perguntar. Porquê tudo isso que aconteceu? Desculpa! Senhor é primeiro-ministro sim, mas depois de sair de posse (cargo) você é um cidadão como eu. Não vai deixar de ser cidadão como eu.»
Não preocupa ao entrevistado, a hipocrisia da comunidade internacional perante a chacina, a sangue frio de quatro vidas humanas são-tomenses e o perigo de vida pessoal que corre perante o repto ao 1º ministro, este reconhecido pelo advogado, Miques Bonfim, através de provas de factos, ou seja, vídeos, fotografias, declarações e testemunhas recusadas no inusitado julgamento pelo juiz Edmar Teixeira, de autor moral e material da “inventona” de 25 de novembro de 2022?
«Eu quero perguntar para mundo geral que seja onde for que essa fita vai, essa mensagem vai, eu estou a perguntar para todos esses militares, Stoy Miller, tenente Blô – Stoy Miller não aguentou, foi comprar terreno próprio lá, ao lado da minha casa para controlar-me. Eu não consigo chegar minha casa. Meus …
Eu não consigo viver em boa cama. Eu estou dois anos sem saber, pegar cabelo de minha mulher, pelo menos pegar vestido de minha mulher, ou pelo menos, correr ela mãos na cabeça, por causa de Stoy Myller. Lá que ele viu para comprar terreno. Eu quero perguntar, o quê que eu devi ele, que ele quer matar-me?»
Pela narrativa, os militares também não vão com a cara do jovem trabalhador. O Lucas não terá a mínima noção das razões por detrás de caça ao homem, em que ele se tornou privilegiada “carne para canhão” como alguém a abater pelas chefias militares e pelo primeiro-ministro?
«Se eles têm rancor de mim, eu não sei. Única pessoa que eu nunca cheguei perto dele, é Miguel Trovoada. Pinto da Costa teve acesso de estar comigo. Senhor pode ser tudo que senhor é. Senhor parou, deu gente água pá beber. Fradique conviveu comigo, como Patrice conviveu comigo. Sabe que eu sou bailarino e tudo.»
Porquê do silêncio ensurdecedor das figuras políticas, jurídicas, muitas reformadas e, as de sociedade civil, em geral, que outrora buzinavam por tudo quanto é canto, assistiram a execução sumária e permanecem de boca fechada perante barril de pólvora e matança da própria democracia por alguém que os são-tomenses, pelos vistos, passaram a bajular ou demonstram ter medo?
Mantendo fiel à prática de «Entre vista», ou seja, olho no olho, nada melhor que palavras do próprio entrevistado.
«Santomé! Uma terça parte de Santomé conhece-me. Eu quero perguntar, minha gente, eu quero perguntar, o quê que eu devi essa gente, que quer matar-me?»
José Maria Cardoso
16.03.2024