Opinião

«Levei um chuto no ovo (testículo), tenho pá operar até hoje»

Os estudos vão dando voltas à demografia com a diminuição acelerada da população mundial, a ser uma evidência para as próximas décadas. Em paralelo, para lá da língua portuguesa com que os são-tomenses, de forma geral, diferente de outros povos da lusofonia africana, sem complexidade, navegam pela civilização, o que não menos deveria orgulhar a auto-estima nacional, é a coincidente sigla STP e, a irrisória e misteriosa geografia humana nos 1001 km2 que lhes obrigam, tão poucos, a Ser Todos Primos.

«Eu passei seis dias, sem saber o quê, que é água (nem comida) para pôr na boca!»

Vão surgindo novas questões à entrevista de Bruno Afonso, Lucas, o civil sobrevivente do Massacre de MATAPÁ, consumado na parada militar com a execução sumária de vidas humanas, ou seja, civis aprisionados – um arrancado em casa pelos justiceiros castrenses – torturados e assassinados, no sangrento dia 25 de novembro de 2022.

«Quando tomaram-me (em casa de Arlécio Costa, para onde foi levado) para pôr no carro, um dos militares, eu não posso dizer António ou Francisco ou Manuel, porque lá estavam quatro pessoas que estavam a minha trás. Tinha Wilker (guarda-costas do 1º ministro e oficial da marinha, inesperadamente, um dos elementos no comando das operações da madrugada sangrenta que lhe ofereceram ostentação governamental e melhoria salarial), Stoy Miller, o Sargento Dia, com Ajax.

Assim que esta perna (esquerda) está a doer-me, perna que está boa, que é esta (direita) que pus no chão pá encolher esta que está a doer para subir carro, eu só sei que eu levei um verdadeiro chuto na parte de trás.

Eu estava com as pernas abertas, então apanhou-me no ovo (testículo). Eu tenho esse ovo pá operar até hoje.»

Feito prisioneiro da emboscada, liberto do corredor de morte e martírio militar, confiado aos agentes da Polícia Judiciária, com o inchaço e as marcas de sangue por todo o corpo e ao longo de semanas, como não tocar corações dos magistrados com o apoio da assessoria direta portuguesa, enquanto investigaram o jovem, sem lhe oferecerem a mínima assistência médica, após o visível relato de tortura?

«Quando eu estava a tentar subir carro, eu levei um chuto. Quando eu apanhei chuto, minha gente, eu não minto para vocês. Eu não estava mais pessoa. Eu só sei que eu encolhi. Os homens (militares) apanharam-me, jogaram-me pôr no (ensanguentado) carro.»

Num santo país, como ser compreensível o virar de olhos perante o massacre militar que, desde as primeiras horas, viu a justiça se associar à agenda criminosa contra o Lucas?

«Quando eu cheguei à PIC, PJ, os agentes de Santomé, começaram a resolver problema. Quem que é, eu posso chamar como testemunha. Começou a fazer, ele só sabe que quando espantou, o diretor de PIC disse: “Ê! Suspende tudo isso! Tem outra pessoa que está a fazer esse trabalho já!” Diretor de PIC disse: “Suspende isso tem outra pessoa já pá fazer!” Foi numa segunda-feira. Não! Num sábado à noite.

Sabe quem é que começou a resolver o problema? Tal o procurador (em simultâneo, instrutor processual, defensor do interesse público e da legalidade jurídica) que estava na sala de julgamento para me apertar. Naquela noite… Ele é que foi pá lá! Ele mais duas senhoras procuradoras. Estava lá, a fazer-me pergunta com atitude. Tem um dele que tem dente partido, os dois. Esse que tem dente partido e esse preto. Estavam lá a fazer perguntas, pergunta e, eu não estava altamente concentrado, porque eu não sei, o que é que eu fiz que eles estavam a fazer perguntas de tantas coisas.

Fizeram-me perguntas, depois pararam. Tinham de parar, o que eles estavam a fazer, veio um grupo de portugueses, de manhã de segunda-feira. Segunda-feira, eu estava lá na PIC (Polícia Judiciária) eu não conseguia virar, não conseguia beber água!»

Meu Deus! Da constatação científica de abertura – redução da população mundial – dentre três, quatro fatores, as sofisticadas guerras; os efeitos colaterais das alterações climáticas; a redução de fertilidade feminina; a educação feminina aparece no centro. A performance na escolaridade, retira o amor de mãe aos filhos? As procuradoras e juízas, nas várias fases processuais da “inventona” golpista, desde investigação até à sentença do XVIII Governo, ditada no julgamento de Bruno Afonso, não sentiram dores para com o sofrimento da senhora Benvinda Lima, a mãe do Lucas? Um anjo cruza ao destino de Lucas, enquanto resistia ao premeditado homicídio governamental.

«Esse que está lá chamado África. África (agente da Polícia Judiciária) é que usou inteligência, tomou uma coisa que gente diz, soro. Soro! Pôs. Mandou-me abrir boca, porque boca não estava a abrir. Dor era tanta (dentes partidos)! Ele é que me meteu mangueira. Furou leite fresco. África!

Eh pá! Há pessoa que diz esse homem é mau, mas eu não vi mau dele naquele dia, não! Ele furou leite fresco, levantou leite, depois mandou-me para eu poder engolir. Nem engolir, eu estou a sentir aqui dentro (seis dias no cativeiro) com problemas. Quer dizer. Tudo que estou a engolir, está a doer. Então!? Eu disse, eu não consigo! Então ele disse: “Não! Você tem que! Pode ser dois goles, você tem que engolir!”

Ainda bem que eu engoli isso. Sabe o quê que eu vomitei? Sangue! Eu vomitei sangue preto, já!»

A justiça é determinada pela lei e pelo espírito individual da honestidade intelectual, mas imbuído na defesa dos princípios jurídicos de valorização da vida humana, o que não deveria embaraçar ninguém na descodificação do Novo Homem São-tomense.

Numa sociedade, em que os progenitores abandonam os lares à sorte das mulheres, amontoam as reclamações nas redes sociais de jovens mães, em gritos de socorro, reclamando aos respetivos pais das crianças, em fuga no estrangeiro para, no mínimo, enviarem ajudas para a educação dos filhos. Daí, fácil depreender-se, sem compreensão, a lógica dos governantes, parlamentares do poder e magistrados, serem cúmplices das chefias militares, fechando os olhos à cruz que o Lucas carrega perante a incompreensível cegueira do mais alto magistrado da nação.

«Eu tenho uma operação. Tá aqui. (lado esquerdo) Eu não tenho problema. Não vou esconder. Eu estou pronto para ir fazer, mas está anulada. Eu vou lutar até eu fazer essa operação, aqui mesmo…

Eu já não consigo comprar um medicamento mais. Meu tio (Vicente Lima) fez o que pode fazer. Eu agora, sabe o que está a acontecer? Eu tenho que depender, não é bom identificar o nome de doutores (de bem). Né? É um erro. Doutor que tem consciência dele, que sabe gravidade da doença que estou com ela, é que tira seu dinheiro para comprar medicamentos para me dar.

Esta vista (olho) que está aqui, minha vista esquerda, não atinge mais do que 20 metros. Não vê mais que 20 metros. Esta que está aqui, vê bem, sem nenhuma crise. Esta que está aqui, não vê. Vocês podem ver. Vê uma cicatriz preta, vê uma marca, vê carne que aqui tá com ela. Vê aqui tem tábua até hoje. Está aqui a tábua!» 

Mantido nove meses na penitenciária, sem culpa formada, julgamento ou sentença, apesar de recursos ao Supremo Tribunal da Justiça, surdo e mudo, em violação aos mais sagrados direitos e garantias constitucionais, finalmente, passado mais de um ano do hediondo massacre, o cidadão injustiçado, na busca de paz ao espírito do corpo torturado, recorre à Divindade.

«Deus!

A mesma forma como Deus cuida de formiga, Deus cuidou de formiga, é porque ele cuida de nós todos. Eu, vocês que estão a fazer-me gravação agora, esses que me bateram, esses que querem tapar o problema, pá problema não chegar à rua. Da mesma forma como Deus cuida deles, Deus cuida de mim. Deus que me pôs, estou de pé, hoje estou a falar pá redes sociais (e televisão), para toda a gente ouvir… Deus tem um propósito para nós todos que ainda se encontram em São Tomé

Como não olhar o país, num todo!? O executivo em saia-justa para travar a greve dos professores, apesar de ameaças e sensibilização dos pais contra a classe docente, entrou numa espécie do plano B, acusando a oposição moribunda de interferência nas reivindicações. Na terceira semana de resistência dos educadores – baixaram a reivindicação salarial de 38% para 15% – o 1º ministro, em pompa, deslocou-se ao terreno em “campanha eleitoral” para lançar pedras de reabilitação do parque escolar com os fundos de parceiros internacionais, muitos sem a necessária luz verde.

O chefe do governo, no papel de pai, denunciou aos filhos, em reivindicação justa, de que há disparidade na distribuição que o próprio faz da riqueza, porque alguns andam a empanturrar-se de dois pães e outros, famintos, apenas recebem um pão, porque «vaca já não tem leite». Quando é que ela deu leite?

Vai longe nas suas palavras. Na distribuição desigual da riqueza, os gestores e excessivos quadros nas empresas públicas, os meninos bonitos de ADI, nomeados pelo XVIII Governo, não produzem para a elevada remuneração que auferem dos cofres públicos, superior a do chefe de Estado.

Enquanto isso, o mesmo chefe do executivo, extravagante, “pisca-olho” aos trabalhadores da AGRIPALMA, em longa paralisação laboral – mais de um mês – na clara noção de encostar à parede os investidores privados estrangeiros que, segundo o governante, devem pagar mais aos que produzem o óleo de palma, a maior riqueza nacional para a exportação.

Uma “palaiê”, a vendedora informal – perseguida pela polícia – no seu dia-a-dia para alimentar e dar escola aos filhos, não perderia tempo em namoro. Cortaria nos gastos da família.

Em paridade à maioria absoluta, demografia e riqueza, é aconselhável que se mexa no organograma do governo. Como importante sinal de reforma, há décadas propalada e tendo os eleitores oferecido, pela terceira vez, o cargo de 1º ministro à alguém, na quarta missão nessa gestão da política económica e social dos são-tomenses, a primeira solução passa por reduzir o executivo para apenas cinco habilitados governantes.

Primeiro-ministro; Ministério da área económica e financeira (Agricultura, Pescas, Mar, Ambiente, Infraestruturas, Finanças…); Ministério da área social (Educação, Saúde, Inovação, Mulher, Juventude, Desportos, Cultura…); Ministério dos Negócios Estrangeiros, da Defesa e Ordem Interna; Ministério de Justiça, Trabalho, Segurança Social e Assuntos Parlamentares. Em seguida, deve retirar as mordomias e os aumentos salariais com que, recente, o executivo gratificou as chefias da barbaridade militar, sem que os mesmos, inocentes até prova em contrário, fossem presentes à justiça.

O Lucas, vítima da brutalidade do Estado, na primeira fila e, obviamente, atento ao fim das greves na AGRIPALMA e Educação, aguarda pela generosidade governamental para o devido tratamento médico.

«Eu não tenho vergonha de dizer isso. Tá aqui! Isso é que eu vivo nele (vários medicamentos) quando acaba, eu tenho que comprar mais… Quando acabar, eu tenho que ir comprar.»

Ainda de Portugal, diferente de investigadores judiciais que perante a verdade narrada por Lucas, viram-se de mãos atadas – “Como a gente vai fazer isso agora? Como nós vamos escrever isso?” – há anos que os médicos portugueses têm deslocado ao país para no quadro de assistência médica e através de cirurgias, em várias especialidades de ciência, devolverem saúde e dignidade aos são-tomenses, como compromisso de salvar as vidas humanas.

«Veio equipa de (médicos) portugueses para São Tomé. Veio quê, queria resolver problema que eu estou com ele. Diretor de cadeia criou um desvio. Eu não consegui ser operado. Eu (quarenta anos de idade) não sinto vergonha para falar isso pá ninguém. Eu falo isso pá povo, mundo… Porquê?

Deixei de ser (sexualmente) homem!»

Passado um ano de terrorismo do Estado são-tomense, na realidade, o que nos termos da lei, impede ao mais alto magistrado, o presidente Carlos Vila Nova, sair do paradigma sonolento das palavras e exercer na plenitude, os poderes constitucionais balizados, dando resposta a todos filhos de Deus que jurou perante a Constituição defender e jamais excluir alguns?

«Eu tenho tio, irmão do meu avô, não aguentou, saiu desde, oh… País onde senhor tá a viver nele. Macau. Veio, senhor não conseguiu pelo menos dizer-me assim: Quê que está a acontecer, meu sobrinho? Lágrimas só que o senhor tem a me dar. Você imagina, um homem paga avião, não sei quantos anos não vem até aqui, não consegue dizer você, pelo menos boa tarde, mas só consegue dizer você, só chorar!?»

Apesar da má-fé do Novo Homem São-tomense, enquanto o Lucas vai-se sobrevivendo ao martírio de 25 de novembro de 2022, há que manter crença na Democracia e no Estado de Direito democrático, tão bem exibidos ao mundo nos finais de oitenta e início de noventa do séc XX.

«Eu não sei qual é o propósito (do poder). Eu sei que eu estou, deixei essa gravação no ar. Consciência deles para justiça, tem que ser feita!»

José Maria Cardoso

24.03.2024

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