PELO 78º ANIVERSÁRIO DA INDEPENDÊNCIA DA ÍNDIA
O Sul Global e a Cimeira do Futuro
Pelo Embaixador (aposentado) Asoke Mukerji
A Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) está programada para convocar uma “Cimeira do Futuro” em Nova Iorque, de 22-23 de Setembro de 2024. O resultado desta reunião de líderes mundiais será a adopção de um “Pacto para o Futuro” . Durante o ano passado, os detalhes do Pacto foram discutidos entre os 193 Estados membros da ONU sob a co-facilitação da Alemanha (representando os países desenvolvidos do Norte) e da Namíbia (representando os países em desenvolvimento do Sul). O objetivo do Pacto é “salvaguardar o futuro das gerações presentes e futuras”.
A abordagem da Índia em relação à Cimeira do Futuro da ONU foi articulada pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros indiano, Dr. S Jaishankar, em 2023. Este enfatizou a necessidade de demonstrar “solidariedade genuína” para gerar “confiança real” e integrar o “sentimento do Sul Global” na preparação para a Cimeira. Durante as discussões na AGNU em Maio de 2024, a Índia advertiu que se estes elementos essenciais estivessem em falta no processo, a Cimeira do Futuro tornar-se-ia uma “Cimeira do Passado”, levando as Nações Unidas “num perigoso ciclo vicioso de desaparecimento na irrelevância.”
O Sul Global é constituído por países em desenvolvimento membros da AGNU, muitos deles antigas colónias de potências europeias em 1945 que não negociaram a Carta da ONU. A sua adesão às Nações Unidas começou com o processo histórico de descolonização que se iniciou após a independência da Índia do domínio colonial britânico em Agosto de 1947.
O Sul Global tornou-se maioritário na AGNU, impulsionado pela Resolução de Descolonização de Dezembro de 1960. A primeira expressão visível de solidariedade do Sul Global no multilateralismo foi a adopção bem sucedida, por uma maioria de dois terços de votos, das resoluções da AGNU em Dezembro de 1963 para alterar a Carta da ONU. Estas alterações resultaram na expansão da representação do Sul Global no Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), que controla as decisões sobre paz e segurança, e no Conselho Económico e Social (ECOSOC), que controla a tomada de decisões da AGNU sobre questões socioeconómicas.
Desde 1960, o processo de consolidação e priorização das prioridades do Sul Global tem sido marcado por várias negociações nas instituições multilaterais. Isto deveu-se à solidariedade e ao sentimento do Sul Global, baseados na confiança no funcionamento eficaz e equitativo do sistema multilateral interligado do pós-guerra.
Através de negociações pacientes e viradas para o futuro na AGNU entre 1960-2015, o Sul Global/G-77 conseguiu trazer o “desenvolvimento” para a corrente principal do multilateralismo. A adopção unânime da Agenda 2030 pela AGNU em Setembro de 2015, com os seus 17 Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) é um reconhecimento deste facto. A Agenda 2030 converge os interesses comuns do Norte Global e do Sul Global num quadro integrado centrado no ser humano, no qual a paz, a segurança e o desenvolvimento estão interligados. Este é o sentimento que o Sul Global procura integrar na visão da Cimeira do Futuro.
A Cimeira dos ODS da ONU em 2023, realizada para avaliar a implementação da Agenda 2030, alertou que “numerosas crises” desde 2015 estavam a fazer descarrilar esta visão. Três grandes tendências podem ser vistas como contribuindo para estas crises.
A primeira é o renascimento da divisão Norte-Sul, que mina a confiança no funcionamento equitativo das instituições multilaterais. Durante a pandemia de Covid, a Organização Mundial de Saúde não conseguiu garantir o fornecimento adequado de vacinas ao Sul Global, devido à acumulação de reservas no Norte Global. A Organização Mundial do Comércio foi forçada pelo domínio do Norte Global sobre os direitos de propriedade intelectual das vacinas a adiar uma decisão sobre a renúncia a esses direitos para permitir o fabrico de vacinas no Sul Global.
A segunda é um recurso crescente ao uso da força armada, em vez de negociações diplomáticas, para resolver conflitos. A ineficácia e a insuficiência da autoridade do CSNU devido ao poder de veto do P5 foram expostas pelo sofrimento humano e pela destruição em grande escala nos conflitos violentos causados pelo uso da força armada nos últimos anos. Mesmo as resoluções unânimes existentes do Conselho de Segurança da ONU para a resolução política de conflitos como o Afeganistão (Resolução 2513 do CSNU), a Ucrânia (Resolução 2202 do CSNU) e a Palestina/Israel (Resoluções 242, 1860 do CSNU) não foram aplicadas. Um corolário disto é uma usurpação gradual das disposições da Carta da ONU para fazer cumprir as decisões do CSNU, tais como sanções económicas e utilização da força armada, por organismos não pertencentes à ONU, como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Isto tem um impacto direto na paz, na segurança e no desenvolvimento no Sul Global.
A terceira é a transformação em arma de interligações económicas interdependentes, que foram meticulosamente negociadas com base em princípios acordados de tratamento especial e diferenciado, conforme listado acima, pelo Sul Global em instituições multilaterais e organismos especializados. Uma poderosa combinação de governos e empresas sediadas no Norte Global têm procurado activamente contornar estas interligações através da aplicação extraterritorial das suas leis e políticas nacionais. Isto tem implicações na participação soberana dos países do Sul Global na cooperação multilateral. Aumentou também tangivelmente os custos socioeconómicos na implementação da Agenda 2030.
Se não forem controladas, estas três tendências poderão ter um impacto negativo no Sul Global, particularmente na aplicação das novas tecnologias digitais de uma forma centrada no ser humano para acelerar a implementação da Agenda 2030. A consideração da Cimeira do Futuro sobre um Pacto Digital Global exige uma atenção especial a estes sentimentos do Sul Global, de forma a colmatar as divisões digitais existentes.
Na reunião do 75º aniversário das Nações Unidas, em 2020, o Primeiro-Ministro da Índia, Narendra Modi, enfatizou:
“Não podemos enfrentar os desafios de hoje com estruturas ultrapassadas. Sem reformas abrangentes, a ONU enfrenta uma crise de confiança. No mundo interligado de hoje, precisamos de um multilateralismo reformado – que reflita as realidades atuais, dê voz a todas as partes interessadas, aborde os desafios contemporâneos e se concentre no bem-estar humano.”
Esta é a razão pela qual o foco do Sul Global durante a Cimeira do Futuro deve ser a procura de um multilateralismo eficaz no terreno. A decisão de convocar uma Conferência Geral das Nações Unidas, conforme previsto no artigo 109.º da Carta das Nações Unidas, para rever a Carta das Nações Unidas em Setembro de 2025, seria uma forma adequada de assinalar o 80.º aniversário do multilateralismo, integrando as aspirações do Sul Global.
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