Opinião

África face a nova Ordem

Por: Amaro Couto

A nova ordem é vista aqui pelos prismas da diplomacia e da militarização das sociedades.

Estão ameaçados os pilares da soberania e da fronteira de há muito respeitados pelos Estados.

É verdade que em nome de certo tipo de ingerência, as erosões a essas regras aconteciam, sendo, contudo, que o equilíbrio se procurava mediante justificações, sempre que de qualquer lado as suas violações eram pressentidas. As conexões entre as soberanias eram asseguradas pela diplomacia e todas as soberanias eram consideradas iguais, sendo que as relações entre os Estados eram consumadas pela diplomacia. Era assim a ordem jurídica. Agora o direito tende a se vergar e a força a se aprumar de tal modo que as decisões dos Estados mais poderosos se mostram já claramente unilaterais, sem necessidade de comunicação ou de aceitação prévia por parte de outros Estados interessados ou potencialmente interessados.

A movimentação se faz e ameaça desfazer o respeito pela soberania e pela fronteira dos Estados mais fracos. Para terem posições audíveis no futuro, os Estados fracos devem preparar-se desde já, apesar de já poder ser tarde demais. O conforto pode estar no fato de nada ser tido por definitivamente adquirido, uma vez que os elementos condicionantes da situação presente não permitem qualificações irreversíveis. Com efeito, a história, resultado da marcha do tempo e das ações dos homens, mostra que o futuro altera sempre a configuração da situação presente.

Só os Estados com capacidades de liderança mundial podem impor as suas vontades a outros Estados, daí a grande pressa que se observa na militarização das sociedades. Esta opção exprime-se de tal modo que condiciona ou orienta o modo de produção das lideranças mundiais. É como se a economia de guerra se instalasse em tempos de paz como forma de garantir a sustentabilidade da militarização da economia, porque prevalece a certeza de que o futuro será marcado pela guerra. Esta orientação justifica-se porque é através da guerra que os equipamentos militares são destruídos, o que é necessário para que as indústrias militares não parem de funcionar. A militarização da produção em determinados países está a mudar a feição do mundo.

Nas últimas três décadas o mundo passou da bipolaridade para a multipolaridade depois de uma breve transição pela unipolaridade, esta tradutora de uma única liderança, supostamente superior, dotada de vocação para comandar toda terra. Parece não haver registo de alguma outra fase do processo histórico que tivesse progredido com tamanha velocidade. Hoje a multipolaridade pode ser apresentada por meio de um enquadramento que traduz uma tripolaridade, considerando as lideranças mundiais afirmadas na América, Europa Oriental e Ásia. Essa evolução se processa por investimentos excessivamente amplos na indústria militar. A Europa Ocidental entra também na corrida esperando refazer ou repor a importância que tinha no concerto das lideranças mundiais.

De imediato, existem fatores que permitem questionar a validade de três polos principais na nova ordem mundial. No entanto, não há dúvida quanto a realidade que revela a importância decrescida da Europa Ocidental na nova situação. Pode-se assinalar um polo emergente na Europa Oriental e na Ásia e o outro na América. Este último polo que vinha aglutinando e liderando os países da família anglo-saxónica e da Europa Ocidental, mostra-se agora em decomposição, por força da sua liderança que atualmente se pretende com total autonomia, fato que diminui a visibilidade da importância política dos outros membros que o compunham.

Movimentos centrípetos particulares são dados a observar. Uma forte convergência é evidente nas relações entre os dois principais países da Europa Oriental e da Ásia. Todavia, não se pode também descartar um eixo de aproximação entre as lideranças afirmadas na América e na Europa Oriental para que a gestão dos conflitos mundiais fique assegurada pelos dois, como já sucedido num outro tempo não muito distante.  Se tal acontecer, o eixo Europa Oriental/Asia fica fragilizado, passando a Asia a assistir o que os outros dois pretenderem ou entenderem para o mundo.

Neste caso, regressar-se-á à bipolaridade. A bipolaridade será ainda possível se, se conservando a aproximação entre as lideranças da Asia e da Europa Oriental, se formarem duas frentes opostas, sendo a outra sustentada pela liderança americana.  Em qualquer dos casos, a Europa Ocidental fica secundarizada e não será pela agitação que conseguirá reverter a situação em que se encontra.  A nova perceção é que a Europa Ocidental perdeu assento dentre as centralidades mundiais e que lá permanece como uma matéria para a arbitragem dessas centralidades.

Num cenário virtuoso, é possível considerar o mundo não através das cortinas das fronteiras territoriais, mas de forma global, com a unidade dos esforços das três lideranças mundiais, para preservar a estabilidade das pessoas e dos países, eliminando os receios da emigração, das liberdades ou do direito ao desenvolvimento. No entanto, sabe-se, pela consciência dominante, que tal seria apenas um sonho, na verdade irrealizável.

Desde o início da colonização, há mais de seis séculos, que as estruturas políticas, jurídicas e financeiras estabelecidas pelas diferentes ordens que se sucederam no mundo colocaram a África numa condição de submundo, reduzindo-a a um espaço de reserva de matérias-primas, exploradas e por explorar, em desconsideração da pessoa africana. Por sua vez, a África não tem sabido desfazer ou ultrapassar tal situação quando o podia e pode fazê-lo, nomeadamente através de novas vitórias por extensão das vitórias já alcançadas contra o colonialismo e no âmbito das iniciativas que concretizou para se libertar do neocolonialismo.

As novas vitórias requerem ações resolutas para desfazer as colonialidades que persistem, designadamente: o modelo de organização política; a cultura; a forma de pensar; as relações do africano com o trabalho, ou seja, o tipo de produção que o europeu quer do africano. São ações que só a África pode realizar. A história prova que a ordem estabelecida em 1945 instituiu mecanismos de declarações, recomendações e de imposições financeiras e comerciais que não protegem eficazmente contra o neocolonialismo.

É um fato que a ação humana pode retardar a evolução, mas é também fatual que não pode bloquear definitivamente ou impedir a continuação da marcha da história. A África pode sempre aprofundar os níveis de liberdade que já alcançou, aprofundando continuamente a expressão dessa liberdade.  É pelo curso do tempo que o conseguirá.

O processo mostra-se irreversível apesar das relações políticas dos africanos com os neocolonizadores causarem altos e baixos ao longo do processo e, em períodos mais sombrios, manifestarem-se em forma de punição em reação a descolonização empreendida, como as vivenciadas no âmbito dos programas de ajustamento estrutural, impostos pelos reguladores mundiais das finanças, que se revelaram redutores pela imensidade de empregos destruídos e pela forte erosão dos rendimentos individuais e coletivos resultante da desvalorização deslizante da moeda.

O que a África pode procurar na nova ordem é o estabelecimento de relações mutuamente vantajosas entre ela e a Europa, particularmente a Europa Ocidental. A realidade geográfica mostra que as duas entidades são a continuidade uma da outra e o denominado mar Mediterrâneo configura-se num mar interior afro-europeu. No entanto, a evolução dos dois espaços não ocorreu em sinergia ou comunhão, o que não parece normal dada a situação que a natureza lhes concedeu.

A Europa que hoje conhecemos foi construída pela soma de guerras entre os Estados europeus e entre estes e outros Estados ao longo dos últimos seiscentos anos. A harmonia que inspira a proximidade entre a Europa e a África foi traída por uma política fundada na guerra e numa sequência de guerras injustas, porque praticadas sem a necessidade de defesa da Europa por inexistência de qualquer ofensa proveniente de África. A colonização foi o primeiro passo para a ocupação e dominação integral do continente africano por Estados da Europa Ocidental. Seguiram-se a escravatura, a emigração forçada em massa e a comercialização de africanos. Tudo injustiças, substancialmente evacuadas do conhecimento académico, sem o devido reconhecimento por parte da Europa e, consequentemente, sem reparação que, se existisse, permitiria acreditar na justiça e na moral muito propaladas nas relações internacionais. Enquanto as relações se basearem em objetivos desiguais, a procura de paz segura ou permanente passará por um percurso sem fim.

A reposição da Europa Ocidental como ator da política mundial exige uma mudança de ótica. Em primeiro lugar, a Europa poderia aproveitar a sua posição na nova ordem para afirmar a sua autonomia e estabelecer alianças que lhe permitam recuperar a sua liderança numa estratégia de cooperação e de paz. Do ponto de vista geográfico, essas alianças seriam naturais se realizadas com o continente africano. Tal exigiria que a Europa pusesse de parte o orgulho de superioridade que tem vindo a cultivar em relação à África ao longo do tempo. Para serem credíveis e sustentáveis, as alianças devem ser estruturalmente mutualizadas para a gestão de interesses comuns, europeus e africanos.

Parece um objetivo inatingível. O bloqueio viria da vanidade do orgulho que se tem sustentado no complexo de superioridade europeu edificado numa cultura constante de supremacia racial, redutora crónica do discurso africano, tornando-o inaudível e infantilizado. A cooperação que a Europa pretende com a África revela-se uma mera fachada que esconde a falsidade de uma conduta praticada por gerações sucessivas para manter a subalternização da África e a conservação de trocas desiguais com vantagens para a Europa.

Para superar a persistência do bloqueio, parece que o aprofundamento da autonomia é o caminho para criar as condições que permitam a reposição dos fatores necessários ao desenvolvimento do continente africano. Tal aprofundamento, que passa pela transformação no continente dos recursos com que a natureza o dotou, não dispensa a associação com interesses extra-africanos necessários para resolver os problemas tecnológicos, financeiros e de fiscalização com que se vai deparando. Pelo caminho estritamente endógeno, experiências em curso em vários países africanos podem constituir fatores de sustentação para o arranque do aprofundamento. O importante é começar-se pela planificação cobrindo um horizonte temporal futuro no mínimo de uma década. Será sempre necessária a determinação para evitar recuos e para combater as dificuldades reais, já existentes, como as perturbações armadas que se estendem pela vasta região de África Ocidental e afetam também em profundidade a África Central.    

1 Comment

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  1. JuvencioAO

    9 de Abril de 2025 at 17:15

    Bela opinião e visão! Concordo!

    Numa das passagens da sua opinião, frisou em ESCRAVATURA.

    Ora, até este momento parece que tanto os europeus como, principalmente, os africanos, não são capazes de enxergar que praticamente todos os países, hoje desenvolvidos, tiveram esse desenvolvimento, também , à custa da escravatura.

    Na verdade fizeram comércio com SERES HUMANOS e hoje são chamados de países desenvolvidos.

    E, pode-se dizer que eram países verdadeiramente democráticos?

    Mas de qualquer modo, os líderes africanos atuais também dão pontapés nos seus cidadãos, para cumprir com as amizades dos seus amigos europeus. Muitos deles possuem enormes riquezas lá enquanto seus cidadãos nadam na pobreza extrema.

    Isso só pode mudar, talvez, quando esses líderes pensarem em seus cidadãos.

    Em STP a segurança social é, apenas, um dos muitos exemplos da gritante falta de respeito em relação a pessoa humana.

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