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Violência doméstica no contexto de uma contradição de paradigma

A violência doméstica é definido pelo sociólogo Anthony Giddens (2002, p.203, Sociologia, 2.ª Edição, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian) como o abuso de um membro da família em relação a outro ou outros membros.

A Lei n.º 11/2008 de 29 de Outubro (Lei sobre a violência doméstica), considera a violência doméstica qualquer acção ou omissão decorrente no seio familiar ou doméstico que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico, bem como dano moral, patrimonial ou privação de liberdade. Esta última acontece nas seguinte situações: no âmbito da unidade doméstica; no âmbito da família e; em qualquer relação íntima de afecto (art. 5.º da A Lei 11/2008 de 29 de Outubro).

Como podemos observar na definição avançada pela Lei  n.º 11/2008 de 29 de Outubro e mais concretamente nos termos do art. 7.º da referida lei, atribui-se a violência doméstica as seguintes formas: A violência física; A violência psicológica; A violência sexual; A violência patrimonial e; A violência moral.

Conjugando todos estes fatores definimos a violência doméstica como sendo uma ação ou omissão por parte de um membro da família, ou da relação doméstica, ou da relação íntima de afeto em relação a outro ou outros membros que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual, psicológico e bem como dano moral, patrimonial ou privação de liberdade.

Hoje em São Tomé e Príncipe a violência doméstica afeta mais numa primeira linha as crianças, que muitas vezes são alvo direto da violência física e sofrem muito mais a violência psicológica, derivada muitas vezes das ações diretas dos adultos sobre as mesmas ou por situações de violência entre  adultos que afetam as crianças. Estas estão muitas vezes no centro de tumulto, assistindo sem possibilidade de fugirem da situação.

Em segunda linha temos a violência mais comum que é exercida pelos maridos sobre as mulheres. Podemos dizer que existe um domínio masculino no que refere a violência no cotexto familiar e doméstico. Estudos de 2003 realizados pelo UNICEF em São Tomé e Príncipe, revelam que 25% das mulheres são-tomenses são vítimas assumidas de maus-tratos. Tendo em conta a nossa densidade populacional, este número é preocupante.” (www.stf.jus.br/arquivo/cms/…/anexo/SaoTomeePrincipe.pdf)

Numa terceira linha as mulheres podem também ser perpetradoras de violência doméstica dirigida contra os maridos.

As mulheres são quase tão violentas em casa como os homens. As mulheres podem bater nos maridos quase tanto como o inverso. Não obstante, como é obvio, a violência feminina ser mais restrita e esporádica do que a violência masculina.

Todo tipo de violência é susceptível  de causar lesões graves. Pode-se argumentar que a agressão das mulheres sobre os homens, no contexto de violência domestica, poderá causar uma menor lesão. Não estamos de acordo.  Muitas vezes, por não ser habitual, no contexto social os homens fazerem queixas das suas mulheres por agressões daquelas, poderá causar um grande sofrimento para aquele.

Hoje em dia existe uma banalização da violência domestica e de acordo com o sociólogo Anthony Ginddens (2002, p. 204) isto acontece devido a um conjunto de fatores tais como: “um deles reside na combinação entre a intensidade emocional e a intimidade pessoal, características da vida familiar. Os laços familiares estão normalmente impregnados de emoções fortes, que misturam frequentemente amor e ódio. As desavenças que ocorrem no contexto doméstico podem libertar antagonismos que não seriam sentidos da mesma forma em outros contextos sociais”; “Uma segunda influência reside no facto de se tolerar até mesmo aprovar um certo grau de violência no âmbito da família. Embora a violência familiar socialmente aprovada seja de natureza relativamente limitada, pode facilmente degenerar em formas severas de agressão”.

Para o contexto de São Tomé e Príncipe convém ainda frisar que socialmente, em alguns casos, existe como que uma aprovação da violência entre o marido e a mulher. Esta aceitação cultural muitas vezes é expressa no dito como: “A mulher quanto mais apanha, mais comportada fica”.

Muitas vezes a violência doméstica acaba por ser um reflexo de padrões de comportamentos vivenciados. Muitos maridos que perpetram violência doméstica contra as mulheres, muitas vezes fazem-no porque viveram a mesma situação quando eram crianças.

Depois de tudo aquilo que dissemos acima urge dizer que a sociedade não é estática, temos que evoluir e modificar certos hábitos e comportamentos. A violência doméstica não pode ser vista como uma fatalidade cultural e é urgente criar uma campanha de prevenção e realizar estudos multidisciplinar para melhor responder a esta temática.

O legislador são-tomense, sensível ao crescendo da violência domestica no país, criou a Lei 11/2008 de 29 de Outubro, transformando a violência doméstica num crime público, como forma de contornar os maus hábitos costumeiros e tradicionais que existiam de encarar este assunto como sendo de foro intimo da relação familiar e doméstica, onde o Estado e os terceiros fora da relação familiar ou doméstica não tinham que se meter.

Paradigma da Lei n.º 11/2008 de 29 de Outubro (Lei sobre a violência doméstica)

 

Com a entrada da Lei n.º 11/2008 de 29 de Outubro a violência doméstica em São Tomé e Príncipe passou a ser um crime público nos termos e ao abrigo do art. 49.º. Esta lei foi muito bem elaborada.

A Lei n.º 11/2008 de 29 de Outubro prevê a punição para os que cometem este tipo de crime, assim como prevê assistência as vítimas e apresenta um conjunto de medidas de política de prevenção.

Além da lei acima citada, também foi aprovada a Lei n.º 12/2008 de 29 de Outubro, lei sobre o reforço dos mecanismos de protecção legal devidas às vitimas de crimes de violência doméstica.

Sobre a Lei n.º 12/2008 de 29 de Outubro, destacamos o facto de a mesma, além de instituir diferentes organismos de apoio a vítimas de violência doméstica, prevê a suspensão provisória do processo (art. 15.º). “Nos crimes previstos na parte final do n.º 2 do artigo 1º, a suspensão provisória do processo prevista na legislação processual penal só poderá ser decidida com a concordância de arguido (a) e ofendido (a)”; “Nos crimes em que seja arguido (a) pessoa com quem a vitima viva em economia comum, a medida de injunção a opor àquele, durante a suspensão do processo será a do afastamento da residência nos casos em que se afigure necessária tal medida”.

Estamos aqui de facto perante um crime público com características especificas, quando prevê a suspensão do processo.

Na nossa modesta opinião estes normativos estão bem elaborados e respondem de forma eficiente a este tipo de crime. Não basta penalizar, é preciso educar e também proteger as vítimas da violência doméstica que em muitos casos estão vulneráveis devido ao facto de viverem e conviverem num ciclo fechado com o agressor.

É preciso não esquecer que a intensidade emocional e a intimidade pessoal, características da vida familiar e os laços familiares estreitos, condicionam as vítimas de tomarem a iniciativa de denunciarem este tipo de crime. Por isso, a importância que tem o caracter público do crime, que no essencial permite a qualquer pessoa fazer denúncia e mesmo as autoridades poderão agir a partir do conhecimento do crime de violência doméstica.

Por tudo que acabamos de analisar sobre as Leis 11/2008 de 29 de Outubro e 12/2008 de 29 de Outubro, somos bastante perentório em dizer que defendemos o carater público do crime de violência doméstica.

Paradigma contraditório do novo Código Penal

 

Aprovado no dia 5 de Agosto de 2012, o novo Código Penal entrou em vigor três meses após a sua publicação. A ordem dos advogados saudou o acontecimento (…)(Téla Nón de 08/11/2012).

 

Este novo Código Penal (Lei n.º 6 de 2012 de 6 de Agosto) na nossa perspectiva vem agravar mais a situação da vítima no crime de violência doméstica e vem lançar a confusão sobre a questão da classificação de violência doméstica como um crime público apenas (definido na Lei 11/2008 de 29 de Outubro) ou se também em certas circunstâncias será classificado como um crime semipúblico como refere o nosso novo CP , art. 152/3 e n.º 6.

Quando é que estamos de facto perante um crime semipúblico e um crime público a luz do novo CP? Para uma melhor compreensão transcrevemos o artigo 152.º do CP:

Artigo 152.º

Maus tratos ou sobrecarga de menores e de subordinados e violência doméstica

 

1. O pai, mãe ou tutor de menor de 16 anos ou todo aquele que o tenha a seu cuidado ou à sua guarda ou a quem caiba a responsabilidade da sua direcção ou educação é punido com prisão até 4 anos quando, devido a malvadez ou egoísmo:

a) Lhe infligir maus tratos físicos, o tratar cruelmente ou não lhe prestar cuidados ou assistência à saúde que os deveres decorrentes das suas funções lhe impõem, ou;

b) O empregar em actividades perigosas, proibidas ou desumanas, ou sobrecarregar, física ou intelectualmente, com trabalhos excessivos ou inadequados de forma a ofender a sua saúde, ou o seu desenvolvimento intelectual, ou a expô-lo a grave perigo.

 

2. Da mesma forma, é punido quem tiver como seu subordinado, por relação de trabalho, mulher grávida, pessoa fraca de saúde, particularmente indefesa ou menor, se verificarem os restantes pressupostos do n.º 1.

 

3. Da mesma forma, é ainda punido quem infligir ao seu cônjuge ou com quem ele conviver em união de facto ou condições análogas às dos cônjuges, o tratamento descrito na alínea a) do n.º 1 deste artigo.

 

4. Se dos factos previstos nos números anteriores resultar:

c) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos;

d) A morte, o agente é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.

 

5. Nos casos de maus tratos previstos no n.º 3 do presente artigo, ao arguido pode ser aplicada a pena acessória de proibição de contacto com a vítima, incluindo a de afastamento da residência desta, pelo período de 3 anos.

 

6. Nos casos previstos nos n.ºs 1 e 3 o procedimento criminal depende de queixa.”

A Lei n.º 11/2008, como já vimos, definia na nossa perspetiva esta problemática com uma maior garantia para as vítimas, classificando-a como um crime público para toda e qualquer violência doméstica.

Penso que este CP na nova visão do crime de violência doméstica vai lançar uma grande confusão no combate e no procedimento do mesmo no nosso ordenamento jurídico.

Quando é que estaremos perante um crime Semipúblico, com relação a violência doméstica?

Nos casos previstos nos n.º 6 do art. 152.º conjugado com os n.ºs 1 e 3 do mesmo artigo, em que: o procedimento criminal depende de queixa.

“1. O pai, mãe ou tutor de menor de 16 anos ou todo aquele que o tenha a seu cuidado ou à sua guarda ou a quem caiba a responsabilidade da sua direcção ou educação é punido com prisão até 4 anos quando, devido a malvadez ou egoísmo:

a) Lhe infligir maus tratos físicos, o tratar cruelmente ou não lhe prestar cuidados ou assistência à saúde que os deveres decorrentes das suas funções lhe impõem, ou;
b) O empregar em actividades perigosas, proibidas ou desumanas, ou sobrecarregar, física ou intelectualmente, com trabalhos excessivos ou inadequados de forma a ofender a sua saúde, ou o seu desenvolvimento intelectual, ou a expô-lo a grave perigo.

 

3. Da mesma forma, é ainda punido quem infligir ao seu cônjuge ou com quem ele conviver em união de facto ou condições análogas às dos cônjuges, o tratamento descrito na alínea a) do n.º 1 deste artigo”.

 

6. Nos casos previstos nos n.ºs 1 e 3 o procedimento criminal depende de queixa.”

Na visão do novo CP será crime público quando: Se dos factos previstos nos números 1 a 3 do art. 152.º do CP resultar: A Ofensa à integridade física grave ou a morte (Art. 152/4 e 5 do CP).

Agora convém ver os artigos 141.º e 142.º do CP para percebermos quando estamos perante ofensa corporais simples e ofensas corporais graves, para compormos o conceito de ofensa à integridade física grave em sede da violência doméstica.

Capítulo III

Dos crimes contra a integridade física

Artigo 141.º

Ofensas corporais simples

 

1. Quem causar uma ofensa no corpo ou na saúde de outrem é punido com prisão até 2

anos ou com multa até 200 dias.

 

2. O procedimento criminal só tem lugar mediante queixa.

 

Artigo 142.º

Ofensas corporais graves

 

Quem ofender o corpo ou a saúde de outrem, de forma a:

a) Privá-lo de um importante órgão ou membro, ou a desfigurá-lo grave e permanentemente;

b) Tirar-lhe ou ofender-lhe, de maneira grave, a sua capacidade de trabalho, as suas capacidades intelectuais, a sua capacidade de procriação ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou linguagem;

c) Provocar-lhe perigo para a vida, doença particularmente dolorosa ou permanente, ou outra enfermidade ou anomalia psíquica grave e incurável ou aborto é punido com prisão, de 2 a 6 anos.”

Será que o Legislador quer que estejamos perante a situação do art. 142.º do CP, para que possamos estar perante um crime público? A resposta parece apontar para um sim (visto que nos termos do n.º 4 do art. 2. do CP, define que “Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostre mais favorável ao agente se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontra cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior.”) e não restam dúvidas que estaremos perante um retrocesso na matéria de proteção as vítimas, caso esta seja de facto a intenção do legislador.

Perante tudo aquilo que frisamos, ainda assim, entendemos que não há uma revogação da Lei n.º 11/2008, de 29 de Outubro e Lei n.º 12/2008 de 29 de Outubro, ambas supra citadas (o porquê desta nossa posição será explicada no título abaixo). O problema que se coloca neste momento é como harmonizar estas leis com o novo CP. Será que cai por terra todo o apoio que é garantido naqueles normativos as vítimas de violência doméstica?

Existem uma clara contradição entre o CP e as Leis 11/2008 de 29 de Outubro e 12/2008 de 29 de Outubro  que merecem respostas do legislador. É preciso não esquecer que publicada uma lei e suscitando dúvidas acerca do seu sentido ou alcance, o órgão que criou tem também competência para a interpretar através de uma nova lei, chamada lei interpretativa.

Interpretação/nossa opinião

 

Na maioria das vezes as leis em São Tomé e Príncipe são elaboradas pelos consultores estrangeiros, estes muitas vezes vão a São Tomé e Príncipe e permanecem no país apenas 15 dias ou 20 dias, tempo que muitas vezes não revela suficiente para fazer um estudo aprofundado sobre todas as leis que existem sobre o assunto a tratar e também para conhecerem os hábitos e os costumes dos são-tomenses.

Provavelmente foi isto que aconteceu com o nosso novo CP, foi elaborado por consultor (es) estrangeiro (s), mas isso não serve de desculpas para que o legislador não harmonizasse esta legislação com as diferentes leis avulsas e especiais que tratam de diferentes crimes no país.
Perante um novo CP que trata a violência doméstica diferentemente da norma especial prevista na Lei 11/2008 de 29 de Outubro, estamos de facto perante uma situação de dúvida que como já frisamos merece da parte do órgão que as criou uma interpretação autêntica.

Enquanto isso não acontece, a nossa posição vai no sentido de que a lei geral não derroga a lei especial que já existe, a não ser que o faça expressamente ou seconcluir através da analise interpretativa de que seria intenção do legislador. Da leitura que se faz do novo CP não existe uma revogação expressa e mais, atendendo a aquilo que dissemos sobre como são elaboradas a maioria das nossas leis, não parece que seja a intenção do legislador em revogar a lei especial. Nesta última situação atrevemos a dizer que houve um desconhecimento da contradição.

Ainda assim, existe outro lado da interpretação que também não é de desprezar, corrente que defende que em matéria de Direito Penal vigora o princípio da aplicação mais favorável ao agente. Esta é a posição apontada pelo art. 2.º, n.º 4 do novo CP.

Esta última interpretação que aponta para  o princípio de aplicação mais favorável ao agente não merece (do nosso ponto de vista) provimento para a revogação da lei especial pelo seguinte facto de a lei especial defender os direitos das vítimas que é um bem jurídico tão importante como princípio da aplicação mais favorável ao agente. No prato da balança cabe aqui o princípio da proporcionalidade.

Para que haja estabilidade jurídica e mesmo social a interpretação autêntica será aquela que melhor esclarecerá a situação.

Odair Baía

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