Qual é a concessão de amizade segundo a mentalidade atual? A nossa época parece que não sabe falar de amizade no seu sentido mais profundo, ou seja, na atual sociedade contemporânea os amigos não passam com frequência de companheiros do trabalho diário, da escola, do jogo, dos “amiguitos” do facebook ou conhecidos alheios a nossa vontade. Dito de outra forma, o que vemos nas ruas, aqui e além, é a “amizade de circunstância” que não deixa de ser amizade como diz Ignazio Merino na sua obra: Elogio da Amizade.
O grande drama da sociedade do século XXI, isto é, do homem contemporâneo é de não ter, com quem ir ter, nos momentos difíceis, muitas são as series televisivas, as novelas, os desenhos animados que retratam estes dramas que de certo modo é preocupante. Muitas vezes perguntamo-nos porquê que aquela relação “conjugal”[1], aquela relação de namoro, aquela relação política, aquelas relações entre os estados terminaram? Se nós tivéssemos que responder esta pergunta, diríamos que faltou a “φιλια”[2], isto é, faltou a amizade no seu sentido mais profundo. Todos nós sabemos que a paixão, mas cedo ou, mas tarde passa, mas a amizade não. Porque ela, para além de ser um dom; uma virtude, implica fidelidade, disponibilidade, ajuda mutua e oportuna, renúncia, sacrifício, perdão, persistência.
Ignazio Merino diz que um novo paradigma globalizador carateriza a amizade nestes tempos: como interesseira, como a deslealdade leviana, como a desconfiança. Tudo isto, mostra-nos quanto é importante voltarmos a devolver a amizade o seu valor e o seu significado mais profundo, significado este que é tão fundamental a existência humana.
Atilmo Alaiz diz na sua obra: La amistad es una fiesta, que “há poucos amigos porque a amizade tem mais de doloroso que de lotaria. É uma experiência para os espiritualmente apetrechados; não se trata de um espontâneo sentimento romântico, mas sim de amor, e isso é esvaziamento, morte, doação.” Diz o autor, “não creio que alguém duvide que o amor seja morte, não creio que a morte seja coisa de medíocres. Construir amizade é uma aventura com dores e alegrias.”
Por outro lado, se nos detivemos no pensamento dos grandes clássicos como: Platão, Aristóteles, Epicuro, Cícero, Séneca, Abelardo, Erasmo de Roterdão, Montaigne, Bacone, Descartes, Malebranche, Voltaire, Kant…etc, vamos ver que todos eles têm um tratado sobre a amizade. Embora saibamos que a amizade que os filósofos defendem é quase sempre uma amizade no abstrato, porque todas as definições de amizade propostas por eles carecem do amor fraterno “compromisso de caridade”, mas, contudo, vamos procurar saber como é que Aristóteles fala sobre a amizade. Aristóteles no seu tratado Ética a Nicómaco diz que “a amizade é sempre ativa, é sempre um ato, e é sempre um ato de amor e de amor no sentido do bem ontológico do outro.” Mas tal não basta e, para que haja amizade, tem de haver reciprocidade no ato de amor. A amizade, como considerada por Aristóteles, tem três níveis, só sendo amizade propriamente dita no seu nível mais elevado, em que se realiza puramente.
No primeiro nível é uma amizade de interesse, isto é, o bem do outro interessa-nos enquanto o meio para o nosso próprio bem. Cessando o nosso interesse, cessa o amor pelo bem do outro e cessa a amizade. No segundo nível temos uma amizade do honesto, do útil e do prazer, isto é, no fundo amamos o outro porque nos dá prazer amar-lhe, e porque nos dá prazer amar-lhe logo, ele é obrigado a amar-nos. Isto, leva-nos a entender que a amizade aprazível é estabelecida sobretudo no prazer que a companhia do outro nos dá. No último nível, temos uma amizade propriamente dita, onde a relação dá-se entre dois seres humanos que amam, onde ambos querem exclusivamente o bem de cada um em particular. Está última etapa mostra-nos uma amizade totalmente livre nas suas relações humanas, sem se deixar absorver ou manipular pelo outro. No fundo este terceiro nível mostra-nos uma amizade virtuosa, que procura antes de tudo o bem do outro.
Na linha de Aristóteles, Cícero e Séneca também acabam por classificar a amizade como virtude, mas a força dos seus ideais estoicos acaba por levar a melhor, e eles terminam identificando a amizade como sabedoria: “só o sábio sabe amar, só o sábio é amigo”.[3]
Não obstante, detenhamos na novidade que a Sagrada Escritura nos oferece acerca da amizade. A “Bíblia”[4] reconhece a importância da amizade verdadeira e por isso, não poupa palavras a enaltecer o seu valor e o seu significado. O livro de Deuteronómio fala do amigo (réa, em hebraico) como aquele ou aquela que “tu amas como a ti mesmo” (13,7); No livro de Bem Sira temos o elogio do amigo verdadeiro: “Um amigo fiel é uma poderosa proteção; quem o encontrou, descobriu um tesouro. Nada se pode comparar a um amigo fiel; e nada se iguala ao seu valor. Um amigo fiel é um bálsamo de vida; os que temem o Senhor acharão tal amigo” (Sir 6, 14-16)
Como podemos aperceber a Bíblia narra a historia de salvação, por isso, o símbolo, as imagens de amizade que Ela nos oferece revela os traços de uma verdadeira amizade. Nos evangelhos Jesus leva-nos a entender que a verdadeira amizade supõe uma mutua eleição (Jo 15,16); é gratuita, somos amados como somos, com o seu quê de “mistério”; uma história que se cria e se desenvolve; um valor em si, isto é, a amizade deixa de ser um mero adjetivo e passa a ser substância.
Françoise Dolto, diz que a amizade é uma experiência muito interessante, porque na amizade há segurança sem que exista pressão. O que não podemos conhecer do outro deixamos serenamente que permaneça incognoscível. No fundo, o autor quer dizer que o facto de não conhecermos tudo não afeta a relação que mantemos.
Todavia, Tolentino Mendonça vem corroborar esta tese de Françoise Dolto, dizendo que “as amizades mais fortes são as que aceitam os seus caminhos frágeis, as suas costuras humildes. A construção da confiança passa, necessariamente, por apreendermos a aceitar as nossas lagrimas.” Poderíamos afirmar também, que a figura de São Pedro, pode servir-nos de espelho interior. No fundo, a figura de Pedro leva-nos a entender que a amizade não significa assegurar-se de que nunca seremos dececionados ou de que nunca vamos dececionar o outro. Nenhuma vida está isenta desta prova porque o pacto da amizade nunca escapa à turbulência dos nossos limites, incoerências, fraquezas. “A amizade é uma experiência sustentada pelo perdão.”[5] Muitas vezes amizade é só isso que nos falta. Usando as palavras do Tolentino “um amigo é alguém capaz de olhar, mesmo que por um segundo que seja, o sorriso, desperto ou adormecido, que cada um de nós traz no fundo da alma. Um amigo é um pastor e um mestre do nosso sorriso.”[6]
Portanto, queremos salientar que este texto não descarta as nossas amizades contemporâneas, simplesmente o texto tenta sugerir o aprofundamento destas amizades segundo a logica que São Tomas descreve a verdadeira amizade. Tomas de Aquino diz que para haver a verdadeira amizade é preciso haver três coisas: a benevolência (que significa querer o bem do amigo); a beneficência (isto é, fazer bem ao amigo sempre que for possível), e por último a confidência (isto é, abertura da intimidade ao outro). Estas três caraterísticas de amizade é explicita no imperativo do amor ao próximo que Jesus Cristo nos dá a conhecer. Sejamos fraternos e teremos amigos, sem fraternidade não há amizades autênticas.
[1] Matrimonial.
[2] É uma palavra grega que significa amizade no seu sentido mais profundo.
[3] Tolentino, J, M, Nenhum caminho será longo, p.44.
[4] Sagra Escritura é um mundo onde podemos encontrar varias imagens de amizades verdadeiras. Temos como exemplo, a amizade de Rute e Noemi; de Jónatas e David; de David e Barzilai; de Eliseu e Sunamita; de Jesus e Lázaro; de Paulo e o casal de Prisca e Áquila, de Deus e Abrão. Como diz, Tolentino Mendonça na sua obra: Nenhum caminho será Longo quem quiser colher o pensamento bíblico da amizade, mais profundamente, tem de deter-se a escutar as suas histórias.
[5]O Salvador (Jesus Cristo) sabia que o Pedro iria negar-Lhe, mas, mesmo assim, perdoou-o. E Pedro o que fez? Reconheceu a sua própria fragilidade e continuo a sua amizade com Jesus nesta relação de confiança. Ter confiança é admitir a possibilidade de mudança, de viragem, deslocação e num certo sentido, também de traição. É claro que a traição fere porque ocorre dentro de um espaço de confiança. Mas, temos que saber que “a vida é polifónica, é um horizonte de múltiplos trânsitos, muitos deles inacabados e imperfeitos, é um tráfico de encontros e reencontros, de feridas e de reconstruções.” Tudo isso leva-nos a compreender que a vulnerabilidade integra o dinamismo da própria confiança. Não esqueçamos o que nos ensina Kierkegaard: a única traição é não ter querido nada, profunda e autenticamente.
[6] Tolentino, J, M, Nenhum caminho será longo, p.149.
Vicente Coelho
Hyley Bastos
1 de Março de 2018 at 8:55
Bom texto meu irmão.
De facto, a Amizade é uma das mais comuns relações interpessoais que a maioria dos seres humanos tem na vida. Ela exige conhecimento mútuo e afeição.
Carlos
1 de Março de 2018 at 12:19
Belíssimo artigo meu caro. Fazes um explanação sobre aquilo que é a amizade.
filho
1 de Março de 2018 at 13:12
A visão de Aristóteles sobre amizade é actual, principalmente os dois níveis de amizade. Gostei do artigo.
Fábio
1 de Março de 2018 at 16:35
O texto é interessante e por isso, cito um trecho do artigo “há poucos amigos porque a amizade tem mais de doloroso que de lotaria. É uma experiência para os espiritualmente apetrechados; não se trata de um espontâneo sentimento romântico, mas sim de amor, e isso é esvaziamento, morte, doação.” Diz o autor, “não creio que alguém duvide que o amor seja morte, não creio que a morte seja coisa de medíocres. Construir amizade é uma aventura com dores e alegrias.”
Ralph
2 de Março de 2018 at 6:11
A natureza de amizade tem mudado ao longo do tempo porque a sociedade tem mudado e as interações das pessoas nela têm mudado. O nível de ligação entre gente em volta do mundo, eletrónica ou não, é como nunca antes. Porém, como refere o autor, parece haver menos profundeza de amizade, menos propósito e menos direção no mundo destes dias. Talvez ele tenha razão. Tem havido também uma perda do papel de religião, seja o que essa for, como o nível de conhecimento científico tem melhorado. Acho que este processo tem tido uma grande influência nesta redução de direção no mundo atual. Não é precisa uma crença religiosa para explicar muitas das coisas complicadas que existem no universo, superando a necessidade de uma religião para esclarecer as dúvidas e dar conforto. Como resultado, o mundo moderno está a tornar-se cada vez mais orientado pelo materialismo e o autointeresse. Isto é sem dúvida muito preocupante. Porém, o papel de religião não pode ser defendido simplesmente porque a perda daquela religião iria resultar numa perda de amizade e direção, como estamos a testemunhar hoje em dia. Uma religião deve sustentar-se por si próprio, porque os crentes realmente acreditam nela. Com possível exceção de alguns países muçulmanos, quase todas as sociedades em volta do mundo estão a enfrentar este problema. Sem uma crença autêntica, uma religião não serve para nada e uma sociedade terá de encontrar outra maneira para dar a si próprio sentido e direção.
Sou eu
2 de Março de 2018 at 16:13
Conhecendo a sua trajectoria, direi e afirmarei sempre q o seu nivel de pensar e analisar as coisas ao seu redor cresceu imenso, por isso essas obras feitas por ti, São os frutos de agir com Sabedoria pondo sempre em pratica os seus conhecimentos Universitarios. no que tanje ao texto direi merci pela novidade, porq o meu conhecimento no que toca a este tema era muito vago. Boa viagem ao mundo intelectual meu caro
Paulo
7 de Março de 2018 at 14:31
Meu caro li o artigo e gostei muito, porque este tema de amizade é algo que nos passa ao lado, e que de certo modo é algo tão fundamental para relação humana. Eu acredito que uma das causas da guerra, é esta falta de amizade que vai imperando entre os homens. Bom trabalho
Tiago
7 de Março de 2018 at 14:42
Eu tenho acompanhado os teus textos e revela um amadurecimento da maneira que vais olhando a sociedade.Esta falta de amizade verdadeira é vivida como angustia, porque a humanidade pós-moderna não encontrou uma nova forma de estabelecer esta amizade. Gostei dos desafios que deixaste na conclusão e ao longo do texto também .