Opinião

Súmula desvinculante

«Não sei por onde vou/Não sei para onde vou/

– Sei que não vou por aí!».                                                                                                                                                             José Régio, in Cântico Negro.

Aqui, no aprisco, caído de lentes para baixo. Estendido numa esguelha curta maca. Temos asco do lugar, o nojo desta cela, de tralha no costado e fragas na tarimba. Ao lado, são passos de hipopótamos a pastar, a noite toda. E no sinuoso corredor de despotismo, sombras azaradas e mostrengas; com botas tenebrosas a zimbrar o pavimento; com esporas bem afiadas, picando, decantando a própria impúdica vaidade. Além de sensores nas paredes, cochichos insolentes e foices caninas a farejar por toda a parte. Tudo fruto de patrulha obsessiva de uns panhonhas, causada pelo medo aparatoso de si mesmos e quiçá pela vidência de algum flácido fantasma. Aqui, no limbo, o alienado tem a veste toda suja, mas chateia-lhe o ritual de ir à pia de enxaguar. Em baixo, na gricha popular de penitência, ferrolhos no portão, leitor de embocadura aprisionado no guiché de ubiquidade, que tudo escrutina até o mínimo detalhe. Chatice! Somos burrico deste trilho amarfanhado pelo pé de improbidade. Que pequice de cachola? Agrava-se a pachorra do asilado, com tudo que é matumbo, que é pueril e corre a bel talante do indiscreto.

À borda de sarjeta, uma tripla de hedonistas relincha com estridência de umas éguas na savana. As galulas excitadas pululam e soltam as risadas de hienas esganadas nas achadas de volúpia. As sibaritas são da zona de equilíbrio, mas de juízo pouco tem e muito de tontice aparvalhada. Trazem palha na cabeça, escória no tutano, lume no libido e gume no apetite. A acintosa gargalhada é delas marca já sonante e bem cotada. Pelo menos, as gralhas do lugar aplaudem as derivas de catitas e vadias, suas legítimas rivais. Pavoneia uma pantufa de catraia, que não mais acaba a jorna, mas só fala em língua estranha com os seus, que ela relega para último escalão de preferência. Tem vaidade que quintuplica a performance e anda na barra há vários anos, para nunca ter o senso no focinho. Aninha-se nos braços de ilusão e, num afã de dolorosa autofagia, faz trinta por uma linha, para lamber as feridas do egoísmo dominante e ver se cai na graça da entourage, que jamais respeitará a sua genuína condição, nem tampouco a sua diversa idiossincrasia. Contudo, nada que enfureça ou temorize. É a pepita duma hodierna mocidade que se esvai a troco de nefandas ninharias.

Defronte do edifício uma súcia de tratantes folgazões. Os arcanos nigromantes cultivam a desídia e a pechincha que é nojice. Da gaiola gritam tanto e bastante ruido fazem, que são corja de vândalos à solta, berrando e galopando. São a turba inexcedível duma hedionda petulância, que assobia de vetusta urbe -província para os recessos infernais, com mesmo estrondo que faria um depravado no infindo do deserto, correndo atrás de reses, implorando proteção ao deus do fim da linha e reinício doutra lide. Depois, um pulha de mocito com falha de estribeira na conduta, numa moto de escape sem medula, arrebenta com o tino das pessoas. E há uns jactantes animais que por cá campeiam e se sentem mais constrangidos com a simples saudação ao semelhante do que com a porca exibição de sacra intimidade, toda ao léu. Assim, ficamos sem a ínfima paciência. Oh antiga e puritana polidez! Está-se a perder o selo de candura e o fôlego de berço. Aqui, a única coisa que cativa e faz sentido é o melodioso entoar de melro, no alvor de estroso recomeço. Um bicho que se regala e deleita-nos, cantando, que é uma bênção sumamente prodigiosa. Ou ainda a sessão de leda chuva amiga, no prelúdio e no decurso de cada primavera.

Não! Tragam-nos o dobro de Sodoma e de Gomorra, com insídias e perfídias, mas nesta toada de coutada não nos deixam. Preferimos o estado de plangência e de tacanha melancolia, indolência de montanha despenteada, erguida lassa, sem aprumo nem afinco, a ter o musgo pegajoso na crosta de desejo. Já estamos na medida de tomar a fraturante decisão, tão radical e irrevogável, como a do autor do «Levantado do Chão».  Nenhum lanho de caviar sabe-nos tão bem como este que ora damos ao cálido de acídia. Damos-lhe tudo de fastio e de repulsa, até as costas de agregar e vender pedras, com que tantas vezes nos viramos ao ávido d’agiota, pelo trincho de bocado, às portas de penúria, na imbele idade novel. Bom, o termo escravo não é de todo o nosso eleito. Nem nos servirmos de cilício de noviço para esgrimir os argumentos que nos deitem borda fora de labuta e de dorida sofreguidão do suado ganha pão. Não é de costume nos pormos na alheta de qualquer obrigação. Mesmo assim, largamos tudo, doravante. E tudo, de começo, há de nascer. Enxuto ou volumoso, faustoso ou obtuso, só Deus terá poder para julgar.

Todavia, se José de Ribatejo, com a idade que que hoje temos, cortou com tudo e pôs-se ao fresco, em direção a seu profuso auto- refúgio de Alentejo, atirando com a folha de salário para o líquido do rio, o que nos custa sair em busca de outro rumo a prosseguir? Podemos, porque munido de muito mais tenças e rendas, de muito mais tombo, aforo e sofrimento. O pano que ora cai sobre o ecúleo até aqui levado a efeito não é branco nem azul, nem da cor de aurora rósea auriluzente, mas é leve como o ar das ilhargas de Tessália, da altura dos olimpos. É suave como o lar das algibeiras depenadas. Porém, na alvura de otimismo e na frescura de semblante é semelhante aos reputados pergaminhos de vedetas do famoso corno de África. Seja como for, não nos vinculámos mais a qualquer tipo de alienamento. Os pregoeiros do reino estão notificados para que peguem neste édito-renúncia e o fixem à porta de repartições públicas e privadas e em todos os lugares de grande visibilidade. Que o transmitam sobretudo aos ferrenhos capatazes do decrépito labor.

Pois, ele determina que os beneficentes do cangaço estão irremediavelmente despedidos, com data de hoje. E com eles o pêndulo de biltre que nos vinha seviciando, a mando de potestas de uma outra judiaria. É amanhã um novo dia. Chamemo-lo colado no horizonte de incerteza e de saloia quintessência. Chamemo-lo aquilo que quisermos.  O pano renascente tem o faro das abelhas com odor da primavera, o tato de rainha sobre o poro seminal de identidade de cada essência a petiscar. É o bico de advento a percutir a nossa pele, toda ela uma sangria. E talvez a aboná-la de tudo quanto hemos tido no instante elemental da nossa antiga inspiração. Lá fora, o mundo corre em roda livre, mas padece de sentido. Cá dentro, o nosso ego está zerado na planura de uma extensa languidez. Nosso corpo, o pobre corpo nosso, oh plácido estendido na esguia aselha cama, que já cansa de amparar este farrapo de estulto espúrio andar. Pode ser que um dia venhamos a dizer: fizeste bem em partir a cara ao esconso troglodita, que mui te atormentava e te tirava a objetiva daquilo por que tanto te batias.

O pano que agora nos acena vem de longe. Parece uma fileira de exercícios na parede, com motes, enunciados, esboços, escanções e partituras, a cifra de signo, etc., a despertar o nosso imo e nosso instinto de banhista de outra praia, que não esta que nos mata a pulsação e nos coloca ao nível de reles existência. Realmente, com este retrato angustiado, o desafio daqui em diante é gigantesco. E precisamos de uma técnica de ler os ingredientes, para os ligar e os por a articular. Não somos da casta de Buda, nem da fibra de Confúcio, nem da estirpe de Jesus. Tal carência mede-se pela estreiteza de um deus que jamais soube preencher internamente o nosso vácuo. Apesar disso, e tal como Sócrates, o filósofo pujante, nunca fomos de Bósforo balofo. Dizem que os pais do sage eram da Baia de Salamina. Pode muito bem ser verdade ou mera especulação. Não nos importa nem inquieta a origem de sapientes e nitentes. Por nós, podia até ser marinheiro das nossas águas, andando a bordo de umas naus, apregoando amor ao povo, poesia e felicidade a toda radiosa lusofonia.

Aquilo que sabemos é que Sócrates foi nosso ático modelo dos mares da ditosa excelsa Creta. Num tempo recuado, é claro. Aliás, como já antes Ulisses tinha escalado Ribeira Grande de Santiago, num trirreme, a convite do nosso Totem ancestral, no ido dos princípios. E até fizeram aguada à embarcação num porto natural, que se situava a sul da então Estrela Latente. Pelo menos foi isso que captámos da leitura de um recente livro dado à estampa. Eneias, Aníbal de Façanha, invicto Alexandre, Ptolomeu I, Henrique, rei de França, Guilherme de Inglaterra e um rei de N’Baza Congo adoravam, de que maneira, as nossas ilhas. Sabiam da sua existência e queriam desvirga-las. Ludovico chamava-lhes Hespérides Saudáveis, por deferência ao mestre Estrabo. Ou seja, segundo crónicas da época, tentaram por diversas vezes aportá-las, mas o zéfiro malquisto nunca os permitiu.  Juba II da Cesareia foi a única eminência a demandar as nossas costas, com denodado sucesso ao tempo. Mais tarde, já no fulgor de ocupação, houve uma acesa discussão entre Diogo e Santarém, se seriam verdes e tingidas, as divas do equador, ou estas púrpuras doiradas, as ninfas tropicais, a erguer a taça de rainha no panteão de pulcritude. Por isso, queremos deixar este pequeno sopro avulso a esses vultos reverentes da cultura de que, em parte, somos legatário.

Mas o leitor insurgirá – que tamanha discrepância falar só destes, se houve e há tantos outros patriarcas e pupilos ansiando degustar o cavalo das nossas ondas? –  A nossa argucia é simples: é uma questão de escolha. Nem todos cabem nisto, como diria um projetor de romance. Elegemos os mais porreiros, os verdadeiramente nobres, os que nos tocam a sensibilidade, e pronto. Repare, caro leitor, que nem o venerando Padre António Vieira encontrou espaço de acomodação nesta crónica-veleiro. Por exemplo, no nosso país, há umas personas de excelsíssimo relevo cultural, homens e mulheres. Uma esplêndida nereide das canções, um vate precursor do ecumenismo, um poeta-presidente, que nunca quis ser romancista, mas acabou vestindo a pele de Tolstoi.  Um humanista, intrépido jurista, também se diz da insigne figura. Entre a música, a literatura, o cultivo da arte, no seu conjunto, o exercício de uma política de índole social e solidária, levada a peito por democratas de gema, não há nenhuma diferença assinalável. Cada um toca o chão cardíaco do cidadão à sua maneira, num país erguido de murmúrios e lamúrias, ruinas e infortúnios, mas também de ingentes atributos para avivar e memorar.

As coisas acabam sempre por conjugar e bater certo. Um dia, estávamos nas nossas saboridas férias na Praia. Depois de termos sido gentilmente recebido pela Máxima Exponencia, no divã da nossa lívida mansão, saímos dali garboso. Guiado por um amigo e compatrício, eramos pavão de renascença. E não foi a nossa primeva visita à corte de Suprema Magistratura. Como o leitor há de saber, vivemos numa terra em que meros diretores de serviço se indispõe a receber um seu patrício. Não encaram com agrado às perguntas que se lhes fazem, no quadro de suas legais atribuições. Então, quando alguém do topo da hierarquia estatal procede de modo francamente diferente, só temos que agradecer e enaltecer a sua postura, sem titubeio. Para o bem do nosso país seria extraordinário que outras entidades seguissem o exemplo do Timoneiro, porque ele está a dá-lo de cima para baixo, com todo o desassombro e proficiência, como mandam as regras de elevada cultura institucional.

Domingos L. Miranda Furtado de Barros

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