Há muito que vivo o dilema de ficar tal como estou ou deixar para trás as grandes urbes, refugiando-me no recesso do interior. A interioridade é o ícone de mim e paraíso da minha ingente aspiração. O aprontar da Comarca Judicial de São Miguel pode ser um veemente apelo ao íntimo de mim, no sentido de concretizar o enorme desiderato da minha vida.
É, sem dúvida, um bálsamo pujante e rebuscado, um magnificente óleo na estrada de vontade da minha saga. Um santo leitmotiv para me cativar e dar arrimo, levando-me a cumprir a solene palavra dada há bué de tempo. E o clique, o sininho para me pôr a despertar e a agir nesse sentido, aconteceu a 13 de dezembro de 1993. Nessa fatídica ocasião passou-me pela película da mente uma miraculosa premonição. E apesar de não possuir o dom de ubiquidade, já projetava o advento da minha pulcra e deslumbrante freguesia. Via-a com a silhueta de uma ninfa, uma esbelta huri de brinde.
Nesse invulgar instante de epifania, visualizei a Calheta de São Miguel na atualidade. Nunca acreditei em qualquer poder sobrenatural, que não fosse o emanado diretamente do Deus-pai. Ainda assim, depois de interpretar o conteúdo do documento em apreço, à luz de agora, facilmente se chega à airosa constatação do vetusto compromisso em pauta. O instrumento onde tive o arrojo de pedir, sem pestanejar ou titubear, aos 32 anos de idade, a minha precoce desvinculação da então atividade profissional, pondo de parte as então amarras oficiais, para me colocar inteiramente ao dispor das prementes necessidades do meu rincão, em Arquétipo dos Anjos.
Confesso que ainda hoje acalento a esperança de ser um místico eremita e de me instalar em Cutelo de Eutimia do meu arraial, no poleiro da herdade da minha gente, em Ribeira de Candura, o jardim do meu avô, o maestro da família e do proeminente José de Carvalho, um dos mais valiosos candelabros da ilha de Santiago e de Cabo Verde, na agonia do século XIX e no despontar da primeira metade do século XX.
Depois do antigo sétimo ano dos liceus, recusara o vulto tomar as ordens eclesiásticas e resolvera correr sozinho os seus riscos, orientando-se pelo cintilar da sua bússola mental. Orador de topo e aguerrido defensor do povo, o causídico de preito e general Humberto Delgado da minha desafiante comunidade não se acobardava nunca.
Por isso, entraria em rota de colisão com as prepotentes autoridades coloniais e com a própria cúria romana, por plúrimos motivos. Sobretudo, por excesso de rituais, cansativas e fúteis cerimónias, bem como pela falta de humanismo, no tratamento reservado aos nativos da província do harmatão. O que mais o enfurecia era a sinistra hipocrisia de irmandade. «Coisas de falácia, para nos porem a entreter e a dormir de pé», argumentava.
Assim, Giordano Bruno ou Jhon Huss cabo-verdiano fazia tremer a instituição católica e os seus mais ilustres representantes. O precursor de Martin Luther King acedia à igreja, assistia à eucaristia e saía antes da bênção, porque encapelava o sobrecenho da sua argúcia, para afirmar, em tom de deboche, de modo altivo e assaz convicto – «A missa tem a duração de um quarto de hora. Tudo o resto não passa de paródia exacerbada do sacerdote».
De seguida, desembrenhado, pegava o seu chapéu, dava costas ao templo e empreendia a sua jornada em direção à ribeira acima. Seminarista dos alvores esplendorosos da Ribeira Brava de São Nicolau, o espirituoso José de Planta foi a nossa antevisão do doirado, benquisto e fabuloso trio de aprumo, Joaquim Pinto de Andrade, Amílcar Lopes Cabral e Mário Pinto de Andrade.
Ah Gulongo Alto dos irmãos Andrade e do imenso Camarada Agostinho Neto! Gulongo Alto também a seara de adoção, de estima e de vivência, até morrer, do decano dos meus tios, o primevo aventureiro do nosso clã, Manuel Landim de Barros. Ah tio Manel! E nessa saga dos antigos peregrinos, com destino ao «Sul a Baixo», só a minha irmã mais velha, mana Tatá, ou seja, Romualda Landim de Barros, escolheria a Luanda para casar, viver e cultivar. Gulongo Alto, em razão do denodado afeto que o meu tio lhe dispensava, passou a ser para mim uma pasárgada de sonho, de esmero e de afeiçoada aproximação, mui querida e mimoseada.
Então, Gulongo Alto, em terras de Dona Ginga e Rei Mandume, é para mim, a Ribeira de Candura do meu umbigo, com Milho Pula e Achada Equestre, no domínio dos meus avós e bisavós, lugares onde calcorreei e assaz brinquei, em Arquétipo dos Anjos. Por outro lado, Arsénio Tavares, um homem calejado nas lides de São Tomé e Príncipe, um fã inveterado e obcecado nas virtudes e maravilhas do território, cumpriu três coercivos contratos de serviçais nessa outrora província ultramarina.
Por isso, quando os desavisados da zona desatavam a elogiar as proezas de Angola ou da Guiné, ele acenava com a mão e mandava parar. Depois, rogava – «Tenham calma meus irmãos. Não há melhor lugar que São Tomé e Príncipe, no planisfério.
Vocês não conhecem a terra predileta da teoria de Albert Einstein, para aprovação dos seus estudos? Gente, a Relatividade Geral foi testada e avalizada na afortunada Ilha do Príncipe». Posto isso, desabafava, em jeito de desdém pela própria eira dos seus avós – «Pena é que já estou a ficar velho. Caso contrário, preferiria viver mil vezes em Santo António do Príncipe, a ter que gramar este cemitério a céu aberto, onde nem chuva de Deus cai».
Bem, deixemos de lado a fervura da flor de pele e a franqueza de imo do nosso prestimoso vizinho e maioral, com relação às ilhas fenomenais da magnífica poetisa, Alda de Espírito Santo, e do seu inaugural presidente de caminhada, Manuel Pinto da Costa, para voltarmos ao tema acutilante que aqui nos trouxe. Eu temo a distância e a falta dela.
Eu só choro a impossibilidade de a tocar e clamo por ensejo de a domar, conquistar e reduzir. Neste momento de expetável retorno ao berço, canta e dança comigo a lídima francelha do meu Cutelo. E um pouco a contragosto também aceito a presença de garça branca de todos os azares dos anos de estiagem e de penúria correlativa, que se apossava do rebordo da minha Angra, para nos ameaçar e assustar com a falta de precipitação e de colheita. Não obstante isso, sinto-me compelido a invocá-la e recordá-la, para que nada de essencial fique de fora deste suposto e prodigioso imaginário.
Em toada um tanto diferente, sou a bendizer dos passarinhos, que poisavam no açude de telhado da minha nimbada capela-escola de meninice. Ah nitente asilo de pupilos dos idos de puerícia e de naífe ingenuidade! Em verdade, a minha infância foi de sortida mirabolância e de dulcíssima paixão pelas enseadas e baías do fervilhante convívio diário com os demais, os porreiros e coetâneos da leda instância. Também canta e toca comigo a trombeta do zeloso anjo da guarda do meu percurso, de todas as atribulações e demandas quotidianas da lide inteira.
O eco destes magníficos arautos bate e toca-me no cocuruto da cabeça, o tempo todo. Todavia, para evitar a repetência ou obsessiva sanha da espécie do egrégio Jota Monte, nas suas propaladas e intermináveis partidas e chegadas, sem ideia de maldade, prefiro esperar para crer no desenlace das timbradas e sonoras cordas do destino, no que a mim me tange.
Fica, porém, uma certeza: com o Tribunal Judicial a funcionar, em pleno, na Cidade de Calheta, deixará de haver qualquer tipo de estorvo ou empecilho, no que se refere ao meu triunfal regresso ao túmulo de umbigo, isto é, à minha estância de ática pertença (espero bem que assim seja).
Hoje, 30 anos depois, volvidos os céus e a gigantesca turbulência sazonal, tenho o ensejo de amanhar a então promessa de reabraçar o meu Cutelo de Eutimia, caminhando amenamente na majestosa Ribeira de Candura, para voltar a banhar-me na praia de eleição de “Casa Bedja”, na zona de Veneza ou Planície de Ramboia e Passa Sabe, como também lhe chamo nos meus ofícios.
Domingos Landim de Barros*
*Da seara dos PALOP e convicto Lusófono
Arlindo Mendes Vieira, PhD
26 de Agosto de 2024 at 22:05
Esta é uma reflexão pessoal e poética sobre a escolha entre permanecer nas grandes cidades ou se refugiar no interior, especificamente na Calheta de São Miguel, uma localidade evocada com profunda nostalgia e significado pessoal. O autor Landim de Barros expressa um desejo de retorno às suas raízes e ao “berço” da sua infância, revelando uma luta interna entre a vida urbana e a vida no campo, refletindo, também, sobre o passado familiar e histórico.
A linguagem utilizada é rica e rebuscada, imersa num estilo que mistura referências literárias, históricas e culturais. A referência ao “apronto da Comarca Judicial de São Miguel” simboliza uma oportunidade para concretizar o sonho do autor de se reconectar com suas origens, e o tom lírico da narrativa destaca a importância emocional e espiritual desse retorno.
O artigo também se entrelaça com uma narrativa histórica e cultural, mencionando figuras como Humberto Delgado e José de Carvalho, e locais significativos como Gulongo Alto e Ribeira de Candura. Essas referências não só enriquecem o contexto pessoal do autor, mas também situam a sua história pessoal dentro de uma trama maior de memória coletiva e identidade cultural.
A metáfora do “click” em 1993 e a visão premonitória do autor mostram uma conexão quase mística com seu desejo de voltar ao interior. O texto é permeado por um sentimento de saudade e um desejo de encontrar um lugar de pertença e serenidade, contrastando com a vida tumultuada das grandes cidades.
Em essência, o artigo é um lamento pela distância do lar e um apelo à realização de um desejo profundo e duradouro de retorno às origens, com uma mistura de saudade, esperança e uma busca por significado. A prosa é estilizada e repleta de simbolismo, refletindo a complexidade e a profundidade dos sentimentos envolvidos nessa jornada pessoal e emocional.
Obrigado Dr Landim!
Água Grande
27 de Agosto de 2024 at 13:31
Interessante! Um comentário perfeitamente em linha com o raciocínio do autor.