Estou com uma entediante crise de entusiasmo. Uma crise sem precedentes no cardápio da minha escolha pessoal. Com duas peças do domínio da ficção para acabar, uma segunda prova de alienação para prestar, numa área em que os críticos do reino designam de total desilusão. Quer dizer, um intuito para submeter aos crivos de abalizados e nitentes olhos-de-lince da esfera da Pasárgada, à moda hodierna. Há já algum tempo que estou atado a estes dois impactantes compromissos para acatar.
Não encontro lenitivo para pôr termo a qualquer uma das trevas. Acordo cedo, acedo ao visor do meu enfastiado computador, abro os ficheiros correspondentes, fico em cima das tarefas a magicar. Deitado no dorso do leito, onde tenho por hábito orquestrar as peripécias da minha indústria. Não me disponho a acrescentar nada, nem retirar nada, nem renunciar nada.
Afeito que sou ao progresso de todos os povos da lusofonia, devia ser mais comedido a esbanjar precioso tempo. Até porque ele é finito e limitado para o coitado do ser humano. Senão, nunca jamais serei capaz de engendrar uma gesta que interesse a todos. Estou aqui no alto do meu Olimpo, cheio de idealismo, mas até ele descer à terra e transformar-se em vias de solução, para coisas concretas, é uma chatice. Não sei. Talvez tenha achado melhor ficar por cá a armar-me em enfezado senhor do limbo.
Se calhar estou a ser consequente com os desígnios do próprio reino, pois hoje pouca gente olha para aquilo que vem na bíblia do meu ofício. As prevaricações aumentam de uma forma galopante e por toda a banda. De seguida, vou às notícias do dia. Salto de sitio em sítio, empurro-me da cama, de um trago, recrimino-me bastante, virulentamente, às vezes. De pé, como se estivesse a censurar um insurreto, caído abruptamente no quintal do meu pomar.
Posto isto, entro na casa de banho, passo uma infinitude de tempo a fingir que faço a barba. Olho para o espelho, tenho uma cara lânguida e baça. Não há nela nada de lustro e de vigor. Imagino-me morto num caixão, com olhos para borda da cova, que se recusam a fechar, por causa de uma empresa inacabada. Tenho um sentimento de culpa, mas dou comigo a interpelar-me: – repreender-te para quê se já perdeste as estribeiras? Não, não vale a pena. Já não tens aquele brio de outrora, nem cura nem remendo-. Apesar disso, pago religiosamente a taxa de inscrição. Do mesmo modo, não amanho do meu ser a hombridade suficiente para me dirigir à confraria de que esquivamente faço parte, pedindo a desconsideração da minha marca, riscando o meu indolente nome em pauta e a correlativa desvinculação «total e imediata», como se bradava, a quatro cantos do céu, no fulgor da então azafamada revolução.
E logo passou-me pela tola se não estou a ser do tipo de um país independente que às tantas se arrepende de tanto bazofiar, mas tem vergonha de voltar atrás e requerer o estatuto que tanto chegara a abrenunciar. Realmente não me compreendo. Deve haver alguma coisa na finíssima estrutura das nuvens, com o dom de ubiquidade, para captar e decifrar o intrigante misticismo que me preside. Talvez me falte o cheiro de folhada, tingida e verde; o aroma das encostas de Matinho e Mato dentro; o bago de marmelos e goiabas de Sam Jorge e de Longueira; a brisa das lívidas baías de Prainha, de Mindelo e Tarrafal da minha ilha. Talvez precise do amido de batata preta e farinhenta do cume de Ruiz e da Serra de Picante; o virtuoso arejo do Alto Pilam Cão e do planalto de Assomada. Se calhar me faça jeito o rumorejar do mar de Enseada e maresia, com todo o seu salitre salpicando a minha pele; quiçá me seja elã e favorito o silvo dos ventos da cumeeira de Graciosa, penetrando os meus ouvidos.
Quando fui tropa, passei três dias de acampamento na recuada Achada Bilim. À noite, fazia de sentinela e pressentia os efeitos terapêuticos do favónio de lugar em meu astral. Eram noites tumbadas de breu e de incerteza. O país gatinhava no trilho dos seus primevos anos de despertar. De quando em vez uma chispa em volta do farol espraiava estrosa luz ao campo. De resto, vez por outra, era um barco que ao longe sulcava os nossos mares, passando ao largo, iluminando as nossas águas. São estas indeléveis recordações que me trespassam o crânio, como um Raio X, e me fazem sentir pequeno neste remanso.
Há dias, estando eu na biblioteca, passou-me como um flash na retina a seguinte epifania: – por que não fazer uma pausa nisto tudo e empreender um voo ao berço, ir às profundezas de São Miguel, na ribeira elemental da minha escola ou no alto de Limeira, e implorar a bênção bem intencionada dos maiorais, este valioso bálsamo de antanho; beber dois singelos de afeiçado chão nativo, acompanhados com queijo seco de Porto Novo ou umas tiras de peixe-serra da ilha do Professor, com abundante couve da lavra do meu amigo, Vento de Ramiro, em Ribeireta, seguido de grudado mel da insecável zona de Machado; infundir umas três chávenas de espirituoso café do alto dos Mosteiros; dançar algum batuco e funaná e depois voltar à lide do dia-a-dia?-. Ainda por cima, estando cá, na cidade dos magnos de báculo, sempre que o sino toca no zimbório das catedrais, de lés a lés, bate-me no miolo de lembrança.
Tenho uma sentida e saborida nostalgia dos meus áureos instantes de menino e aprece-me o cenário do adro da minha igreja, na minha frente. Guardo ainda fresca na memória a rotina da missa às dez, com gente a acorrer de todas as bandas da freguesia, para honrar a cerimónia. Gente suada, transpirada, de sorriso aberto e limpo, com lenços de mão a esvoaçar e a fazer de leque. Gente tão bonita e tão genuína, porque aguerrida e lutadora, honesta e generosa. Gente tão simpática da minha enleva terra antiga.
Em São Miguel da minha infância as pessoas podiam ser comparadas a uma plêiade de estrelas, em matéria de harmonia. Ou então a uma elite de sete pedras preciosas, como âmbar, ametista, rubi, safira, esmeralda e lápis lazúli, ou diamantes, a sereia dos cristais de encantamento. Sem esquecer os doirados anéis da esfera de saturno, que correm por prazer e por altruísmo e nunca por ganância e por cobiça. Alexandrinas e áticas figuras, eivadas de toda airosa fraternidade. Em redor da nossa casa de oração a juventude murmurava, baixinho e com temor.
Lá dentro, os primeiros acordes do velho piano do padre suíço. Um ambiente tão solene e deifico, onde cada mínimo suspiro fazia um eco melodioso, ressonando igreja adentro, perpassando-nos a alma. Há uma pequena rampa que precede ao adro da nossa fé, que nos servia de catapulta para nos pôr na lívida colina de Galião, o ombro do nosso templo. Na freguesia, o seu lídimo santo padroeiro afeiçoara-se tanto à velha igreja que, quando a outra foi mandada edificar, ele bateu o pé e não quis tomar assento na nova cátedra. Diz a lenda micaelense que ele se insurgiu contra a ideia de tirá-lo do seu antigo pedestal, no fundo da ribeira com mesmo nome. De tal sorte não quis aquela compulsiva transferência que, todas as noites, ele apeava-se do trono mui amuado, descia do santuário da moderna maravilha e arrepiava caminho, embrenhava ribeira acima, indo aparecer no dia seguinte no cimo do seu eleito pedestal da anciã morada.
O pároco local, atirando-se para o espinhaço de uma mula e acompanhado dos seus mais intrépidos acólitos, ia busca-lo. A cena repetira-se por mais de um ano. E o Cura nunca se mostrava impacientado. Apenas orava e pedia diretamente a Deus que demovesse o seu patrono e o levasse a aceitar definitivamente a transposição do poiso. Em boa verdade, a vetusta igreja de São Miguel e o seu santo predileto têm muitas estórias para contar, mas, de momento, como já disse, estou com míngua de apetite para trazê-las todas à colação. Contudo, convém frisar: o caprichoso santo em liça nunca tomou posse do novo lar, pelo menos, na sua veste original. Pelo que a solução que o então pároco encontrou foi encomendar uma réplica da sua imagem à cidade onde me encontro e coloca-la no hodierno panteão da freguesia.
Domingos L. Miranda Furtado de Barros
Seabra
5 de Julho de 2018 at 14:50
Parabéns pelo seu lindo texto.
Se bem compreendi, você é de origem caboverdeana….se é, desejo -lhe uma feliz festa do dia de hoje, aniversàrio da libertação e da independência de Cabo Verde, graças à luta armada contra o colonialismo, do glorioso partido do A.Cabral, o PAIGC /PAICV.
STP, devia seguir o exemplo deste pequeno país, quanto a DEMOCRACIA.
VIVA CABO VERDE
VIVA CABRAL
VIVA O PAIGC
Domingos de Barros
5 de Julho de 2018 at 22:43
Obrigado, comentador Seabra, por ter gostado do texto
e por me ter formulado votos de feliz dia no aniversário
da independência do meu país. Desejo-lhe muitas felicidades.
Extensivas também ao povo do seu país. Um abraço irmão para si.
Luis Mendes
9 de Julho de 2018 at 12:51
Excelente texto. Ao falar do café, fez-me lembrar aos grandes amigos de Cutelo Alto – Mosteiros, local onde durante a minha comissão de serviço no Concelho, todas as tardes de cada domingo, era reservado para deslocação e convívio, (jogo de biscas), entre amigos que acidentalmente adquiri, nessa zona alta, abundante em plantas tipos cafeeiros, mangueiros, e outras espécies, típicos de região tropical.
Domingos Barros
9 de Julho de 2018 at 17:32
Ilustre amigo e velho companheiro, Luís Mendes, é sempre um prazer trocar dois dedos de conversa consigo. Obrigado pelas suas palavras e espero que o exercício das suas nobres funções esteja a correr da melhor forma. De facto, gosto muito daquelas zonas altas dos Mosteiros. Penso voltar lá nas minhas férias. Agora estou a programar uma viagem turística às belas e encantadoras ilhas de São Tomé e Príncipe. Espero deliciar-me também com a virente paisagem natural deste país irmão.