Há um tempo decidimos voar até Londres para tratar uns assuntos. Chegamos num sábado de manhã. A pessoa que nos prometera ir buscar ao aeroporto devia estar na cama. Então, optámos por dar-lhe tempo de despertar. Centramos a nossa atenção nas indicações que ela nos tinha fornecido na véspera. Apanhamos o autocarro com apoio dos ingleses, que são escorreitos a ajudar os ádvenas a desembrulhar-se de empecilhos próprios de magnas metrópoles. Seguimos caminho adentro rumo ao nosso destino. No entanto, antes de chegar, ligou-nos a respeitável patrícia, que nos sossegou «eu não posso ir, mas envio um amigo a fim te apanhar na paragem quando desceres». E assim foi. Apeado que nos pusemos da camioneta, o tal amigo chegou. Uma pessoa que já conhecíamos desde os velhos tempos da blandícia Praia dos anos oitenta. Isso porque os nossos antigos serviços na capital estavam sedeados um em frente ao outro.
Um tipo de meia-idade, cordial e prestativo. Os seus bons ofícios ser-nos-iam sumamente preciosos, durante a nossa curta estada em terras de Sua Majestade. Alegrámo-nos bastante de nos voltarmos a ver. A cidade é bonita e monumental. Contudo, para o nosso completo desalento, choveu quase todos os dias. De maneira que nem sempre pudemos sair da casca e percorrer espaços abertos à cata de coisa airosa para trazer à instância desta crónica. Uma casa com dois pisos, com alguns imigrantes lá dentro, todos oriundos de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe. Tem espaço no quintal, amplo, que serve para assadas no verão. Um pessoal bacano e simpático, mui espirituoso. Com um hábito ordeiro e organizado, até na arrumação dos utensílios do dia a dia, o que é denotativo de gente que vive num país desenvolvido e onde o labor é para levar mesmo a sério. De sorte que ter as coisas à mão de pegar e sair com elas na alvorada é meio caminho andado para o sucesso.
Nos fins-de-semana, os residentes recebem visitas e convivem à moda dos seus países de origem. Uma rua calma, um jardim do outro lado da estrada convida-nos a visitá-lo, mal desponta aurora rósea e o chilrear de meigos pássaros. Os seus frequentadores são na maioria antigos imigrantes reformados e jovens raparigas que tomam pela mão idosas ou idosos, para lhes dar o saudável passeio matinal. Uma ou outra vez apareciam rapazes e senhores que iam exercitar e treinar seus cães de estimação. Na pendência desse período íamos ao dito alfobre todos os dias na alba. Certo que quando não chovia com intensidade impeditiva. Chegado ali desatávamos a ler afoitamente, como é nosso hábito, debaixo de uma frondosa árvore, um volume da série «As Mil e Uma Noites», das infinitas e alucinantes estórias de Schehrazad, que levamos debaixo do braço.
O clássico narra as aventuras e peripécias do mundo muçulmano, mas sobretudo a fervilhante vida política e cultural da dinastia dos Abássidas de Bagdad. Um dia, chegou um homem ao pé de nós e interessou-se pela capa do livro «May i see it?», rogou-nos ele, com aprumado donaire. «Yes, no problem», reagimos e a eito lhe passamos o exemplar. Depois de enxergar o título, ficou extremamente entusiasmado e aduziu «esta é uma obra formidável. As suas estórias são atemporais e simplesmente irrebatíveis». E já a falar connosco em português, sem perder nígua de tempo a indagar se éramos ou não de um país do dito idioma. Isto só foi possível porque o sujeito é um indiano de Goa, que aprendeu a língua camoniana desde berço. Apanhou-nos pelo som afetado de um inglês aportuguesado e envolto em sotaque salpicado de crioulo.
Falou-nos um instante de Moçambique, onde possui uma fazenda agrícola, que ficou a cargo dos irmãos para produzir castanha de caju e remeter para Londres. Pela forma fria como abordou a questão, ficamos com a sensação de que tal indústria não lhe estava a correr de feição. «Oh meu irmão, deixar para trás aquilo que é nosso… », acabou por desabafar. O que nos fez lembrar o ditado da nossa sugestiva língua materna «odju di dono ta ngorda cria». Então, murmuramos baixinho «coitado! Se ele estivesse ao pé, talvez as coisas funcionassem». Depois da breve interrupção, o fulano despediu-se e deu-nos graciosa motivação «continua a tua leitura e tem uma ótima estadia em Stratford, a terra do misterioso Shakespeare. Estás a ver a suposta casa onde ele nasceu?». Levantámo-nos dum trago e ele mostrou-nos a famosa mansão do dramaturgo ao fundo da rua. Demos um brado de contente e agradecemo-lo «muito obrigado! Vou para lá assim que sair daqui. Vir a Londres e não visitar o ninho da magna figura é como ir a Roma e não ver o papa». Ele sorriu e concordou «eu também acho».
Posto isto, retirou-se e começou a caminhar em passo estugado na direção do seu negócio. Porém num súbito ele lembrou-se de algo que o tinha escapado e voltou-se rapidamente para nós. Apareceu radiante e disparou «chegaste a conhecer o músico Catchás?». Ao que de forma expedita respondemos «oh! Sim, sim. Cheguei a conhecê-lo, sim. E até vi algumas atuações dele e do seu mítico conjunto ao vivo». Aí, o nosso interlocutor assumiu um ar triunfante e declarou «fomos colegas e bons amigos na Escola Agrária de Santarém. Foi ele que me falou pela primeira vez de um outro estroso músico cabo-verdiano, Dani Silva, que seria anos mais tarde meu amigo de peito. Este que também foi da nossa escola, mas quando entrei já lá não estava. Conheci-o fora do meio estudantil. Sou engenheiro, não obstante escolher uma via diferente de ganhar a vida». Então não podíamos ficar mais maravilhado e brotamos do fundo de imo «bravo! Importa-te de me falar um pouco do teu convívio com o Revolucionário do Funaná?». O goense soprou «oh! Com certeza e com folgado regozijo. Era um estudante aplicado, além de totalmente dedicado às origens culturais do seu país e da África lusófona. Um excelente compincha e sempre divertido. Olha, ainda hoje o vejo na minha frente, como se fosse ontem».
Ficamos radioso e nimbado de garbo. Todavia, o cavalheiro virou-se para nós e lamentou «sinto pena não continuar esta agradável conversa, mas tenho que ir abrir a loja porque já tenho clientes à porta. Meu estabelecimento fica nas traseiras da casa onde estás hospedado. Aparece por lá mais logo, se puderes». Estendeu-nos a mão ex-novo e partiu azafamadamente. Foi-se embora e nós retomamos a nossa leitura. Na zona não se ouve barulho e gritaria de jovens libertinos, nem de dia nem de noite, justo se faz na movimentada Couraça de Ulisseia, em Coimbra da nossa antiga residência. O bairro é totalmente dominado pelo comércio de indianos e paquistaneses, que não fecham aos sábados e domingos e vendem tudo a retalho, incluindo charuto, cigarro e cigarrilha. Um modo de agir mui parecido com o que se pratica nas ilhas da nossa velha amenidade. Cerca de trezentos metros em frente é o Estádio Olímpico de Stratfort, que serviu de palco dos jogos da fraternidade universal há poucos anos.
Na véspera do nosso regresso, entramos num centro comercial, ouvimos o ressoar de um piano e subimos as escadas. No segundo piso, lá estava um polaco responsável pela diletante melodia. O artista que por sua vez já antes tinha vivido em Lusitânia abriu a pauta sobre o piano, que ele tocava magistralmente. Na pausa de saborida ocupação pusemo-nos a dialogar e rapidamente estabelecemos uma calorosa empatia. «Toco aqui todos os dias, entre as 18 e as 21h. Podes vir ter comigo e prosseguimos a nossa leda cavaqueira sobre Lisboa e os lugares de cultura que bastas vezes frequentei». Depois inquiriu-nos ele «conheces Tito Paris, Leonel Almeida e Dani Silva da Casa da Morna?». Ao que respondemos «Oh! Claro, meu amigo. Ainda de manhã um goense falava-me de Dani Silva. Seria grave não ter em mente esses nomes badalados da música do meu país». Continuou a fitar-nos com brilho nos olhos, soltando mais uma intrigante indagação «e o teu patrício lá da Praia de Vitória – autor de Feia Cabelo Bedju- conhece-lo?». Desta feita reagimos mais rápido que um flash «Ah!, Zezé de Nha Reinalda? Sim, perfeitamente. É um dos nossos excelsos e decanos amigos». Nisto, o tempo de pausa terminou. Ele virou o rosto para o piano, sempre a mirar-nos furtivamente e a cumprir com seu ofício.
Num repente, reparamos que o músico estava a afinar o instrumento e a tentar uma melodia diferente da que constava do repertório do dia. Então não foi que o tipo nos brindou com «Feia, Cabelo Bedju…», de uma forma eximiamente bem executada? Enquanto ele dedilhava o teclado, para nos obsequiar, nós pusemo-nos de pé a bater-lhe palmas. Bom, não vale a pena dizer o quanto ficamos sensibilizado e no auge de satisfação. Paramos um tempinho a ouvi-lo. Fez a segunda pausa e foi novamente ter connosco. Demos-lhe um sincero abraço de reconhecimento. O que ele correspondeu. De seguida, confessou «meu caro, eu adoro a vossa música». Ato contínuo, convidou-nos «vá, entremos rapidamente num café e tomamos um copo». Feito isso, cada um pediu uma bebida. No fim, brindamos «à nossa saúde», com taça ao alto e acrescentamos «em nome da cativante música de Cabo Verde». Depois, cobriu o piano e zarpou para o seu destino. E nós saímos dali em direção ao aconchego do nosso poiso. Antes, porém, entramos numa loja e começamos a procurar umas coisas para comprar. O nosso inglês nunca foi joia nitente e fascinante. Nessa tarde, quiçá devido a excesso de humidade, parecia mais um zunido destorcido de “fonfon” do que dicção de um homem instruído.
Duas jovens senhoras estavam no balcão. Uma delas fitou-nos detidamente e deu-nos o tão ansiado amparo «oiça, se quiser pode falar português ou crioulo. Você não é cabo-verdiano?». Olhamos fixamente para elas, algo surpreso, e confirmamos a suposição «sim, sou. Como te foi possível detetar isso?». A outra que ainda não tinha dito nada esclareceu «nós somos portuguesas da área de grande Lisboa e convivíamos de perto com a vossa comunidade, antes de vir para Londres». Por isso, exprimimo-nos de modo razoável em crioulo. Na verdade, a que falou em segundo lugar disse-nos ser filha de cabo-verdianos, nascida em Angola, que ainda criança saltou para o colo dos pais, seguindo rumo a Olisipo. Ficamos a pensar que as duas coincidências estavam a ser deveras assombrosas para terem sucedido quase à mesma hora. Foi isso que nos aconteceu numa tarde de julho, neste mundo cosmopolita e com queda para mestiçagem, multiculturalidade e desejada tolerância. Fomos bem assistido e fizemos as compras na loja de duas confrades da lusofonia, em terras de Thomas Morus, um sonhador, tal como nós, que nunca deixamos de idealizar uma pujante e próspera CPLP, para o enlevamento dos respetivos povos. Pena tudo isto ter irrompido na véspera do nosso retorno à encosta de Minerva.
Domingos L. Miranda Furtado de Barros
elsa furtado
3 de Setembro de 2018 at 15:44
Caso para se dizer: Mundu e pikinoti
Gostei, amigo, muito linda a decrição. Aquele abraço!
José Francisco Tavares Almeida
3 de Setembro de 2018 at 18:23
Prezado amigo
Leio os teus escritos sempre na perspectiva de aprendizagem. Rogo a Deus que te dê longa vida e muita saúde, para que possas deleitar-nos com a finura da tia pena. Obrigado e abraço.
Domingos Barros
4 de Setembro de 2018 at 9:55
Agradeço as palavras de amizade e de incentivo vindas da parte dos meus prezados amigos e comentadores, Elsa furtado e José Francisco Tavares Almeida. Abração
Ralph
11 de Setembro de 2018 at 5:09
É uma história muito agradável. Fui a Londres apenas uma vez, quando tinha 18 anos, mas já ouvi dizer que a cidade é muito cosmopolita e que encontros deste tipo se realizam com frequência. Há uma boa razão porquê a cidade se encontra frequentemente na primeira ou na segunda posição no ranking anual de cidades globais.
Domingos Barros
14 de Setembro de 2018 at 6:01
Pode crer, Ralph. Vi muita convivência e cosmopolitismo, de facto. Sobretudo, simpatia, pessoas de caras abertas e lívidas. Eu tive o tal contratempo de chuvas no verão, como referi na peça. De qualquer maneira, agora não tenciono viajar para Europa, pelo menos, enquanto não efectuar a minha já prometida passagem por Angola e São Tomé e Príncipe. Só depois é que posso voltar a Londres. Há uma expressiva comunidade das nossas gentes a viver por lá.