Cícero, orador e político da Roma antiga, estava convencido de que a História era mestra da vida. Traduzindo isto em sentença popular, diríamos apenas deste modo: «se o jovem soubesse e o velho pudesse, não haveria coisa que não se fizesse». Ou seja, os exemplos do passado ajudariam a que no presente se agisse de forma melhor e com maior prudência. Todos serão unânimes em aceitar a convicção de Cícero, mas a realidade mostra que nem sempre o Homem pautou a sua acção tendo em conta as experiências do passado.
Pois bem: o cortejo de horrores, já longo antes do Massacre de Batepá, que então se iniciou com revoltas a invadir parte da Ilha do «ver para crer», engrossou com novas e requintadas formas de tortura e morte.
No nosso país, hoje assim permanece – desprendido das catanas dos valentes -, ser idoso é estar particularmente exposto ao risco de feitiçaria e de marginalização ou apartheid social. Eliane Mossé, por outras palavras, afirmava-o assim: «A velhice é muitas vezes um verdadeiro naufrágio». Não raro, na situação que lhes é, em simultâneo, de isolamento e solidão, falta de saúde e precariedade económica, o lenho da superstição tem sido para os idosos desvalidos um verdadeiro calvário. Explico: quanto mais indigente e esmoleiro for um idoso, maior chance terá em herdar a imposta alcunha de feiticeiro.
E, ouso dizer aqui, numa reflexão muito pessoal, num quadro de visita social africano, analisando o nosso em particular, a questão da feitiçaria continua a ser muito hodierna, e a culpabilização dos idosos pobres e, em alguns casos, das crianças tem sido, pelo que eu já visualizei, o pacote cheio onde são extraídas às respostas. Sabe-se que dezenas de idosos mendicantes são arrancados das suas vamplegás (i.e., casas feitas com paredes de madeiras), violentados e mortos perante pelotões de populares ou, como em muitos casos, tratados de um modo que nem às bestas se reserva.
A reforçar este cinzentismo estatístico e ensombramento comum, J. Tolentino Mendonça – arcebispo, teólogo e poeta português – disse, há dias, que «a cultura dominante faz da doença, da velhice, da deficiência e do limite um completo tabu. Persiste uma espécie de interdito a respeito da vida vulnerável». Existe, de facto, um grande silêncio de conivência sobre esta situação, reflexo da nossa consciência malformada quanto à relação com os idosos e à atenção devida aos mais fracos. Isto, ainda que sem palavras, é discriminação.
Parece necessário fazer frente a estas situações, mediante acções positivas de dignificação da pessoa idosa e de incentivo à sua maior participação social. Há que pôr termo à tendência, que parece desenhar-se na nossa sociedade, de que ser velho é sinónimo de estigma social, ao contrário do que se passa noutras culturas em que a ancianidade é tida como um valor a respeitar.
Por isso, não há que ruminar e remoer, voltados para dentro de nós, a desolação dos inúmeros idosos, ou pormo-nos na retranca como se eles fossem sombras das doenças «misteriosas» que visitam a nossa mente; em primeiro lugar, talvez em único, há que ter consciência que os tempos são outros, os tempos mudaram. E o que parecia ser normal na nossa sociedade, em África e no mundo não voltará a ser como era: os idosos pobres também são inocentes; são pessoas com quilómetros de histórias de vida, que agora almejam ardentemente abraçar os últimos fôlegos, simplesmente em paz e sossego. Pensemos nisso, já que amanhã assim seremos, idosos: «o jovem de hoje é o velho de amanhã». Feiticeiro não é o idoso (ou velho), feiticeiro sou eu.
Ass.: Francisco Salvador
Vici
13 de Maio de 2019 at 20:22
Muito bem, sintético. .
Dêçu cá zudá bô
13 de Maio de 2019 at 20:36
Mais uma vez, parabéns pelo artigo! Adorei a citação: A velhice é muitas vezes um verdadeiro naufrágio. Isto é uma pura verdade na nossa terra. Os idosos vivem já mortos!
MC Pligu
13 de Maio de 2019 at 22:35
Li e reli o artigo…está muito bem feito! Falas sempre de coisas concretas, com cabeça, tronco e membro! Parabéns jovem
Maria Almeida
13 de Maio de 2019 at 22:47
Muita verdade num pequeno texto… os velhos pobre são mesmo muito maltratado
Verdade de informação
13 de Maio de 2019 at 22:57
Velho nem têm o que comer, nem aguenta viver com 250 dobra de reforma, é feiticeiro! Gostosíssima esta última frase: amanhã se chegarmos lá, também vamos ser idosos! Não esquece!
Lucinda LA
13 de Maio de 2019 at 23:17
gostei! leitura simples, leve e realista.
Dogmar Ayres
14 de Maio de 2019 at 8:00
Que maltrata os velho terá troco a dobrar quando chegar a sua vez, e tudo ele pagará cá na terra antes de ir…
Veiga CS
14 de Maio de 2019 at 11:11
Muito bom artigo! Sempre olhando para sociedade são-tomense…
Vedé
16 de Maio de 2019 at 12:32
Concordo plenamente com essa preocupação. Essa atribuição de chamar os velhos pobres de feiticeiros é quase tradição que vem de gerações a gerações. Há casos mais absurdos de próprios os filhos chamarem seus pais de feiticeiros por causa de doença dos netos a falta de assistência que os mesmos não têm. É triste essa situação. A verdade é que todos que hoje são jovens um dia chegarão a velhice e todo o mal que fizerem aos velhos, todo o nome que chamarem, é como uma semente que estão deitando na terra, amanhã colherão de certeza o fruto da semente.
Armindo Vaz
24 de Maio de 2019 at 10:06
A velhice é muitas vezes um verdadeiro naufrágio! Homens e mulheres que tanto ajudar na consolidação desta terra, hoje um país soberano, estão esquecido nas roças, sob olhar da morte, miséria e fome. Parabéns pelo artigo!