Opinião

Criminalidade na palestra e o futuro ético de São Tomé

Por : Xavier Muñoz-Torrent, geógrafo

Preocupantes notícias as que, por diferentes meios, nos chegam cada dia que passa de São Tomé. Nos últimos meses se está a registrar um incessante aumento da criminalidade, muito mais do habitual, ou, como mínimo, assim o recolhem tanto os jornais digitais como as redes sociais; num volume até o ponto de ultrapassar a capacidade efetiva das forças de segurança do país, que mesmo confessam precisar de ajuda externa.

Não há ainda disponíveis estatísticas oficiais sobre a evolução da taxa de criminalidade, mas apenas uma análise dos meios nos últimos anos nos oferece uma visão muito diferente daquela atmosfera social, sossegada, pacata, hospitalar que São Tomé nos tem habituados; agora com assaltos, aumento dos furtos, violência social até o extremo, bandidagem nas roças, tentativas de seqüestro e homicídios,… de tal maneira que as prisões já chegam como nunca ao extraordinário da sua capacidade operativa e humana.

Fala-se nalguns relatórios que, com a crise gerada pela pandemia, a criminalidade cresceu consideravelmente em África, mas esse “mal de muitos” não nos pode valer como justificação na escala são-tomense. Se infelizmente notória foi a violência desencadeada no novembro de 2022 no quartel das Forças Armadas, muito mais o é, quantitativamente e qualitativamente, a multiplicação dos casos de violência contra as mulheres e crianças, os assaltos em residências particulares e mesmo assassinatos. Será que se tem conformado um perigoso efeito espelho face à relativa idéia de impunidade?

Mas eu não estou a julgar essa evolução do status quo apenas pelas notícias nem pelos indícios estatísticos apontados pela própria polícia judiciária, senão porque essa nova onda de criminalidade também me afetou de perto.

Devo referir-me, ainda com muita consternação e infinita tristeza, com o coração na mão, ao assassinato premeditado, totalmente gratuito e injusto, do meu admirado amigo Alex Lisboa, aquela jovem promessa de Uba-Budo, inteligente e honesto trabalhador, que tinha aproveitado muito bem os apoios recebidos por alguns de nós para superar com excelência os seus estudos na Universidade Lusíada e graduar-se em Economia no julho de 2022. Ele se definia a si próprio como um “eterno positivista, amante da Natureza”. Filho da que foi a muito querida Mementa Lisboa, freguesa daquela roça (prematuramente falecida, por causa de violência de gênero), Alex tinha herdado a graça e a inteligência da mãe: era o orgulho do clã dos Lisboa, o primeiro da sua estirpe de origem cabo-verdiana em atingir o degrau de estudos superiores, estudos compaginados com o seu trabalho de gestão no Gabinete do Primeiro Ministro. Era um grande conversador: salientava a amizade (amigo dos seus amigos), a responsabilidade profissional e a inteligente conversação, à que dava sempre um engraçado toque de simpatia, ironia e bom humor (mesmo uma semana antes da sua morte falávamos animadamente sobre os seus projetos de futuro!). Era a promessa, era o orgulho da família, era o fim do “caminho longe”. Era um vivo exemplo a seguir pela juventude são-tomense, um bem público em si mesmo.

Lembro agora a imagem recente (que ele próprio me enviou) da sua tia Terezinha Lisboa, babada ao lado do sobrinho ataviado de fato preto e chapéu de graduação, com os seus melhores sapatos, bem brilhantes, a sua melhor camisa e a gravata emprestada pelo padrinho.

E Terezinha, com aquela face envelhecida que falava por si mesma, mistura, ao mesmo tempo, de alegria e de profunda emoção de pranto contido, não se sabia ver num momento de tanta alegria quando a sua história e a história da família foi a das penalidades, ao lado daquele jovem tão satisfeito e seguro pelo seu próprio esforço e superação, pelo reconhecimento recebido, diploma na mão, que era ao mesmo tempo a superação mesma da família toda e uma clara sinal de esperança da sociedade são-tomense no futuro de uma geração aberta e construtiva. Quanto orgulho a cheirar, se o orgulho tivesse cheiro!

Mas ninguém poderia suspeitar de um desenlace tão horrível apenas uns meses depois: Alex morreu assassinado brutalmente na sua residência, nas mãos de um desalmado que quebrou com sanha a sua cabeça com um objeto contundente e o rematou. Depois pretendia provocar um incêndio para esconder o crime. Todo por uns poucos euros que lhe sobraram a Alex após tratar dos custos da deslocação do seu primo para estudar em Portugal, e por um muito de inveja…

Uma patológica inveja individualista, hipócrita e miserável que lastra essa sociedade crioula para um poço de infortúnio, que a destrói irracionalmente, que alimenta fatalmente uma corrupção e um embrutecimento inexoravelmente rápidos da sua sociedade. Parece que com Alex talvez morresse a última oportunidade de sanar uma sociedade doente, aquela que já não vê futuro, se não é fugir para a antiga metrópole colonial: está a evoluir a ser colônia deles mesmos, a reverter a descolonização, a colonizar-se eles próprios com os piores exemplos, com os piores vícios e corruptelas, com a pior miragem enganosa, que não fosse uma triste paródia de um novo “Apocalypse Now”, onde a vida dos cidadãos fica às expensas de uma barbárie desmedida e caprichosa… Com Alex morreu, de improviso, a esperança.

E essa morte congelou as nossas almas: assassinaram o nosso amigo, esvaziaram o nosso sangue, perdemos uma parte de nós. E eu não posso ser empático nem me colocar no lugar do assassino: que coisa lhe rondou pela cabeça para delinquir e menos ainda para dar tão pouco valor à vida humana? Que caráter, estado de ânimo, de raiva ou de nervos, de doença mental conduzem a essas pessoas a matar a sangue frio? Falaram-me da terrível crise, da terrível miséria, da fome, das alargadissimas diferencias econômicas entre os mais ricos e os mais pobres, da generalização da corrupção e do uso da informação privilegiada…

Também da repatriação desde uma Angola em crise de são-tomenses despejados, de gente de mal viver, de ex-convictos e malfeitores, com um modus operandi inaudito nas ilhas, que não tem nada a perder por recorrer a violência, mesmo gratuita. Frente a isso, que capacidade tem a sociedade são-tomense para reagir, quando se está a pôr em dúvida um dos fatores diferenciais mais positivos no desenvolvimento das ilhas, como é a segurança das pessoas e a paz social, como é em definitiva o caráter hospitalar e bondoso das suas gentes? De fato, se está a alterar o comportamento e os costumes das pessoas a base de novos parâmetros sociais, vinculados com perigosas maneiras importadas ou criadas pela necessidade, ou uma escura mistura delas. Mas a necessidade nunca pode justificar um assassinato.

Como se pode fazer proselitismo exterior do país, quando bandas de bufados e mafiosos atuam agindo à vontade assaltando estrangeiros nos seus lares, mesmo com tentativas de raptos e de extorsões? Que exemplo é esse para a juventude? Que segurança agora se garante frente a turistas ou investidores, ou frente à própria cidadania? São Tomé se está a “africanizar” com pior do prior de África, e a “europeizar” com o pior do pior de Europa, de adotar uma ética que não foi nunca a própria, que suja a memória dos antepassados, que suplanta a solidariedade da comunidade, do bairro, da senzala, da família… pelo individualismo egoísta e conscientemente irresponsável que apaga laços de vizinhança, do bem comum, para exaltar ao extremo a competitividade e a escala pessoal sem importar as consequências para os outros, e que mesmo justifica a violência. Flagelo da inveja nas profundezas da condição humana, que não é motor de nenhum avance social nem pessoal, senão mais nada que a base da violência mais caim!

E ainda há quem pede misericórdia tão alegremente nas redes sociais… Mas para quem a misericórdia? Para as vítimas? Para os criminosos detidos? Para umas autoridades insolventes em prevenir e combater esse tipo de delinquência, que não seja para justificar um motivo crescente de negócio para agências privadas de sheriffs ou guarda-costas ou de academias de autodefesa? Um modelo também importado de Nigéria, de Gabão ou de Angola? Misericórdia para os valentes que, por obrigação ou por convicção, restam a viver honestamente nas ilhas? Mais vale não tão pedir misericórdia ou vagar por miragens e mentiras grandiloquentes, como atuar com muita firmeza e diligência frente à escalada do crime. De todo tipo de crime.

Eu quero e desejo essa paz social para os filhos e filhas de São Tomé e do Príncipe sem ter necessidade de pedir falsamente misericórdia para ninguém. Eu quero e desejo a harmonia da comunidade, a sua coesão, a capacidade das pessoas para poder desenvolver-se em paz com os recursos necessários sem recorrer à delinquência, para não ter que pensar agora em ampliar prisões, nem nenhuma salvadora emigração…

Mas será que já se tem ativado a bomba de relógio da que falam os demógrafos, pronto a explodir? Não devemos resignar-nos a isso: apaguem já, por favor, qualquer fusível atrasado, extirpem a corrupção tão impregnada no ADN da cidadania como se fosse um proceder correto; atuem com inteligência para procurar criação e inovação, para reter e redobrar o talento; incrementem a boa educação, combatam a e construíam um país digno, feliz, limpo, lindo, sustentável, justo, livre, com essa maioria de gente boa, humilde, honesta, sossegada, culta e trabalhadora, que atende às melhores das belezas que são a convivência, a coesão social, a hospitalidade e a solidariedade.

Matem as invejas destrutivas e a criminalidade, rejeitem o individualismo desbocado e a hipocrisia, e, por contra, cresçam com a solidez do trabalho bem feito, com a construção da boa vizinhança, da cooperação entre as pessoas, bandeirem um futuro cimentado sobre uns princípios inquebrantáveis de equidade e coesão social, que é o pilar mais sólido, necessário para fundamentar o conceito santomense de nação, excepcional e diferente, sana e segura que pode fazer dessa terra o melhor lugar do mundo para viver.

Mas será que estamos todos a ficar mais velhos e defasados, só a ler necrológicas de casos violentos, o, pior ainda, a ter que escrever sobre isso, quando o mundo decorre por outros trilhos onde as tecnologias não censuram os abusos e a violência, senão, ao contrário, as explicitam sem nenhum tipo de controle frente a um público imaturo, regido por imagens e conceitos do “vale tudo” para beneficiar os interesses particulares. Mas na vida não estamos sozinhos. Revolto-me contra isso, com raiva, pois é esta uma guerra cultural e ética, aberta de mais, que não se pode perder.

2 Comments

2 Comments

  1. Nel

    14 de Outubro de 2023 at 19:53

    Este texto é muito intenso, profundo, é para se refletir, sobre o rumo da vida dos santomenses… muito triste 😢…mas não percamos esperanças… Por isso só vejo uma saída, apostar na educação e reeducação dos cidadãos, ações e políticas públicas para atrair mais investimentos para o país, criando assim emprego e uma vida digna aos santomenses…que Deus proteja meu S.tomé e Príncipe que tanto amo…

  2. Margarida Lopes

    15 de Outubro de 2023 at 0:08

    Que Deus acolha o Alex nos esplendores da luz perpétua e lhe dê um canto na glôria…que Deus dê conforto e consolação aos familiares da víctima.
    É verdade que em STP tem havido e cometido muitos crimes macabros que se têm perpetuado, porque os serviços da PJ pouco pu nada fazem,os tribunais disfuncionam, a justiça não existe mais no país. Uns criminosos imitam os outros, pois que repetem o mesmo modo de proceder, e é de notar que agressões violentas,com caráter de tortura têm estado a ser praticadas cada vez mais, um dos 1o casos conhecidos foi do economista Jorge Pereira dos Santos, cujo o Patrice TROVOADA está implicado como mandatário e o ARMINDO como um dos executores em cumplicidade da MARLENE empregada de casa do malogrado Jorge,que o Patrice TROVOADA fez sair de STP para se proteger,aliás, voltou a fazer a mesma coisa com os outros que torturaram e mataram os 5 são-tomenses no QUARTEL do MÔRO, do tal alegado falso GOLPE de ESTADO do 25/11/2022. Não queremos o Patrice TROVOADA executado, porque assim ele para de sofrer, queremos sim, o Patrice TROVOADA prêso e julgado sériamente.

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