Por Xavier Muñoz-Torrent, geógrafo
A publicação em língua forro do vídeo “El sol i la lluna” [“O sol e a lua” (1)], no espaço Una mà de contes (Uma mão de contos) do canal infantil-juvenil SX3 da TV3 Televisão pública de Catalunha tem causado nas redes sociais um novo revulsivo sobre o futuro das línguas próprias de São Tomé e Príncipe. E não é uma questão menor que o uso dessas línguas esteja agora em franco retrocesso entre a juventude são-tomense (que às vezes nem fala nem mesmo compreende a língua, nem tão sequer se interessa por ela), quando a língua é o eixo principal da estrutura cultural diferenciada de um grupo humano, de uma nação.
É por isso que “El sol i la lluna” resulta a todas luzes uma ação extraordinária, por quanto é a primeira vez que se produz um programa em língua forro fora dos próprios meios nacionais ou além das fronteiras da lusofonia.
Manuel Barrios-Lucena, diretor-realizador do espaço Una mà de contes, fazia ênfase, há apenas uns dias, da finalidade de um programa que estranhamente utiliza línguas vernáculas minoritárias para explicar contos, combinando-o com uma expressão plástica animada muito especial (produzida por artistas novos): a ideia essencial é, à vez de entreter, dar a conhecer a existência de um formidável patrimônio mundial imaterial, neste caso linguístico, a base da publicação visual de contos em línguas minoritárias, que estão mesmo em perigo de extinção, considerando além disso que é através da língua que também se expressa uma maneira diferente de conceber e ver o mundo.
Essa ideia vai na mesma linha com a que alguma vez salientamos em diferentes grupos de debate, a tenor dos necessários apelos de ação porque, a pesar dos esforços científicos, tanto o crioulo forro como as outras falas nacionais, angolar e lungu’ie, em pouco tempo podem virar línguas mortas, por exemplo, sem a sua introdução normalizada nos currículos escolares ou sem uma oferta pública de cursos de formação em línguas, por tanto devendo atender a uma decidida vontade das autoridades e da própria cidadania santomense, ainda pouco explícita… ou realmente consciente dessa importância.
A ideia concorda também com o apelo lançado durante o Fórum Internacional das Culturas de Barcelona (2004), nessa altura por meio da impressionante exposição Vozes (2), que mostrava a imensa riqueza linguística do planeta através de uns videoclipes de apenas uns instantes com pessoas a falarem nas suas línguas, muitas línguas do mundo, mesmo as mais remotas e esquecidas.
Nessa exposição, que ocupava mais de 3.500 m² de platôs, se debatia a necessidade de preservação desse patrimônio intangível da humanidade, quase como um dever e não apenas como uma questão de identidade nacional. Este é o testemunho que recolhera o Governo de Catalunha na orientação da sua política de cooperação internacional, com programas que deram apoio à recuperação e normalização linguística em diferentes lugares do mundo. Este é o mesmo testemunho que, no seu enquadramento, também recolhe o programa Una mà de contes.
Com tudo, a proposta do vídeo“El sol i la lluna” tem outro propósito transcendente: a necessidade de valorizar a função dos velhos na transmissão do conhecimento e a da relação intergeracional para conservar esse conhecimento, além dos aspectos linguísticos, que nesse caso tinham também principal importância, pois a maioria dos meninos que prestam as suas vozes (Escoteiros de Santo Amaro) desconheciam anteriormente a língua forro.
Maria Montroy-Ferré, principal indutora da ação (doutora em tradução e interpretação linguística pela Universidade Jaume I, de Castelló de la Plana, no País Valenciano, agora a colaborar com a Cátedra UNESCO de Patrimônio Linguístico Mundial, sediada na Universidade do País Basco, e colaboradora também nos projetos em São Tomé da ONG Cooperación BierzoSur) em consequência conjuntou habilmente (ou por acaso) dois objetivos: um relativo a destacar e reconhecer o importante papel social dos reformados, e, por outra parte, a indução à aprendizagem da língua nativa por parte do jovens e, por tanto, à sua recuperação para o dia a dia. E não sei qual dos dois é o mais relevante!
Por tanto, é preciso expressar um grande e sonoro bravo! pela iniciativa à indutora e também à sua iniciativa em propor o projeto à única televisão que muito provavelmente podia atrever-se a produzir um programa numa língua remota, minoritária, quase desconhecida para o grande público globalizado. Estou totalmente certo que isso em Espanha apenas o podia fazer a televisão pública de Catalunha, onde evidentemente há uma preocupação muito especial pela conservação e desenvolvimento da língua própria a todos os níveis da sociedade, das instituições e dos meios de comunicação.
Mas esta aliança catalã em relação ao forro não termina aqui. Curiosamente, à sugestão de Bastien Loulum, aquele ativo empresário de Praia Vanhã, conheci uma nova obra em forro: Piquina Plinchipi, a tradução do clássico de Antoine de Saint-Exupéry, O Principezinho (1943), ao crioulo são-tomense (3). Trata-se de uma edição publicada em 2019 em Barcelona, pela entusiasta editora Adela Sanz, que, de uma forma similar à iniciativa de Una mà de contes, também tem promovido a tradução do livro a outras línguas vernáculas africanas. Mais outro bravo grande e sonoro, pois!
A iniciativa se forjou numa estadia turística em São Tomé. Dona Adela, alma inquieta, teve contato com o crioulo são-tomense por meio de conversações com palaiês, pescadores, comerciantes, crianças, gente velha e professores de ensino. Estes últimos lhe significaram as dificuldades em ensinar a língua própria aos alunos, que, ano após ano, iam a perder o uso cotidiano, mesmo no âmbito familiar, e por tanto a denunciar mais uma vez o grave retrocesso e, em particular, a falta de métodos pedagógicos e documentos escritos que possam ser utilizados para o seu ensino e para a sensibilização do seu uso habitual, precisamente para reverter essa tendência negativa. Foi então que a ela, colecionadora do clássico de Saint-Exupéry, se lhe ocorreu que a sua tradução poderia ser um bom instrumento para ajudar à introdução do forro no âmbito educativo.
Assim, com a ajuda de um professor de Neves, Sum Eliseu Pascoal d’Almeida, propôs e impulsionou uma tradução livre ao forro dessa obra. Em Barcelona, encomendou a publicação contando apenas com os seus próprios recursos e, uma vez editada e registrada a obra (uma tiragem curta, especial e numerada, de apenas 200 cópias), se distribuiu gratuitamente a escolas e entidades culturais de São Tomé, não sem alguma vicissitude. Eu fiquei muito impressionado pelo “empurrão” e determinação pessoal de dona Adela e sum Eliseu, e mais ainda pela coincidência no tempo com a iniciativa de Maria Montroy, Manuel Barrios e a equipa da SX3/TV3, e que ambas as dois iniciativas se houvessem produzido no meu país, na minha cidade, próximas, por acaso, na mesma época.
É, por tanto, para ficar mesmo contente e orgulhoso, especialmente quando essas ações inicialmente inconexas tenham efeitos certos sobre a consciência das pessoas e que também o podem ter sobre o pensamento estratégico do país.
Gratas constatações, propõem um novo flashback a lembrar uma intensa conversa que, tomando um café na praça da República, em Sintra, tivemos há já alguns anos com Tjerk Hagemeijer, eminente linguista, sobre possíveis ações a fazer em relação à recuperação das línguas de São Tomé e Príncipe e as possibilidades de enquadramento em programas de cooperação.
Nessa altura todo eram conjecturas, mas ele, muito mais inquieto e prático, já abundou, junto ao professor Gabriel Antunes de Araujo, na publicação do Dicionário livresantome/português [Livlu-nglandji santome/putugêji, 2013 (4)], para o qual contaram com a colaboração de um ingente grupo de apoio de figuras nacionais ligadas à cultura são-tomense.
Na apresentação dessa insigne obra, se destacam as origens dos estudos e coletânea em matéria lexicográfica do crioulo forro, evocando especialmente os trabalhos de Luís Ivens-Ferraz [1979 (5)], o Dicionário lexical santomé-português de Ayres Veríssimo Major [Ministério da Educação e Cultura, 2004 (6)], o Dicionário etimológico… de Jean-Louis Rougé [2004 (7)] e a tese de mestrado de Carlos de Sousa Ferreira Fontes sobre o léxico santomense [2007 (8)], aos que eu adicionaria as reflexões de Cristina Amado (2006) sobre a contextualização da língua e as ligações gramaticais com o pensamento e o universo são-tomense (9), e as de Abigail Tiny Cosme (2014) sobre as relações filogenéticas entre os crioulos do Golfo da Guiné (10).
Esses trabalhos são obviamente um fundamento acadêmico em direção à normalização da língua; como mínimo a constatar a sua peculiar realidade e a unir esforços para formalizar as bases do seu conhecimento e revitalização.
E mais ainda, quase simultaneamente à publicação desse dicionário, promulgou-se o Decreto 19/2013, de 27 de maio (durante o mandato de Manuel Pinto da Costa como Presidente da República, e de Jorge Bom Jesus, como Ministro de Educação, Cultura e Formação) que aprovava o alfabeto unificado para as línguas nativas de São Tomé e Príncipe, como primeiro passo oficial para a preservação, o desenvolvimento e a valoração desse patrimônio, tentando uma normalização da escrita, tanto do forro ou são-tomense, como do angolar ou do lungu’ie do Príncipe (11).
Apenas no mês de agosto de 2022, já no fragor pré-eleitoral, se lançava a notícia, por parte de Aerton do Rosário, nessa altura Ministro de Cultura, da introdução da língua forro no programa educativo oficial, mas como disciplina extracurricular, com o objetivo que os jovens são-tomenses a valorizem como patrimônio próprio, de uma forma semelhante à experiência já iniciada há tempo com o lungu’ie nas escolas de Príncipe (12). Infelizmente, o anuncio não explicitava nem recursos a destinar a essa atuação, nem metodologias, nem como ia a implementá-la a poucas semanas do início do ano escolar sem ter disponibilizado materiais, nem nenhuma formação específica para pessoal docente. De momento, essa ideia, muito relevante e sendo um novo passo, ficou apenas como um belo propósito, não atendido ainda.
Na cotidianidade, além de programas de “variétés” ou de opinião nas TV e rádios nacionais produzidos em língua própria (ainda parcialmente), seria preciso também abundar efetivamente no uso da língua para o ensino normal ou para a produção científica, mesmo em artigos, teses de mestrado ou de doutoramento, ou na edição de imprensa escrita, que viesse a incrementar-se na música, a única manifestação cultural são-tomense que nunca perdeu o crioulo como meio de expressão para um público mesmo além das ilhas.
Precisam-se, por tanto, novos passos à frente da iniciativa ou vontade dos próprios são-tomenses. A recuperação da vitalidade linguística e mesmo cultural depende essencialmente do seu uso e da sua valoração a todos os níveis sociais. Mesmo seria muito importante agora a criação de um grupo de trabalho, talvez ligado a um órgão de participação do Ministério de Educação ou de Cultura para que, desde uma ótica acadêmica mas prática, debatesse e determinasse as normas comuns para a regulação oficial dos usos da língua ou das línguas santomenses, e marcasse uma nova estratégia nacional do seu desenvolvimento, que necessariamente deveria contemplar o uso oficial dos crioulos nas relações com a administração pública, o incremento das publicações em forro e, claro está, outros aspectos como a formação do professorado e pessoal da função pública, a expedição de diplomas ou títulos de conhecimento da língua, ou, por exemplo, a legendagem em crioulo da produção televisiva [como sugere acertadamente Maria Montroy-Ferré na sua tese de doutoramento (13)].
Muito trabalho a fazer, mas nada mais entusiasmante! Com tudo, uma vez que o debate está reativado, o jogo e as decisões mais transcendentes ficam sempre no cenário nacional.
Referências
1. BARRIOS-LUCENA, Manuel (diretor-realizador), HERNÁNDEZ-RIPOLL, Josep M. (guionista), et al., “El sol i la lluna – llengua forro”, programa no espaço Una mà de contes, Sant Just Desvern-Barcelona, Canal SX3/TV3 Televisió de Catalunya, 5:32 min.. Video em
https://www.ccma.cat/tv3/sx3/el-sol-i-la-lluna-21-llengua-forro/video/6179064
2. VILLATORO, Vicenç, Veus-Voces-Voices-Voix, catálogo da exposição para o Fórum das Culturas, Fòrum Barcelona 2004, Lunwerg, Barcelona, 2004, 289 pp.
3. SAINT-EXUPÉRY, Antoine, Piquina plinchipi, Edição em forro são-tomense, Barcelona, Adela Sanz Ed., 2019, 97 pp.
4. ARAUJO, Gabriel Antunes de, & HAGEMEIJER, Tjerk, Dicionário livre santome/português – Livlu-nglandji santome/putugêji, São Paulo, Editora Hedra, 2013, 172 pp., https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/31028/1/Araujo%26Hagemeijer2013.pdf
5. Vid IVENS-FERRAZ, Luís, The Creole of São Tomé, Johannesburgo, Witwatersrand University Press, 1979, 122 pp.
6. MAJOR, Ayres Veríssimo, & Ministério da educação e cultura, Dicionário lexical santomé-português, São Tomé, Dória Design, 2004.
7. ROUGÉ, Jean-Louis, Dictionnaire étymologique des creoles portugais d’Afrique, Paris, Karthala, 2004, 334 pp.
8. FONTES, Carlos de Sousa Ferreira, Estudo do léxico do são-tomense com dicionário, tese de mestrado, Coimbra, Universidade de Coimbra, 2007, 104 pp, https://www.uc.pt/creolistics/research/saotome/fontes_2007
9. AMADO, Cristina, Que língua se fala em São Tomé? crioulo? português? ou o falar santomense?, tese de mestrado, Lisboa, Universidade de Lisboa, 2006, 150 pp., https://repositorio.ul.pt/handle/10451/1986510. COSME, Abigail Tiny, As relações filogenéticas entre os crioulos do Golfo da Guiné, tese de mestrado Lisboa, Universidade de Lisboa, 2014, 74 pp., https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/18351/1/ulfl175416_tm.pdf
11. Vid DIARIO DA REPÚBLICA, Decreto 19/2013, de 27 de maio, aprova o alfabeto unificado para a escrita das línguas nativas de São Tomé e Príncipe, DR n. 102, 14/08/2013, pp. 601-671.
12. Vid o artigo DÊNDE, Manuel, “Crioulo fôrro vai ser ensinado nas escolas de São Tomé e Príncipe”, São Tomé, Agência STP-Press, 18/08/2022, https://www.stp-press.st/2022/08/18/crioulo-forro-vai-ser-ensinado-nas-escolas-de-sao-tome-e-principe/
13. MONTROY-FERRÉ, Maria, La subtitulació com a eina per a la cooperació. El cas de São Tomé i Príncipe, tese de doutoramento, Castelló de La Plana, Universitat Jaume I, 2020, 357 pp. https://www.tdx.cat/handle/10803/670348#page=1
Imagens
#1 Capa do programa “El sol i la lluna” (“O sol e a lua”) em língua forro, 2022
#2 Capa do livro Piquina Plinchipi, 2019
#3 Imagem interior do livro
#4 Capa do Dicionário, 2013