Cultura

“Quem somos nós?”

É uma questão que toca sempre na alma de muitos são-tomenses. A perda dos valores identitários, faz ecoar constantemente esta pergunta na mente dos cidadãos. Num artigo sustentado por factos históricos devidamente comprovados, o escritor Albertino Bragança, convida os são-tomenses a se redescobrirem, ou a se encontrarem consigo mesmos. A estratificação social de São Tomé e Príncipe, no fundo, o nascimento da nação são-tomense, domina a primeira parte do “Quem somos nós”.

“QUEM SOMOS NÓS?”

I PARTE

Após quarenta e quatro anos de independência nacional, S. Tomé e Príncipe debate-se com alguns problemas estruturais de reconhecida gravidade, que vêm retirando aos santomenses a possibilidade de uma vida à altura das suas aspirações à data histórica de 12 de Julho de 1975.

Delinearam-se projectos, arquitectaram-se planos, proliferaram os estudos de diagnóstico e os programas de governo, empenhou-se a classe política na procura das soluções mais susceptíveis de evitar o fosso em que o país se ia progressivamente afundando, sem que de tal esforço se tenha chegado a resultados palpáveis.

Por tudo isso, uma pergunta se impõe: será que tal insucesso se deve apenas à escassez de recursos com que o país tradicionalmente se confronta ou existe algo mais a perturbar a via do desenvolvimento sustentado do nosso país, que é, ao fim e ao cabo, o que todos almejamos?

Não será que, face aos condicionalismos atrás citados, se torna premente abordar as questões de fundo que se colocam à nossa identidade enquanto comunidade específica inserida no mundo, de modo a viabilizar o nosso percurso colectivo pelos caminhos do futuro?

Por isso me abalancei a escrever o presente texto, de modo a com ele contribuir para uma melhor elucidação dos santomenses sobre as suas origens e os factores que conformam a sua identidade, não na perspectiva de nos atermos passivamente aos mesmos, antes para, conhecendo-nos a nós mesmos, podermos lobrigar os verdadeiros caminhos conducentes ao consenso indispensável ao nosso desenvolvimento.

Trata-se, pois, de partilhar convosco algumas ideias com que convivo há algum tempo, embora vos coloque já de sobreaviso para o facto de esta exposição não passar de particulares considerações sobre tema tão aliciante e complexo.

Feito o alerta, tentemos responder à questão central que aqui nos traz: Quem somos nós?

A resposta é imediata: somos santomenses, africanos, fruto de um processo de caldeamento de culturas que se encontraram no contexto de um longo processo de colonização que, tendo embora posto em confronto gentes e civilizações provenientes da Europa e da África, uniu as vivências de senhores e escravos e deu azo a um povo com características bem específicas.

A esse propósito, permitam-me uma longa mas necessária citação do geógrafo, poeta, sociólogo e professor, Francisco José Tenreiro, o qual considera que “a situação privilegiada da ilha, primeiro na rota da Índia e, mais tarde, entreposto entre a costa ocidental de África e a América do Sul, facilitou contactos de raças, de culturas e de produtos. Foi, na realidade, desde o final do século XV, uma das grandes encruzilhadas do Mar-Oceano onde se encontraram homens, negros e brancos, de diferentes proveniências e com estilos de vida diferenciados, e se misturaram plantas do Mediterrâneo, de África, da Ásia quente e chuvosa e da América do Sul”.

Diz ainda Francisco Tenreiro que “foi a ilha campo de ensaio de culturas, no sentido mais amplo que a esta palavra se pode atribuir. Além de portugueses da Metrópole, que traziam consigo as formas de um estilo de vida desenvolvido no mundo mediterrâneo, também madeirenses, com a sua experiência do fabrico do açúcar e de ocupação de terras virgens, e estrangeiros, como Genoveses e Franceses, técnicos também do açúcar ou mercadores. Ali arribam ainda, embora em contactos frustes, os Holandeses no decorrer do século XVII. Da costa africana, elementos negros, introduzidos como escravos, e que, dada a enorme latitude que o resgate teve para as populações de São Tomé, constituíam os mais variados tipos raciais: Sudaneses e Guineenses primeiro, Bantos ou Sul-Africanos mais tarde. …. Mais tarde ainda, na segunda metade do século XVIII, também os contactos com as gentes do Brasil: brancos, negros e crioulos que retornam ao golfo da Guiné ou para comerciar ou mesmo para se estabelecerem no reino do Dahomé.” (1) Sem esquecer as 2.000 crianças judias que acompanharam em 1493 o terceiro mandatário, Álvaro de Caminha, um número considerável das quais soçobrou à rudeza da viagem.

Pela sua posição estratégica, São Tomé é ponto de passagem obrigatória dos navios brasileiros, em especial da Baía, que traficavam na Costa da Mina, já que, por determinação de el-rei, “daqui em diante não vai nenhum a ella sem que primeiro tomem a ilha de Santo Tomé, assim na ida como na vinda depois de terem negociado na mesma Costa, para que nela se averigue o que levaram e o que trouxeram, e … se regulem por este exame os direitos que hão de pagar”.(2)

Isto depois de parte da população de São Tomé a ter abandonado ao tempo da decadência do açúcar e por sua vez se ter baldeado para o nordeste brasileiro.

Somos igualmente descendentes dos escravos mulatos e negros alforriados pelo foral de 1515 e seguintes e pelos escravos que foram sendo sucessivamente libertos pelos seus senhores e pela administração, o último grupo dos quais ocorreu em 8 de Novembro de 1875, na sequência das sucessivas reivindicações reclamando a abolição imediata e efectiva da escravatura, anteriormente já abolida por Decreto de 25 de Fevereiro de 1869.

Contrariando a forma dicotómica como as teses colonialistas costumam abordar o processo de povoamento das ilhas, referindo-se ao confronto Europeus livres/Negros escravos, a historiadora portuguesa Isabel Castro Henriques, com base nos textos portugueses dos séculos XV e XVI, afirma que “ na fase inicial da colonização de São Tomé, que decorre grosso modo até ao início do segundo quartel do século XVI, verifica-se a coexistência de uma maioria de Europeus livres com uma fracção minoritária de Africanos livres, de uma grande inteligência e ricos, mas nem por isso menos activos e participativos no processo em curso”. (3)

Todos eles deram o seu contributo na formação do que somos hoje, devendo dizer-se, como o faz o reputado historiador santomense Carlos Neves, que “ dos povos transferidos, das culturas transportadas, das línguas postas em convívio, originaram-se importantes sínteses, que deram lugar a um outro povo”.(4)

Estamos, pois, perante uma sociedade profundamente heterogénea, constituída por povos das mais diversas proveniências e origens e, por isso marcada, desde as suas origens, por duas grandes características: a diversidade e a conflitualidade, que fizeram sempre do arquipélago um verdadeiro caldeirão de instabilidade política e social.

Do ponto de vista da diversidade, vejamos como se estruturavam no século XVI, de forma vincadamente hierarquizada, os grupos sociais então prevalecentes: primeiro, o pequeno núcleo dos europeus, compreendendo por volta de 1% da população, que, chegados a S. Tomé a partir dos finais do séc. XV e constituído, na sua maioria, por degradados mandados à força pela justiça, ocupavam “ o nível hierárquico mais elevado do poder civil, eclesiástico e militar, o que lhes conferia o controlo do aparelho político e administrativo e, consequentemente, do sistema económico. De referir que, a maior parte das vezes, era a capacidade económica que permitia a ascensão a cargos importantes, principalmente na estrutura militar ou no senado da câmara”.(5)

Em seguida, a elite dos moradores livres da cidade, os moladôs poçon, ou filhos da terra constituída pelos mestiços, de grande poder económico e sempre em disputa pelo poder político, sobretudo na nomeação para juízes da Câmara (como aconteceu, por exemplo, em 1553, aquando do movimento de Yanus Gato, mais conhecido por Yon Gato), cuja importância social atingiria no século XVIII hegemonia quase plena, e pelos funcionários e proprietários negros, uma parte dos quais também senhores de terras e de escravos.

Nas ilhas viviam também os negros forros, escravos libertos, que odiando o trabalho agrícola que foi sempre o seu e em condições absolutamente degradantes e de exploração, debandam para a cidade, em busca de um emprego que não existe.

Apesar da apreciação negativa dos europeus a respeito dos elementos desse grupo social, a quem chamavam daninhos e preguiçosos, eles trabalhavam no porto, cuidavam dos escravos em trânsito ou iam negociar ao outro lado da costa, entregavam-se ao comércio de ocasião ou procuravam desesperadamente uma vaga no pequeno funcionalismo público…

O arquipélago é ainda espaço de residência dos escravos domésticos, que constituíam a grande maioria da população. Na prática, todas as famílias de moradores os possuíam, pois, para além do trabalho gratuito que proporcionavam, eram testemunhos de poder e alvo da exploração e ostentação mais descarada por parte dos seus donos. Recorde-se, a esse respeito, que algumas senhoras dos moradores (mestiças e negras) se deslocavam às compras em carrinhos de mão carregados por escravas, seguidos por um cortejo de trinta ou mais destas…

No último escalão social estavam os escravos de plantação, afectos ao duro trabalho dos engenhos na produção do açúcar “os quais têm obrigação de trabalhar toda a semana para o seu senhor, excepto ao sábado, que trabalham para si e nestes dias semeiam milho zaburro…, raízes de inhame e muitas hortaliças. O senhor nem mesmo faz despesa em dar-lhes vestidos, nem de comer, nem em mandar-lhes construir choupanas, por que eles por si mesmos fazem todas estas coisas” (6)

Havia ainda os escravos vindos do continente, depositados como gado em armazéns destinados à sua redistribuição com destino às Américas.

Na sua preciosa obra “Mulheres, Sexualidade e Casamento em S. Tomé e Príncipe (séculos XV – XVIII), referindo-se à conflitualidade que sempre marcou a vida do arquipélago, o historiador português Arlindo Manuel Caldeira afirma que “é a heterogeneidade social e étnica que faz da cidade de S. Tomé um extraordinário campo de aculturação, mas é também ela que transforma esse espaço urbano num lugar de conflito quase permanente”(7).

Nesse mesmo livro, diz o autor que “deve ser difícil, de facto, encontrar uma sociedade mais conflitual do que esta”, factor que tem, em São Tomé, a particularidade de se manter quase sem alteração durante séculos…

De facto, são de vária natureza os conflitos que dilaceravam a sociedade da época:
Étnico-sociais, caracterizados sobretudo pelo antagonismo entre senhores e escravos, pela luta dos mestiços livres a favor da sua afirmação política, bem como pela oposição dos filhos da terra aos governadores e outros funcionários vindos de Portugal;
Institucionais, marcados sobretudo pela discórdia entre os governadores e os ouvidores (o principal magistrado judicial do arquipélago);
Civis-religiosos, traduzidos pelas permanentes contradições entre as autoridades civis e religiosas, como o que ocorreu nos finais do século XVI entre o Bispo D. Francisco de Vila Nova e o Governador D. Fernando de Menezes, momento aproveitado por Amador para desencadear a sua revolta:
Religiosos, com incidência no interior da própria igreja católica, ora entre o Bispo (por norma, europeu e branco) e os cónegos, na sua maioria filhos da terra, ora entre estes últimos.

A natureza generalizada de tais conflitos teve também a sua incidência na relação entre os habitantes das duas ilhas, que, na opinião do estudioso Augusto Nascimento “remontavam, pelo menos, a transferência da capital para o Príncipe em 1753, sendo que, com o liberalismo e a rotatividade dos governadores, se sucederam as questiúnculas, tendo a ilha de S. Tomé chegado, em 1837, a declarar-se independente, desavença só sanada com a intervenção da Armada”. (8)

Segundo o mesmo autor, notáveis dessa elite dos filhos da terra “ afrontaram o governador José Maria Marques nos seus dois mandatos, por certo uma das razões pela qual, à revelia de Lisboa, transferiu, em 1852, a capital de Santo António do Príncipe para S. Tomé.”

Albertino Bragança 

FIM DA PRIMEIRA PARTE

7 Comments

7 Comments

  1. Miguel Teixeira

    27 de Setembro de 2019 at 8:54

    Grande texto de um grande Homem, outra coisa não seria de esperar, além de um contributo muito importante para a salvaguarda da história do País

  2. Salmarçal 2

    27 de Setembro de 2019 at 10:21

    Após ter lido o texto acima escrito, senti que o mesmo é importante mais não relevante.
    A sua importância decorre por nos relatar alguns factos históricos acerca de São Tomé. Mas nós, os mais novos de São Tomé, esperávamos que alguém como o escritor do texto, pelo sua participação na governação do país, nos trouxesse a razão da nossa miséria e tristeza, e nos apontasse o caminho a seguir para melhorarmos a vida do povo e, consequentemente, a do país. Assim, como não nos apontou o caminho útil para a nossa vida, levou o texto a ser irrelevante, porque não muda nem corrige nada.

  3. R. da Cunha

    27 de Setembro de 2019 at 12:19

    Caro Sr. Albertino Bragança,

    Repare, o que define o que nós somos é o projecto em torno do qual o país, o governo e a sociedade civil definiu como destino comum. Salvo erro de contas, essa definição aconteceu há 44 anos e é reforçada de 4 em 4 anos por uma espécie de eleições legislativas que me nego a classificar.

    É muito conveniente e liberta as consciências dos mais velhos continuar a esgravatar no que os outros nos fizeram no passado para justificar a desgraça do presente e fugir da trabalheira que é projectar o futuro.

    Nenhum país vive sem o seu passado e a sua história, dir-me-à! Certamente que sim! Mas não é tão fatal como o destino, pois não?

    Convido-o a fazer um exercício simples: sente à mesma mesa dois jovens de 20 anos, um Português e outro Santomense e faça-lhes a pergunta: “o que mais vos preocupa?” Vai surpreender-se com a resposta quando ambos disserem: “O FUTURO”.

    Por último, Sr Bragança deixo-lhe um repto, quererá investigar e escrever sobre as seitas religiosas que invadiram as roças e se substituem às autoridades e que rebentam com espírito crítico dos sãotomenses mais frágeis, já de si pouco instruídas? Fale-nos dessa realidade com o seu olhar crítico e desconstrutivo.

    Aceite um abraço de um leitor que aprecia a sua escrita desde Portugal.

    R. da Cunha

  4. silvio antonio

    27 de Setembro de 2019 at 15:02

    O texto é interessante mas confesso que a nossa historia deveria ser motivo de orgulho para termos um país diferente. Mas não. É só roubalheira, arrogância (o proprio autor do texto quando era ministro achava que estava no céu, recordo uma vez nos anos 90 foi buscar jornal no centro cultural português que vinha todo de Portugal-para ver onde anda a nossa independencia-como a funcionária o atendou sentada lá o senhor ficou muito aborrecido que demonstrou logo a irá, que vergonha). Enfim é só perseguição, miséria de espirito dos governamentes e tudo o resto. Resultado os que governaram ou estão a governar só preocupam com os seus familiares e camaradas enriquecendo-se, deixando o resto na desgraça. O governo nem quer saber da desorganização da capital, com porcos cães doentes, doidos a solta, lixo, buracos que só aumentam todos os dias, venda nas estradas e passeios, falta de luz, água e tudo a mistura, festas de bairros. As roças que foram a nosso ganha pão estão quase todas abandonadas com infraestruturas a cair aos pedaços. E ainda assim ainda somos racistas não gostamos de quem vem ca investir….estorquimos dinheiro a essas pessoas a todo o custo. Enquanto isso os ministros e presidentes dos tribunais superiores ficam a circular em grandes carros com fatos como se fossem alguma coisa. Isto é terra de gente com mente pequena. Nunca vamos desenvolver.

    • Zagaia

      28 de Setembro de 2019 at 15:26

      Sr.Silvio António,subscrevo perfeitamrnte o que escreveu.
      O atraso socioeconómico de STP é de cerca de 50 anos em relação ao país colonizador e 15 anos em relação aos países insulares africanos, segundo o estudo da ONU. A mudança socioeconómico que todos esperam depende da luta de todos Sãotomenses.

  5. Edmilson

    28 de Setembro de 2019 at 8:32

    Pois é o texto põe nos a refletir em três perguntas que muitas vezes são difíceis de responder, quem somos? Donde viemos e para onde vamos?
    A melhor maneira para dar resposta a estas três questões é: o silêncio, como é difícil vivermos o silêncio né?
    Mas o silêncio é ingrediente principal para conhecermo-nos a nós próprios, silêncio ajuda nos a ver dentro de nós, oquê que nos faz triste, alegre, que gostámos mais ou menos, obrigado pela atenção dispensada!

  6. Barão de Água Izé

    28 de Setembro de 2019 at 14:40

    Bom texto, mas que não aborda a necessidade de um novo modelo econômico para STP e que tem que passar obrigatoriamente pelo fim das nacionalizações, pela privatização/reprivatizacoes da terra e estruturas afins. Projecto complexo, que têm que atrair capitais estrangeiros e reformulação do papel do Estado na economia, revitalização da agro-pecuária. O povo de STP merece outra vida.

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