Estamos todos divertidos num “batelão”, não tão velho assim, mas cujos caprichos insaciáveis de alguns irresponsáveis está a contribuir para o seu inevitável afundamento e para a nossa desgraça coletiva. Não tem faltado avisos de toda a espécie alertando para a perigosidade do que se avizinha se não arrepiarmos caminho.
Os passageiros da terceira classe, que constituem a maioria dos que estão no interior do referido “batelão”, não abdicam do conforto mínimo, cada vez mais mínimo, nos cafés, bares, quiosques e jantaradas, que, denominam, no contexto, de “Amor Secreto”, onde predomina, sobretudo, uma receita feita à base de búzios, banana ou fruta-pão e muito álcool.
O sentimento reinante aí é o de comer e beber, quando for possível, e esperar por um sinal divino que salve o “batelão” do afundamento previsto.
Estes passageiros já perderam, completamente, a esperança na própria estrutura do “batelão” e sabem que, mais tarde ou mais cedo, o mesmo vai mesmo afundar. Onde não há esperança nem luz não pode haver futuro, pensam eles!
Não podendo saltar do “batelão” em direcção a outras paragens onde pudessem sentir mais confortáveis e, sobretudo, respeitados pelos donos do “batelão”, estas pessoas preferem aliviar os sintomas de frustração e depressão, enquanto o mesmo afunda, com esta forma singular de confraternização.
Ocupam, preferencialmente, todo o porão do “batelão” e a linguagem que utilizam é, na maior parte das vezes, impercetível para outras classes de passageiros da referida viagem, estando sujeitos, num espaço cada vez mais minúsculo para tanta gente e sem cuidados mínimos de higiene e segurança, aos efeitos de todo o tipo de doenças provocadas por variadíssimos vectores.
Ontem era a malária! Hoje, o que mais mata no batelão, é a dengue. Os donos do batelão fingem que não sabem de nada e até, nalguns casos, para aldrabar as estatísticas sobre o impacto destes vectores nesta classe de passageiros, atiram algumas vítimas para o mar para que os outros passageiros tenham um pouco mais de conforto na viagem que começou há 47 anos.
Os passageiros de segunda classe, predominantemente constituídos por avençados dos que, até hoje, andam a comandar o “batelão”, passam a vida, durante toda a viagem, obcecados na tarefa de disseminação da ignorância com o objetivo de fazer divertir os passageiros de terceira classe, tendo como referência o conteúdo da carta de missão que vão recebendo dos donos do “batelão” que está a afundar.
Vão sobrevivendo, viagem após viagem, neste jogo, momentaneamente mais tecnológico, ora mudando de pele como a cobra preta ora transformando-se em “bufados” e apregoando dislates em torno da suposta resistência do “batelão”, consoante as circunstâncias e as ondulações do mar.
Na qualidade de passageiros de segunda classe, comem um pouco melhor e, até, vão variando de ementa, que inclui coxas de frango, barriga de peixe andala com banana e, até, algum vinho carrascão importado, tendo em conta os víveres que vão chegando ao “batelão”, esporadicamente, e é sagradamente dividido entre os passageiros da primeira classe sendo as migalhas destinadas aos de segunda.
É, também, por isso, que a guerrilha e, no limite, os comportamentos, potencialmente suicidas, de género kamikaze, é mais comum nos passageiros de segunda classe, que estão no interior do referido “batelão”, porque é aí que a competição, desprovida de bom senso, é mais aguda.
E, por incrível que pareça, são os passageiros de segunda classe, por ignorância ou um estado de negação permanente, os que acreditam que o “batelão” nunca afundará, embora todos os dias a sua estrutura caótica dá sinais de vulnerabilidade indisfarçável, com rachaduras visíveis que provocam a entrada de água no porão e mais danos provoca aos passageiros de terceira classe.
São estes, passageiros de terceira classe, contudo, mais expostos aos estragos e consequências decorrente de entrada de muita água no “batelão” que, incansavelmente, com artefactos pouco adequados, tiram-na, aqui e acolá, do interior do “batelão”, permitindo, desta forma, que o mesmo continue a desafiar todas as leis da física e permaneça, ainda, na sua viagem sem rumo, enquanto os passageiros da primeira classe e os donos do “batelão”, confortavelmente instalados nos seus camarotes, continuam a prometer a todos os passageiros que a viagem terá um final feliz, apesar de, como afirmam, não saberem qual é.
Como qualquer bom charlatão, os donos do “batelão”, para dar resposta aos desafios dos tempos modernos e responderem às frustrações e problemas dos passageiros da terceira classe, evoluíram na receita que aplicam e saltaram, rapidamente, tendo em conta os seus dotes de exímios curandeiros, de mezinhas, ervas, usos de plantas e outros rituais tradicionais, muito usuais no interior do “batelão”, com efeito localizado e pessoal, para demonstrações milagrosas espectaculares com objetivos mais abrangentes para acabar com as referidas frustrações e problemas, de uma só vez, coisa que não conseguiram fazer durante os últimos 47 anos. Por isso, as promessas, no interior do “batelão” ganharam, nos últimos tempos, contornos de autênticos milagres.
O “batelão”, contudo, apesar de todas as promessas, continua a dar sinais de que vai mesmo afundar e sem energia e uma grande rachadura no seu casco que permite que a água continue a entrar para o interior do mesmo, os passageiros de terceira classe dão sinal de exaustão, perante o desrespeito que sobre eles é dirigido há 47 anos.
Os donos do “batelão” prometem-lhes, contudo, a única receita que ainda pensam ter como trunfo para a continuação da viagem: o PETRÓLEO! Seria o cúmulo dos milagres. Contudo, temo que esta será a receita para o que falta para o afundamento definitivo do “batelão”. Onde faltou o respeito e consideração, durante 47 anos, por parte daqueles que comandam o “batelão”, o PETRÓLEO não pode ser a receita para a restauração da autoridade e esperança. Será, quando muito, a receita para a desgraça!
A viagem sem rumo continua! Que venham mais 47 anos.
Adelino Cardoso Cassandra
11/07/2022
JVA
12 de Julho de 2022 at 5:20
Excelente abordagem da atual situação em que se encontra São Tomé e Príncipe. Faltou dizer que os donos do batelão e os passageiros de primeira classe já têm fuga programado, com resgate via aérea para a Europa, quando o batelão se afundar!
Sem assunto
12 de Julho de 2022 at 5:35
Incroyable! Mais não se podia dizer dos 47 anos do reinado dos santomemses marcado pelo empenho máximo rumo a sua auto-flagelação.
Ousadamente acrescentaria de que os donos do “batelão” alternan e simulam animosidade entre si, todavia os modus operandi de gerência é sempre o mesmo: Improviso na governação e saque relâmpago de qualquer fundo coletivo que chega de doações, até porque são preguicosos e inertes, logo não produzem nada, para a melhoria da condição coletiva de “batelão”.
Célio
12 de Julho de 2022 at 8:09
À meu ver o batelão já tem água para além da metade e vai mesmo afundar e os donos já sabem disso.
XYZ
12 de Julho de 2022 at 8:40
Chatice da viagem. Senhor Cassandra, muito obrigado pela sua lucidez. É assim que os homens matam os sonhos de uma nação e de um povo.
Chicão da Mina
12 de Julho de 2022 at 11:39
Caro Adelino Cardoso, essa viagem já era. O pessoal já está com água pelo pescoço, os de segunda classe, porque os de terceira há muito que deixaram de respirar. Agora pergunto: quem nos enfiou nesta viagem? Quem nos ofereceu os bilhetes? Gente ainda há esperança! É mandar os donos do batelão pela borda fora e chamar de novo aqueles que nós expulsámos há 47 anos.
Sem assunto
12 de Julho de 2022 at 14:18
Não Chicão da Mina. Este problema é nosso, de modo que somos nós que devemos resolve los. Um coisa é certa, temos que ter muito sangue frio para identificar expulsar mos, sim, os da primeira classe que tudo comem e sugam como se fossem os únicos na viajem.
Entre eles estão muitos de nós, dos nossos parentes, vizinhos e amigos, coragem falta nos para enfrenta los.
Os colonos de volta nunca mais!
WXYZ
13 de Julho de 2022 at 1:53
Quem viu esse batelão desde o tempo de Lima e Gama mais tarde Eduardo Castela. E quem o vê agora cheio de àgua e à deriva.
Pascoal Carvalho
28 de Julho de 2022 at 12:19
Pena ser um batelão tão novo e tão velho ao mesmo tempo, em que quanto mais sábios são os seus tripulantes, mais a deriva ele navega.
Enfim, vamos crer que um dia ele se norteia, e que das águas turvas, profundas e agitadas possamos encontrar porto seguro para atracar e águas mais calmas e rasas para navegar.