Por: Amaro Couto

A narrativa histórica assinala o poder político em São Tomé e Príncipe a partir da colonização. Anteriormente a isso, é necessário desenvolver um outro esforço narrativo para que o que existiu seja revelado. Com esta reserva, constata-se que o poder político em STP vai-se adaptando em função das circunstâncias que a marcha do tempo determina. As adaptações resultam em modificações do modelo de organização política no decorrer do tempo. Essas modificações não são globais. Pois, asseguram a conservação de uma constante, que permanece.
É na sua forma que o poder político se tem adaptado ou modificado. Assim acontece por razões que são geradas pelas forças que asseguram a execução desse poder, forças resolutas que, em certas ocasiões, até aprofundam a sua firmeza, pelo que a adaptação se limita, não pondo em causa a essência do poder, na origem dessas forças em reproduções constantes.
A forma do poder não emergiu de fonte própria, ou seja, não eclodiu da própria terra, mas foi transportada do exterior e, desde então, assim se mantém. Os clamores, na verdade isolados, para a sua mudança não são ouvidos e acabam no insucesso.
Foram mais de quinhentos anos de poder colonial, durante os quais a liberdade foi progressivamente restringida, com a ética da lei sempre em perdição. No final, o poder e a forma em que se assentava acabaram por desfalecer e sucumbir por estarem em contradição com os valores genuínos da terra. Seguiram-se quinze anos de miscelânea entre a sedução de um intervencionismo proveniente de um dos polos marcadores da fronteira política a nível mundial e a tentação de um liberalismo que ia sendo imposto por outro polo do outro lado da mesma fronteira. Do confronto, o liberalismo e a sua forma acabaram por se impor.
Com o declínio do intervencionismo houve uma nova adaptação da forma do poder. Deixou-se levar pela sedução da mensagem pregada pelo liberalismo triunfante e convenceu-se de que a forma do poder que o sustenta é natural. O liberalismo foi portador dos valores que lhe foram determinados e de organizações defensoras desses valores, dando lugar a emergência da chamada sociedade civil. Esta atua sem a necessidade de uma orientação autoritária expressa, bastando o financiamento da fonte donde tal financiamento provém, o que acontece uma vez cumpridos os requisitos que o financiador estabelece. Os valores do liberalismo, em particular o interesse individual, viram-se protegidos, sustentados e endeusados e, assim, puderam penetrar nos partidos políticos, invadir o poder político e disseminar-se na sociedade.
Há de se diferenciar o poder, produtor da autoridade, da sua forma, o involucro onde o poder se instala. Este estabelece-se por uma sucessão de restrições no fito de justificar a impossibilidade do exercício do poder pelo povo, permitindo que o poder seja o produto apenas de determinados tipos de atores.
São múltiplas as restrições que se elevam ao longo do processo para a criação da forma do poder. Pois, importa que na forma criada se ajuste um certo tipo de poder. É este tipo de poder que vai moldando a forma do poder. As restrições são materiais e comportamentais.
A materialidade das restrições exprime-se de diversas maneiras. Desde logo instituíram-se a eleição, a representação, o mandato, tudo pelo voto maioritário num ambiente preenchido por partidos políticos, forças pretendidamente intermediárias entre o povo e o poder, mas na origem sem o vínculo com o povo. A conjugação destes fatores demonstra uma das duas ou mesmo as duas: o afastamento do povo do poder ou a retirada do poder ao povo.
O povo é definido por exclusão daqueles que não se enquadram nos requisitos estabelecidos, ou seja, os menores de dezoito anos e os que não estão inscritos nos cadernos eleitorais. Estes perdem a voz e as suas vontades, como as dos que podem votar e não votam, são descartadas na designação dos representantes e na atribuição dos mandatos.
O negócio interveio no processo e passou a ditar o relacionamento comportamental dos candidatos com os eleitores e vice-versa. O processo tornou-se incontrolado e a intransparência da situação agravou-se devido a sucessão de desvios as leis que gera, leis produzidas pelo poder, cujos desvios o poder ignora. Os elementos do negócio exprimem-se através de técnicas como a propaganda, a publicidade, o marketing, o design, a internet e até a inteligência artificial. Deixa-se de se concentrar na vontade do povo. A atenção centra-se exclusivamente naqueles mecanismos, eficazes para a imposição de comportamentos e de pensamentos uniformes em todos os elementos da coletividade. A ordem das coisas inverteu-se. Já não é o povo que impõe o comportamento ao poder, mas sim o contrário. A opinião das pessoas deixou de ser genuína e passou a ser induzida.
A crença coletiva instalou-se quanto a necessidade de dinheiro, e não mais na defesa dos interesses do povo, para se concorrer as eleições e para se instalar no poder. Uma vez lá, tornou-se legítima a corrida para a captação individual e partidária do dinheiro. A prática do banho generalizou-se, mostrando-se uma obrigação para os que procuram votos e uma expetativa para os que votam. O modelo endoutrinou as pessoas através da perversão que infetou a democracia, a cultura e as leis do país, transformando a coletividade em praticantes dessas perversões.
A partir daí, os órgãos públicos de comunicação social deixaram de admitir espaços para a liberdade de pensamento e o debate de opiniões, tornando-se instrumentos de divulgação de mensagens que moldam o comportamento das pessoas, assegurando a reprodução do modelo e impedindo a difusão de ideias que não sejam para a defesa dos interesses do poder público.
A eleição realizada e os representantes instalados no involucro do poder fica-se pela aparência do poder. É a seguir a isto que vem o poder real. É verdade que o poder real preexiste à aparência do poder, pois, terá animado todo o processo eleitoral, mas na camuflagem, sem se revelar naquela fase, seja no discurso, seja na ação, sobre o que é e o que pretende. Um jogo as escondidas que se justifica porque antes de revelar a natureza da roupagem que o veste, ser necessário instalar-se dentro da moldura do poder.
Interesses individuais, que tradicionalmente se manifestam de forma mais intensa no plano económico, esforçam-se por influenciar o processo eleitoral, passagem necessária para penetrar na esfera do poder político, acabando por lá entrar e transformar o poder político num instrumento para defesa dos seus interesses. Não foi um resultado ocasional, pois, a própria equação da lei deixa espaço para tal, sendo que derivou de cálculos feitos e estabelecidos a montante para acontecer e permanecer, no presente e no futuro. A partir daí, aplica-se o que o proverbio reporta, os fins justificam os meios.
Para a conservação do poder real, as tergiversações sobre a democracia têm livre curso, aproveitando as aberturas que a lei oferece para a composição de maiorias governamentais negociadas, sem o consentimento direto dos eleitores, o que traduz a retrocessão ou a diminuição do poder político do povo e a legitimidade da soberania do povo.
Passa a haver uma diferença entre o poder que se vê e a força que na verdade anima ou exerce o poder. Ilusiona-se com o que o modelo deixa transparecer: um poder ocupado por um partido maioritário determinado pelos eleitores ou uma coligação de partidos forjada de uma maioria fora da vontade direta dos eleitores. A animação do poder não resulta dessa equação tão simples. Não será a maioria instalada no poder que exercerá o poder, mas sim as vontades daqueles que a movimentam e que atuam com antecipação, desde a fase do processo eleitoral e mesmo antes, na preparação para tal processo, apesar de nesse percurso ficarem invisibilizados pelos efeitos do escudo partidário com que se envolvem. Os interesses que defendem traduzem-se em síntese dos deles e de tantos outros, acomodados em todos os partidos, que, sem prestarem apoio visível ao exercício do poder, o defendem de forma por vezes até simplesmente tácita, mas sempre objetiva.
Determinados a beneficiar exclusivamente do modelo, os detentores do poder não cedem no controlo do seu funcionamento, considerando qualquer contrariedade às suas pretensões, mesmo quando emergida de uma simples crítica, como um mal a combater.
Observa-se um conformismo coletivo devido ao juízo insuficiente de cada um sobre a realidade do modelo instalado e dos resultados que daí se geram. A oposição ao modelo e aos seus resultados perde-se e não se faz sentir porque as pretensões do modelo se disseminam na coletividade, levando a que até os pensamentos críticos acabem por se acomodar, transformando as suas vozes em contributos para o aperfeiçoamento do funcionamento do modelo e não para o contrapor.
O ponto de ligação entre o poder e o povo desapareceu e, por conseguinte, o próprio modelo transformou-se num produtor constante de crises, desde logo pela clivagem que ressalta da aplicação manifestamente desviante do que estabelece a legislação criada. Que se mude a maioria parlamentar, que se altere o partido dominante no involucro do poder, o povo permanece afastado do comando do poder. Das duas uma: ou se rejeita o modelo, ou se o admite com o risco de o ver se aperfeiçoando ao ponto de passar a traduzir em lei as violações que na prática se vive.
Optar pelo segundo termo desta alternativa é admitir a perenidade do modelo. Como tudo na vida, nada é mais natural, considerando as contrariedades que persistem e se movimentam na sociedade, que os modelos, mesmo os mais bem elaborados, fiquem sujeitos aos efeitos do tempo, e se vejam inevitavelmente desgastados, modificados e até substituídos. Se emergir da sociedade a reivindicação para a reposição do elo que deve existir entre o povo e o poder, necessário para que se estabeleça a democracia, ou seja, o poder do povo, e a imposição da lisura nos procedimentos, essencial para a conservação da democracia, poderá iniciar o processo de questionamento do modelo.
A transição para um novo modelo não ocorrerá de uma só vez. Será progressiva, não pelo tempo curto, mas pelo tempo longo, por meio de reformas sucessivas até que, de reforma em reforma, a natureza do modelo seja alterada. Assim, sem turbilhões sociais, ou seja, no âmbito de um processo de reformas pacíficas, sem conflitualidades, associando as diferentes componentes sociais, será alcançado o ponto de equilíbrio, o estádio onde todos se sintam bem, cada um com os seus interesses satisfeitos.
Cada reforma englobaria em si a estabilidade do que é, abrindo, ao mesmo tempo, o caminho para a nova perspetiva, para que no futuro os interesses políticos e sociais possam em conjunto projetar cada vez mais o país na prosperidade. O importante é a lucidez para discernir devidamente o pretendido e fixar-se na determinação para o alcançar.
A reforma, enquanto solução para os problemas políticos, económicos e sociais do país, deve ser guiada na paz e estabilidade, devendo ser devidamente calculada para que cada reforma não vá além do necessário, condição para que se evitem excessos e para que os reformadores não sejam vistos em opositores da razão ou geradores de conflitos, situações que podem justificar reações em forma de represálias.
O elemento central para a eficácia do conjunto das reformas é o exercício direto ou indireto do poder pelo povo, para revogar, mediante procedimentos previamente estabelecidos, os mandatos dos eleitos quando os eleitores respetivos pressentirem que o cumprimento desses mandatos está comprometido.
O controlo efetivo dos eleitores sobre os eleitos justificaria a realização de outras reformas que evacuem do modelo determinadas eleições tornadas desnecessárias ou inoportunas, como a eleição direta do Presidente da República. Inversamente, o mesmo controlo, poderá inspirar o alargamento da prática de consultas dos eleitores para consolidar o hábito de intervenção das populações na governação. Esta é a condição para que o povo se apodere, diretamente e indiretamente, da norma, sua elaboração e seu controlo.
A representação do povo estando constituída com a composição da Assembleia Nacional, não mais importará outra eleição direta do tipo nacional. A eleição do Presidente da República passaria a ocorrer por um voto secreto no âmbito da Assembleia Nacional, podendo as pessoas dos candidatos serem apresentadas pelos Grupos Parlamentares na reunião agendada para a eleição do Presidente da República.
Ao corpo eleitoral dos deputados ajuntar-se-iam os membros das Assembleias Distritais e Regional para que sejam tidas em conta as opiniões das populações de cada um Distritos e da Região e até porque cada uma dessas populações se mostra com sensibilidade específica. Para que a pessoa eleita congregue a mais ampla vontade dos representantes do povo, um voto favorável de dois terços do corpo eleitoral seria necessário, podendo o voto decorrer de um número não limitado de voltas até que a maioria requerida seja alcançada.
A função principal do Presidente da República estaria orientada para a estabilidade política e social do país, pelo que o seu mandato cobriria um espaço temporal muito mais alargado do que o da Assembleia Nacional e do Governo, requerendo que a idade do Presidente da República eleito não seja inferior à da idade estabelecida para a aposentação, comprovando isto a experiência política e a experiência de vida acumuladas.
A expressão da vontade popular sobre os assuntos da governação não deve, em circunstância alguma, estar limitada. Também não deve depender unicamente da vontade do poder, devendo igualmente resultar da iniciativa das populações. O que está em causa é a necessidade de o poder estar sujeito à soberania do povo. Pelo caráter singular que tem, tal soberania deve ser permanentemente defendida, sem a concorrência de qualquer outro poder. Há de se conviver com o poder albergando larga abertura no espaço legislativo com vista a penetração ilimitada da vontade popular para determinar o sentido à norma, começando pela norma constitucional, revivendo-se o feito referendário para a validação da Constituição de 1990.
É igualmente necessário admitir que um determinado número de eleitores, distribuídos pelos diferentes Distritos e pela Região, tenha o direito de suscitar a submissão ao referendo de qualquer lei, acordo ou contrato interno e internacional. O que importa é inverter o uso redutor que, na prática, tem sido feito da norma, de modo que de instrumento para o benefício exclusivo do poder passe a ser um ato legitimante do exercício do poder pelo povo, para a defesa dos interesses que o povo tenha por oportunos.
