Xavier Muñoz-Torrent, geógrafo
Sempre lá num cantinho, pois ela nunca queria incomodar. Não falava para não ofender. Há tempo que se sentia velha, os anos pesavam como lousas, mas, mais que os anos, a história. Uma história calada, marcada por uma longa e tortuosa viagem que agora acabou para ela, mas que nunca lhe foi reconhecida.
Fazia tempo que tinha traspassado o matriarcado às mãos da Terezinha, a filha mais vigorosa, a mais forte. Mas ela, dona Inês, com a sua tenra leveza, ficava como garante demonstrativa da integridade da família, que, a pesar de todos os sofrimentos e as pancadas, das lutas perdidas, das impotências, dos abusos, das desilusões e abandonos dos homens que entraram e saíram da sua vida, estava lá a manter sempre a sua responsabilidade de mãe e de avó.
Mulher silenciosa, quase inexpressiva, olhar afundado e glauco na penumbra, lenço na cabeça, parecia que não estava, mas sempre se podia sentir a sua presença, como um abraço perene que acolchoava os anseios e tristezas, e também as alegrias dos membros todos da família. Era exemplo de fortaleza, de duro trabalho abnegado, de discrição e de dignidade de mulher frente a todas as adversidades. Não falava, fazia.
Ela veio de São Vicente, barloventada, quando talvez ainda não tivesse 20 anos de idade, porque lá, naqueles tempos de seca, gente estava a morrer de fome. E veio magrinha, de barco, com uma criança às costas, quebrando pretéritas sodades, esperançando futuro.Contrato de quatro anos para Santa Margarida e Vista Alegre, depois para Uba-Budo. Carregava a criança dia e noite, pois lá não tinha creche; a levava mesmo ao serviço, nas duras tarefas nos cacauzais, trás longas caminhadas, mesmo se chovia ou fazia calor, porque, se não trabalhava, não cobrava nem comia. Inevitável foi que a criança morresse de pneumonia.
Além disso, depois sobreviveu –tragédia para uma mãe- a outras três filhas adultas, das quais teve que tomar conta dos netos órfãos, para quem (para eles só) guardou os seus únicos sorrisos e as suas escassas palavras. E morreu de pé, sem incomodar ninguém, na solidão da sua habitação na sanzala. Em paz com a gente e com os tempos que corriam mais do que ela podia compreender.
Para mim apenas aquela mão tendida com a que no apertar expressava tudo… como quem fala “nada a esperar da vida, meu caro, mas todo o bom sempre será bem-vindo. Mais vale não esperar, senão vê-las vir”.
Lembro muito dela no nosso último encontro, sentada na porta da sua habitação, trabalhando ainda com um pilão de milho. A velhice apertava, mas não tinha conseguido dobrar as suas costas, as mais rijas da roça, as mais fortes, as que suportariam tudo.
As que mesmo ainda levantariam paixões nalguns membros da comunidade, aqueles que decerto lembravam-se dela na sua mocidade, e aos que rejeitava, pensando que apenas a loucura explicava um comportamento assim. Foi o velho Mendes quem declarava-se permanentemente o seu admirador secreto, e quem tratava de transmitir-lhe, por todos os meios (também através de mim), o que ela sabia há já muito tempo, de sempre.
É foi, nessa altura, no 2011, quando já se estavam a levantar vozes doutas para a recuperação desse patrimônio esquecido das roças de São Tomé, que a minha “família”, a de Uba-Budo, comunicou-me a morte de dona Inês.
Mas é agora que, despois que se tenham afundado ainda mais edifícios emblemáticos das roças, quando algumas boas intenções se mexem sobre a preservação da sua arquitetura, seria muito injusto esquecer-nos dos autênticos protagonistas, das almas que vivificaram essa cultura, essa economia, aqueles espaços de produção, de comunidade com tanto suor e sofrimento, mas inspirando também tantas paixões.
À recuperação do patrimônio físico, arquitetônico, precisa-se juntar a memória histórica de cada lugar, mas a memória das pessoas concretas que lhes deram vida. E dona Inês foi uma dessas forças vivificantes e abnegadas, daqueles glóbulos vermelhos do sangue da plantação, puro nervo, até o seu enérgico batido final, até o seu último fôlego; até essa última morna, até o seu último desejo.
Tcholdenta
29 de Dezembro de 2014 at 19:32
Grande Mulher!!! Eis a mulher com todo o seu ESPLENDOR, não submetida aos homens “…tomenses”, que escravizam as mulheres,servindo delas apenas para cozinha , cama + educar filhos. Mesmo para os ditos intelectuais, os pretendidos progressistas “de boca pra fora” …enfim, que reflitam !
Mualas, tomem o exemplo desta Mulher com “M”. Gostei do artigo: valorizar MULHER. Que assim seja, doravante, para todas as mulheres…Feliz e Bom Ano com + mulheres no governo, caro muçulmano Ali e Patrice Bongo – Trovoada. Adelante!
HELDER SANTOS LIMA
29 de Dezembro de 2014 at 22:28
Sim completamente concordo com essas sabias palavras escritas, nao se pode descrever a historia arquitetonica de um Pais, sem falar das grandes personalidades que deram vida a essa memoria historica, pois a solides , cultural, social, infrestrutural e mesmo politica the um Pais e feito dessas pessoas simple,sofridas, trabalhadoras e de uma alma doce.
Nuno Prazeres
30 de Dezembro de 2014 at 10:41
Meu caro amigo Xavier, é com muita honra que e primeira mão partilhaste esta rica história, pois é a partir dela que vamos a procura das nossas identidades, das nossas verdadeiras raízes, que vamos descobrir um caminho do progresso da cidadania, da convergência, do amor do patriotismo, enfim da irmandade, de tudo que foi que é, e continuara a construir a base do nosso alicerce, e com com muita satisfação que parabolizo-te pelo apoio incondicional que tens dado a este povo a esta gente das ilhas maravilhosas, gentes com muito amor no coração, que no meu ponto de vista só precisa de um mãozinha do estado, STP, é um pais viável, portanto acredito que com politica certa em 4 anos teremos arrumado a nossa casa e o futuro então almejado por todos, BEM HAJA MEU CARO AMIGO BEM HAJA A TODOS OS SANTOMENSES………..
Xavier
30 de Dezembro de 2014 at 18:02
Obrigado Nuno. Escrivi o que verdadeiramente sentí por dona Inês, para mim espelho da roça e da dignidade eda mulher santomense!
Modéstia
30 de Dezembro de 2014 at 12:25
Assim se vão as pessoas e os monumentos das antigas roças. Mais triste ainda são as pessoas que deram seu sangue e hoje está as moscas( os cabo-verdianos, Angolanos e Moçambicanos)e pouco se faz para os mesmos. Estão como barras de gelo ao sol se descongelando aos poucos sem que nada seja em prol deles, que dor……….
GINA COSTA
3 de Janeiro de 2015 at 9:33
Finalmente as mulheres Santomenses estão a ser valorizadas, PELOS BANDO DE CORRUPTOS. Espero que elas desempenham cargos relevantes na Constituição política de forma a erguer estas ilhas maaravilhosas.
GINA COSTA
Nely Lisboa da silva
10 de Dezembro de 2016 at 18:25
Muito abrigado amigo
Tenho muito orgulho de ser a 1 primeira nets dela