Xavier Muñoz-Torrent, geógrafo
Contos ao redor de um candeeiro tênue num quarto na senzala. Os velhos riem e discutem mesmo aos berros. Há um deles que lembra histórias e as memórias pouco a pouco se impõem à gritaria. Os jovens e as crianças a escutar atentos, que a noite já é fechada. Fora, no terreiro, chuva forte e lama. Convém ficar. As pálpebras vão descendo suavemente, mas não posso ir a dormir ante o que se iniciou na sobremesa. É o eco da tradição, de estórias de muito longe, com raízes que se perdem nas recônditas profundidades dos matagais do Congo. Na minha cabeça já atroam tantãs longínquos e exóticos, como quem entra em transe e vai seguindo vozes além da escuridão. Mas estou lá, na penumbra da cena, integrando um coro de leigos ouvintes que esperam tirar emoções dessa teatralizada expectação.
De olhos bem abertos, enchidos de sangue, o avô Cajú, em exagerada transposição esotérica, após um golo rápido (e outro, e outro…; parece que tem muita sede), de garganta roída pela cacharamba e o grogue, nos fala muito sério, e assente repetidas vezes com a cabeça observando cada um dos nossos rostos. Assinala-nos com o seu dedo retorcido: “Eis, agora, a lenda dos “gugú”, os gênios anãos do bosque que se associam com a fortuna. Vem do mais profundo do mato, onde as árvores e o bambu formam já erguidas catedrais. De apanhar um deles e mantê-lo dentro de casa, vá trazer à família riqueza material e felicidade por tempo indefinido. Dinheiro, poder, muito poder…”. A crença é tão vivida que quando alguém tem a sorte no material ou profissional, as gentes do lugar falam que aquele “tem gugú na casa” ou que “dorme com gugú”. E o gugú tem a tendência a escapar –claro!- e por isso é preciso fechá-lo dentro, quase encarcerá-lo (alguns o encerram dentro de um quarto especial), mas mantendo-o bem contente fora do contato com mais ninguém; alimentando-o muito bem, pois se é assim o efeito pode-se multiplicar. Se o gugú vá embora, perde-se a certeza da boa sorte, e, se morre, o efeito pode ser totalmente o contrário, nefasto…
Tratava o avô Cajú, em essência, de enaltecer aquilo pequeno e vivaz, tão pequeno que era fácil guardá-lo em secreto. Falava quase de um guardião da consciência social que se associa à seguridade, o autodomínio,… que invita talvez a um sorriso sobre algo que faz sentir satisfação, no sentido que, diante a sua presença, pequena, domesticável, bondosa, engraçada, divertida, mesmo atrevida e grotesca… a posição do possuidor é sempre superior. Mas, ao mesmo tempo, para sê-lo, lhe é preciso tê-lo lá e ao seu cuidado, bem pertinho. É a coisa da relativa comparação: “Nenhum grande o é se não há outros mais pequenos”. Pequeno e engraçado, tanto no sentido de graça de agradar como de graça de prêmio: é um binômio que guarda tradicionalmente uma boa e necessária correlação.
No entanto, as tradições sobre proteção pela presença de seres miúdos ou anãos, que mesmo removem consciências, se remontam às origens dos tempos; mas é em África onde tiram uma relevância que vá muito mais longe, convertendo-o mesmo num elemento principal das tradições ou da religião. A veneração pelos seres pequenos dos povos das regiões úmidas (bosques chuvosos) se remonta ao descobrimento dos chamados “dançantes de Deus”: os pigmeus.
Tento associar automaticamente essa lenda com a realidade documentada, enquanto Cajú prossegue em paralelo com a sua amimada fala.
Aos pigmeus se lhes considera entre os povos mais antigos do mundo. Eles chamam-se a si próprios “mambuti” ou “efe”. Aparecem documentados ao redor do 2200 a.C., já na biografia de Harkhuf, governador de Elefantina, província egípcia, quando narra que no contato com o reino de Iam (que depois se tem identificado com o mítico reino de Kush ou Kerma), o rei (ou rainha) daquelas terras lhe ofereceu para o faraó, aparte doutros prezados presentes, “um pigmeu da terra dos habitantes do horizonte”. A chegada daquele curioso presente aos domínios do faraó fez que, quase de imediato, os pigmeus se convertessem em objetos de culto e demanda, ao considerar-se com as suas manifestações culturais, especialmente as suas engraçadas danças e os harmoniosos cantos, como portadores das mensagens dos deuses.
De fato, em posteriores expedições ao sul do Império, na linha das regiões florestadas, os egípcios consideraram o comércio daquelas pessoas tão interessante como o foi o das essências ou dos metais preciosos. Foram os egípcios quem os chamaram assim, “dançantes de deus”, criando a partir da sua origem selvagem e da sua escassa talha, lendas fantásticas, entre as quais as que os identificavam com a origem ao culto ao deus Bes, uma das mais antigas deidades do panteão egípcio. Ter esses anãos em casa, além de ser um elemento para mostrar riqueza, prestigio, graça ou gosto pelo exótico, se considerava como um elemento que havia de trazer saúde e fortuna, harmonia ao lar, e, por tanto, assegurar a felicidade. Efetivamente, é idêntica crença à que acompanha aos mágicos gugú são-tomenses. Coincidência de mais.
Com tudo, apesar de não estar provado que haja uma relação direta entre o conhecimento da existência dos pigmeus e a adoração a Bes, fica claro que aquela deidade prove de tradições sudanesas e a sua origem se tem que achar no antecedente mais africano da civilização egípcia. De fato, como se pode extrair dos tratados etnográficos ou de literatura especializada, Bes ou Bisu, na mitologia egípcia era um deus anão tão feio, descarado e ameaçador que aterrava mesmo aos maus espíritos e ao infortúnio. Era o protetor dos faraós e se considerava deus protetor das crianças, das mulheres trabalhadoras, das grávidas[1], do prazer da música e da dança, em definitiva das coisas boas da vida, e se identificava à frescura, à liberdade, à felicidade (as suas virtudes consistiam em afastar o mal). Era uma deidade tutelar do matrimônio e protetor por tanto da vida familiar, assim como do amor, incluídas as paixões sexuais, a gozação e os prazeres libertinos, de aí a sua profusa popularidade.
Figura do deus Bes nas ruinas do templo de Dendera, Egito.
Bes e Beset, Museu du Louvre, París, França |
Em forma de amuleto, Museu do Louvre |
A sua contraparte feminina é Beset, uma forma mais tardia desse deus. O seu nome aparece ligado a uma clara importação de Núbia, onde se pode identificar com diversas divindades, no entanto o seu nome é a palavra núbia para designar “gato”: “bese” ou “besa”, que literalmente significa “protetor”, e da que também se pode adivinhar a deidade Bastet, que também se associa com a proteção do lar.
Em arte se apresenta a Bes mostrando o pênis, com um nariz chato e às vezes sacando a língua, pernas curtas e arqueadas e algumas extremidades com formas felinas (freqüentemente coberto com uma pele de leão) ou pelo corporal, característica que reforçaria mais ainda esta hipótese [2] e a sua identificação com os gatos [3].
A ausência de templos ou sacerdotes especialmente dedicados a Bes dificulta o seguimento e o projetam às etapas mais antigas e escuras ou mesmo precursoras da civilização egípcia, assim como o situam num plano muito familiar como para considerá-lo o deus mais próximo à vida mundana, de forma que alguns autores o identificam com uma deidade menor ou apenas a um gênio benfeitor.
Conservaram-se máscaras com a sua efígie que se mostravam nos festivais. Com a ajuda de um tambor, afugentava os répteis e os insetos venenosos. Também abundam os amuletos protetores e se lhe pode encontrar representado nos repousa-cabeças das camas, pois repelia os gênios malignos que podiam atuar durante o sono. O seu culto passou aos fenícios e aos cipriotas, constituindo o antecedente mais claro a deidades greco-romanas relacionadas com a diversão e os prazeres, como Dionisos ou Baco.
A associação de Bes com os pigmeus aparece quando nos documentos egípcios se lhe identifica com o presente do “Senhor de Punt” ou “Senhor de Núbia”, já desde a época do Antigo Reino. Por tanto não é nada disparatado pensar que o deus prove da região dos Grandes Lagos e muito em especial dos povos pigmeus twa, situados no atual Congo ou Ruanda, constituindo representações a escala daquelas etnias primitivas. É obvio que a sua apresentação diferente às outras deidades nos permite intuir uma origem marcadamente distinta, mais antiga do uso dos padrões frentistas nos arquetípicos relevos da arte egípcia mais difundida.
Os pigmeus conformam povos caçadores-coletores que vivem na profundidade das selvas equatoriais e se caracterizam pela sua baixa estatura (os homens medem menos de 1,50 m de meia). Encontram-se disseminados por toda África Central e em muito menor número no sudeste de Ásia (Ilhas Andamão). Os grupos mais estudados são os mbuti, na selva Ituri, na República democrática do Congo, que o foram como tema central das singulares investigações de Colin Turnbull [4]. Também há os aka, baka, binga, efé e twa. Está-se a crer também que poderia haver ligações entre estes povos e os antigos telem, estendidos pela Falha de Bandiagara (povos anteriores aos dogon), assim como, possivelmente, com o bubis de Bioko. Trata-se, conseqüentemente, de uma das culturas mais antigas de África.
Caçam com redes e flechas todo tipo de bestas do bosque e também são coletores de frutas, tubérculos e mel. Praticam a troca com povos vizinhos e trabalham também para aqueles, dos quais alguns grupos têm adotado a língua. A pesar disso e da separação geográfica, existem algumas palavras comuns para todos os grupos pigmeus africanos, o qual indica uma mesma origem anterior. Uma de essas palavras é o nome do espírito da selva, Jengi, que se assimila à idéia de equilíbrio ecológico, ao sagrado espírito da Natura.
Pigmeus junto a um colono europeu (1921).
Fonte: Keystone View Company, in Collier’s New Encyclopedia, através de Wikipêdia.
Os pigmeus africanos foram particularmente conhecidos pela sua música vocal, caracterizada por cantos espontâneos, polifônicos, de denso contraponto e utilizando altos e baixos tonais. A música é parte necessária da sua vida diária, existindo canções e sons tanto para o lazer como para os acontecimentos rituais, ou mesmo para comunicação. Esta tradição vem de muito longe e deveu ser uma das características, além da talha, que mais atraíram a curiosidade e interesse da corte faraônica e, muito mais tarde, da etnografia colonial, para ter muito depois um reconhecimento na esfera do Patrimônio Imaterial da Humanidade [5].
A sua situação atual vá muito ligada à conservação dos bosques equatoriais, apesar de viver uma situação –como retrata o jornalista Javier Reverte no seu primeiro livro da sua trilogia africana- “na marginalidade absoluta, a aculturação e a dependência das esmolas de missões religiosas ou do que podem tirar dos turistas que pagam para vê-lhes dançar nus”[6]. Aquela seria uma faceta evidentemente contrária ao gugú da sorte que salientava o avô Cajú. No entanto, a desventura acompanha a África Central. Bes parece ter desaparecido, além do deserto, e os pigmeus já não são o que foram, apesar de que ainda despertam graça e que pronto serão objeto de ferias e circos, ou, desde uma visão acadêmica, tratados como seres em perigo de extinção, no quadro necessário de reservas naturais ou culturais, ou talvez motivos centrais de parques temáticos de interesse turístico.
Então não seria estranho, ligando-o com as lendas santomenses, que depois do tempo e da angústia do apressamento e maus tratos, quando um gugú escapa, deseje a vingança e concentre toda a sua fúria sobre o primeiro com quem se cruze na rua, metendo-lhe uma surra de mil demônios. Com certeza, é a raiva conteúda pela história, ou talvez apenas a Mãe Natura administrando justiça? “É então que são maus…”, como pontificava Cajú, entre essa mistura de admiração, incredulidade e sorrisos dos presentes. Com tudo, ninguém gostaria encontrar-se por acaso com a vingança de um gugú enraivado, nem com a fúria dos pigmeus mais hostis e mesmo antropófagos retratados tão longe da realidade nos antigos filmes de Tarzan, indissimuladamente etnocentristas.
De fato, a identificação dos gugús com Bes e com os pigmeus daria força a idéia que as lendas sempre trazem uma parte de verdade, ou derivam de uma realidade que aconteceu noutros tempos, que converteu-se em lenda pela transmissão oral, pelas exagerações ou pela conversão da história antiga em parte da magia dos povos.
Não sei se o nosso Bes local nos acompanha como o relato do velho Cajú ou nos observa escondido desde as capoeiras próximas, mas decerto aquela noite ninguém (nem a persistente chuva, nem as goteiras do teto) me tirou nada do sono. Com tudo, pela manhã demos um olhar ao mato próximo, para ver se a sorte nos tinha dado a oportunidade de apanhar um gugú ou a secreta companhia de qualquer pigmeu.
[1] Se fala que Bes ajudava a Taweret ou Tueris, a deusa hipopótamo, a deusa egípcia do rio; aquela que protege as embarcações e às grávidas, deusa da fertilidade. Alguns atutores também falam da relação amorosa direta entre essa deusa e Bes. Adorava-se nas comunidades obreiras da região de Tebas.
[2] Alguns investigadores modernos, como James Romano, demonstraram que nas suas representações mais antigas, Bes apresenta-se como um leão rampante, a apoiar-se sobre as pernas traseiras. Posteriormente esta imagem apareceria grosseiramente distorcida e humanizada em aquele gênio anão terrivelmente feio e obsceno, mostrando a língua e os seus genitais, de pernas arqueadas, mas ainda muito frequentemente mantendo as orelhas felinas ou uma cabeça de leão.
[3] Aos gatos também se os identifica com a proteção do lar, afugentando os roedores.
[4] Vid. TURNBULL, Colin, The Forest People, 1962.
[5]Os cantos polifônicos dos pigmeus aka de Centroáfrica foram inscritos em 2008 na Lista Representativa do Património Cultural Imaterial de la Humanidade (originalmente proclamado em 2003).
[6] Vid. REVERTE, Javier, El sueño de África. En busca de los mitos blancos del continente negro, Madrid, Alianza Ed., 1996.