Opinião

A Fogueira das Vaidades

Vivemos tempos difíceis, muitos difíceis, como tenho frequentemente alertado, neste jornal, em vários artigos de opinião, perante a indiferença, e, até, manifestações de escárnio e ataques pessoais, por parte das celebridades do costume, que, em nome da defesa dos seus superiores interesses e das suas clientelas, fizeram com que o país perdesse, definitivamente, o medo do ridículo e da chacota.

Na primeira república e após a abertura do referido regime (basta ler o famoso livro do Gerhard Seibert – Camaradas, Clientes e Compadres) muitos dos problemas que enfrentávamos, relacionados com a manifestação da crença na autoridade e confiança no progresso, não eram diferentes dos atuais, mas, todavia, naquela altura, existia algum pudor, por parte dos representantes e instituições do Estado, na exposição pública e impiedosa da mediocridade, da vulgaridade ou, até, da vaidade inconsequente e pueril, voluntária ou involuntariamente, como elementos de manifestação da luta pelo poder na nossa terra.

Para além disso, em aparente contradição com esta constatação, o país, naquela altura, tinha muitos menos quadros qualificados, na maior parte dos sectores de atividade e mesmo na estrutura do Estado.

Ou seja, ao mesmo tempo que, aparentemente, o esforço para a qualificação dos quadros nacionais foi sendo feito e o seu enquadramento, como garantia da normalização da vida e dinâmica das instituições do país, ao longo dos tempos, foi decorrendo, o país começou a viver numa espécie de “Fogueira das Vaidades”, com reflexos desastrosos na regularização da nossa vida em comunidade, cuja manifestação está relacionada com o desejo e luta pelo exercício do poder, nas suas mais variadas formas, no interior dos partidos políticos, nas instituições do Estado e, até, nas relações sociais mais básicas, caracterizador do estádio embrionário de um autêntico Estado falhado.

Esta “Fogueira das Vaidades” reflete, a montante, a expressão dos nossos maiores problemas relacionados com: a incapacidade do Estado providenciar a nossa segurança coletiva, a ordem e bem-estar das nossas populações; a inexistência de estruturas sólidas e eficazes para sustentar a nossa soberania jurídica e o nosso ciclo crónico de pobreza e miséria que nos transformou num Estado pedinte e incapaz de existir sem o apoio da ajuda internacional.

Para se salvar nesta autêntica selva em que se transformou o país foi preciso, por isso, a adoção de mecanismos de sobrevivência onde predominam a arrogância, a ganância, a soberba e, nalguns casos, o ódio e a ignorância, mascarados de um sentimento individual de grande valorização pessoal, que sirva para impressionar ou intimidar os pares, os adversários políticos ou a própria comunidade.

É esta a essência da nossa “Fogueira das Vaidades” que, cresce, todos os dias, como incêndios descontrolados, no interior do país quando, por exemplo:

assistimos, impávidos e serenos, às guerras resultantes da luta pelo poder, no contexto intra ou interpartidário, que obstaculiza a ação governativa e fragiliza o papel e funções do chefe do governo, transformando-o numa espécie de figura descartável no domínio da ação governativa;
diariamente, constatamos a existência da insubordinação nos quartéis militares e desrespeito institucional pelas hierarquias;

assistimos, com tom de crueldade inusual, à manifestação de fenómenos de justiça pelas próprias mãos, posteriormente exibido nas redes sociais, perante a passividade e indiferença das entidades estatais e júbilo popular, tendo, como pretexto, para tal, o facto do hipotético prevaricador ter roubado uma grade de cerveja;

constatamos que os partidos políticos se transformaram em palcos preferenciais de lutas constantes, com cenas de agressões físicas e intimidações, tendo como objetivo a defesa dos interesses privados, contaminando-se, posteriormente, o próprio Estado com todos os vícios e consequências deste propósito;

assistimos, com vergonha e temor, o Poder Judicial, cuja função é administrar a justiça, ou seja, aplicar o Direito e apreciar os casos com equidade, transformar-se, nalguns casos, em palcos de confrontos declarados de ódios, de iniquidades, de despotismo militante inter e intrajudicial e, até, em entidades que estão acima da própria lei;

vemos alguns jovens e, até adultos, nalguns casos sem quaisquer qualificações compatíveis, técnicas e/ou políticas, a reivindicarem cargos de Diretores de empresas, ministros ou similares, num registo de chantagem e ameaças, só pelo facto de terem participado na colagem de cartazes e/ou na mobilização popular em contextos específicos de campanhas eleitorais.

O problema, contudo, é que algumas pessoas, para não dizer a maioria das pessoas, começam a interiorizar a ideia de que esta cultura de “Fogueira das Vaidades”, predominante momentaneamente no exercício do poder político e nas relações sociais mais básicas na nossa terra, é necessária, senão imprescindível, para a transformação do país.

Temo, todavia, que tal facto, possa significar, ao contrário daquilo que estas pessoas pensam, os primeiros sinais ou marcas da entrada em declínio ou degenerescência do poder político na nossa terra, tipificador da falta de autenticidade deste mesmo poder, resultante da exposição lenta, a que todos estamos sujeitos, às labaredas de ódios, mediocridade e vaidades inócuas, que nos vai consumindo sem qualquer piedade.

Nunca, como agora, diariamente, em conversas informais entre Santomenses, nas ruas ou nas redes sociais, são postas em causa, as invocações de razões históricas, que comprometeram milhares de nacionais, no período anterior ou posterior ao 12 de julho de 1975, para a causa da independência nacional, em detrimento de qualquer outra alternativa política, menos radical, em associação com a administração colonial das ilhas.

Ou, ainda, nunca como agora, aqui e acolá, se constata, por parte de algumas pessoas, a defesa e proposta de eventual implementação de um regime político autoritário no país, como medida para a solução dos nossos atuais problemas.

Provavelmente, estaremos a viver, neste momento político específico da nossa história, uma grande aventura cega. Há muita gente inconfortável com aquilo que existe ou, mesmo,
desassombradamente contra aquilo que existe, e que não encontra respostas ou possibilidades de intervenção pessoal e/ou coletiva, no interior dos instrumentos de ação política e interventiva que existem, designadamente partidos políticos, por inadequações destes, para dar a sua colaboração em prol da produção de uma ordem, minimamente racional, que nos afaste desta “Fogueira das Vaidades”.

Continuando neste caminho, nos próximos tempos, não me admiraria nada, que, qualquer ato, mais ou menos pensado, com consequências nefastas, fará mover a “nação” libertando forças sobre as quais nenhum protagonista desta “Fogueira de Vaidades” terá qualquer domínio ou controlo. Não tenho a certeza ou presunção que tal será, necessariamente, mau!!

Adelino Cardoso Cassandra

18 Comments

18 Comments

  1. Manuel

    9 de Agosto de 2019 at 1:42

    Olá Adelino Cassandra, comungo da ideia, ou do sentimento de que permanecendo no atual caminho provavelmente libertar-se-ao forças que dificilmente serão controladas pelos protagonistas responsáveis, ou co-responsaveis pelo seu surgimento. Discordo dos eventuais benefícios para o país se tal facto vier a conhecer a luz do dia.

  2. Libreville

    9 de Agosto de 2019 at 8:15

    Esta “Fogueira das Vaidades” é a causa da desgovernação e o maior obstáculo no desenvolvimento do nosso São Tomé e Príncipe, temos que aceitar. Muitos só querem títulos, vida de luxo e desfrutar de pouco recurso que temos disponível. Não estão preocupados, e em muitos casos nem sabem Trabalhar para melhorar a qualidade de vida da população.

  3. antonio dias guadalupe

    9 de Agosto de 2019 at 8:20

    Meu caro esta é a verdadeira radiografia do estado são tomense. Meus parabens…o pior é que o governo e sociedade perseguem e tentam isolar os bons quadros para valorizar os medíocres…..Há muito ódio nesta terra….vemos isso quase todos os dias nos comportamentos das pessoas. Além disso, todos os bons valores desapareceram…..não há dúvidas de que estamos a caminhar para o abismo.

  4. Mau Demais

    9 de Agosto de 2019 at 8:25

    Que São Tomé Poderoso e Santo António protege este país.

  5. F.L

    9 de Agosto de 2019 at 9:19

    Não há mal que dura para sempre. Está na hora dos políticos deste país agirem senão eu não sei o que vai acontecer. Sai um governo e entra outro mas tudo continua na mesma. A única coisa que muda um bocadinho é o discurso.

  6. MIGBAI

    9 de Agosto de 2019 at 10:47

    Meu caro Adelino Cardoso Cassandra.
    É sempre com enorme prazer que leio as suas opiniões, bem forjadas e trabalhadas, por quem sabe realmente radiografar a sociedade nas suas vertentes.
    Não sabe nem imagina como admiro a sua escrita.
    Muito obrigado por me ter dado, tantos minutos de leitura e reflexão.
    Sabe que eu sou um lutador (que por enquanto, ainda se movimenta nas sombras)analisando a miséria em que o pais se tornou, para que um dia, acordemos e possamos exigir perante a comunidade internacional, a regionalização das ilhas talvez com Portugal, pais esse que nos deu e está a dar, o oxigénio necessário para ainda nos podermos considerar um país.
    Vivemos realmente numa “fogueira de vaidades” onde todos querem ser o que não são.
    Os próprios independentistas, quiseram ser reis neste quintal, e veja a miséria em que nos colocaram, tendo destruído tudo o se chama economia, saúde e história.
    Eu por diversas vezes quase que avancei em criar o Partido da Regionalização de São Tomé e Príncipe (PRSTP), e se ainda não o fiz, foi somente porque a saúde está-me a pregar umas partidas, que eu tenho que resolver primeiro, embora tenha já grande parte do programa escrito.
    Quando tiver a minha saúde em condições de lutar contra pintos, trovoadas e já agora contra um sujeito cassandra que me envergonhou como são-tomense ao homenagear os cães de cívica, vou partir mesmo para a luta, dando assim o meu contributo para apagar de vez com a “A Fogueira das Vaidades”.
    Estou e estarei na luta pela Regionalização, com todos os que se sintam verdadeiramente são-tomenses e que queiram estar ao meu lado a lutar por São Tomé e Príncipe.

    • Alberto de morais

      9 de Agosto de 2019 at 13:14

      Senhor
      Muito,muito dificil,se não impossivel
      Está demasiada gente *encostada*às benesses do orçamento
      Faz 4 anos nasceu uma filha minha no dito hospital chamado de referencia na capital SÃO TOMÉ
      Quem diariamente carregou a agua para os mais básicos cuidados?
      Eu o pai
      Entretanto agrava-se o estado de saude da crianca o que naquela *espelunca* chamada de hospital de referencia quer dizer morte
      Lutei para a salvar
      Foi-me vedada a entrada na dita pediatria daquela *espelunca* quando cabras e cães entravam serenamente .Depois de outros episódios que guardo para futuro registo foi a Embaixada de Portugal que me deu a saida pra criança ( e a vida )
      Hoje vive saudavel e feliz mas em Portugal
      Daí dizer senhor muito dificil

    • Vanplega

      12 de Agosto de 2019 at 9:34

      Outro ladrao

  7. Luxemburgue

    9 de Agosto de 2019 at 16:04

    Para os que, demagogicamente, querem entregar o país, a nacao, a Portugal… e bom eles ser coerentes e se presentar ja como alternativa, com nome proprio. Podem e devem iniciar as negociacoes, vamos todos rir muito, mesmo muito. Na democracia nao ha outro caminho. Para os que, demagógicamente, sujam a imagen do país com verdades a meias ou simples mentiras, saibam que engananse de caminho. A os outros, esses que brincam a “atirar a pedra e esconder a mao”, esses que anunciam que viram demonios e infernos e todas as calamidades e pragas da Biblia, a esses, aconsejar que levem a suas sectas para o monte das plegarias e orem pelo perdao dos pecados proprios. Para os de aqui, mulheres e homens, jovens e velhos que cotidianamente trabalhao, coragem para fazer melhor casa día e para caminhar com os seus na aventura da Vida.

  8. Renato Cardoso

    11 de Agosto de 2019 at 7:35

    A fotografia é real e apenas os falsos ingênuos são incapazes de compreender que caminha—se para o precipício e que os sinais de provável suicídio não são sonhos.
    Haverá chance de evitar o incêndio generalizado que a fogueira instalada pode provocar!?

  9. Romero Paredes

    12 de Agosto de 2019 at 12:30

    Partilho a minha experiência de ser santomense… enquando viver contarei a todos quanto me quiserem ouvir.

    fui pai de gémeos e, infelizmente, um dos meus filhos nasceu com complicações na porcaria do hospital de referência de STP. Diziam-me “algo não está bem, mas tenha esperança”; “não conseguimos descobrir o que é, mas reze” era o que me diziam enquanto a situação de saúde se agravava todos os dias até que o bebé deixou de se alimentar e respirava com dificuldade.
    O hospital não fez nada ou fez o que pode que foi NADA, ninguém quis saber da agonia meu filho, do meu desespero..
    Em boa hora decidi ir à Embaixada de Portugal pedir ajuda.
    Um obrigado emocionado a Sra Dona xxxx que ouvindo tudo o que eu tinha para dizer e não prometendo nada eu sei que muito fez. Se não fosse a senhora um santomense bébé teria morrido. Em 4 dias o meu pequeno chegou em Portugal na ala pediátrica do hospital de São João no Porto para ser operado.
    Agradeço terem salvo o meu pequeno, do fundo do coração, todo o apoio prestado e o carinho dos médico e enfermeiros. Do carinho e apoio psicológico que deram à minha mulher.

    Dinheiro nenhum no mundo pode pagar o que fizeram pela nossa família, um imenso obrigado a Portugal e aos profissionais de Portugal que acreditaram e ouviram o meu desespero.

    Um bem Haja

    Romero Paredes

    • Alberto de morais

      12 de Agosto de 2019 at 20:26

      Partilhei esse sentimento de total impotencia perante tanta ignorancia vaidade e insensiblidade absoluta de todo o pessoal do dito hospital de referencia,perante o sofrimento,primeiro de uma crianca e depois do sofrimento e indignação de uma familia.Senhores é tempo de dizer basta,parem com o genocidio silencioso praticado no dito hospital de referencia de São Tomé. Isto já não é uma questão de competencias ou condições.É uma questao civilizacional.Todos os dias temos noticias de mortes inesperadas e como tal brutais.Enquanto poder vou denunciar o drama intenso porque passam milhares de santomenses anonimos,humildes sem direito a defesa nem recursos para se salvarem a si ou aos seus.Também a mim a embaixada de Portugal me permitiu salvar a minha filha. Um publico obrigado

    • Felisberto

      13 de Agosto de 2019 at 13:09

      Como eu compreendo o senhor. Também passei por coisas parecidas naquele hospital. Só Deus é que salva as pessoas.

    • Felisberto

      13 de Agosto de 2019 at 13:11

      Pura verdade! É devastador constatar esta realidade que o país atravessa e que muitos dos seus filhos vão perdendo as suas vidas.

    • Ralph

      16 de Agosto de 2019 at 3:11

      Fico triste por ler a sua experiência, Romero Paredes. Embora não deva ser o caso, muitas vezes tem-se de levantar o alarme e trazer a notícia à atenção de alguem importante para acarretar uma resposta adequada. Infelizmente, o sistema tem deixado a funcionar como pretendido para muita gente, principalmente aqueles sem recursos, mesmo em países mais desenvolvidos. Você teve muita sorte mas para outros que não tenham as ligações corretas (ou a capacidade de trazer a atenção a quem possa efetuar algo), têm de sofrer e prescindir. É um assunto de dinheiro, sim, mas também de prioridades e de criar as instituições e os sistemas necessários para assegurar que a maioria de gente obtenha um desfecho bom. Como dizemos em inglês em situações como isto, quem faz o mais barulho obtem a mais atenção (e benefícios). Não deveria ser assim.

  10. Nanana

    13 de Agosto de 2019 at 8:33

    Obrigada ao meu compatriota Adelino por mais um artigo brilhante em conteúdo e forma.

    É pena que haverá muito poucos paus de lenha dessa fogueira da vaidade, capazes de entenderem, aceitarem e pensarem como tu.
    Falta-lhes muito:princípios, valores, humanismo, inteligência, visão, sentido de bem estar comum e por conseguinte de estado, essenciais para dirigir e governar.

    Só que nem tudo se aprende na escola…
    E já lá vai o tempo em que, para que se fosse sequer visita numa casa, tinha-se que saber de quem a pessoa era filho, neto e bisneto!
    Como isso era importante…

    Agora tudo e qualquer coisa serve para ser presidente, ministro, deputado, director, professor, funcionário público, juiz…
    O resultado está a vista!

    Uma crise de valores que dói, e umas ilhas desgovernadas, à deriva, cujo naufrágio será inevitável!

    Uma pena!
    STP, quem te viu e quem te vê!

  11. Felisberto

    13 de Agosto de 2019 at 13:08

    A situação no Hospital de facto é muito má. Não sei como querem desenvolver turismo assim deste jeito. Isto só pode ser brincadeira.

  12. Ralph

    16 de Agosto de 2019 at 2:50

    Sinto muito com a situação enfrentada pelos Santomenses. Porém, eu temo que a mesma coisa esteja a materializar-se em volta do mundo. Os problemas provavelemente sejam piores em STP, onde claramente se faltam dinheiro e oportunidades em comparação com outros países em que há condições melhores, mas os mesmos problemas, todavia, existem e persistem em todo o lado.

    Estamos a testemunhar um ambiente generalizado no qual se está a perder confiança nas instituições necessárias para governar e dirigir países. Estamos a perder a nossa fé em governos para fazer a coisa certa, em vez de fazer as coisas que convenham aos interesses que quem está no poder. Tudo isto está a realizar-se nos EUA (vejam o fenómeno Trump), no Reinu Unido (vejam o Brexit), no meu próprio país da Austrália, e em muitos outros. Em nações nas quais há muitos recursos para solucionar os problemas, parece que a confiança está a deteriorar-se. As bases da economia moderna, fundamentada na criação de crédito e a compra e venda de títulos por valores cada vez mais altos, em vez produzir bens e ser produtivo, estão a ser enfraquecidas.

    Talvez isto tenha estado sempre a ocorrer, mas, com o aumento drástico recente no espalhar de notícias através dos meios de comunicação, a situação parece estar a ficar cada vez mais grave. Não sei quais serão as soluções, mas será difícil para todos.

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