Opinião

Nós e o Continente

Por Amaro Couto

            A presente análise pretende-se centrada na geografia da África e nas influências exercidas para que as populações nela albergadas estejam distribuídas como estão. Projeta-se daí prospetar as relações possíveis entre diferentes categorias populacionais bem como interrogar sobre a natureza das mentalidades que no continente se verificam e sobre o processo de formação dessas mentalidades emergidas tanto das influências que acabaram por se instalar mantendo-se desassimiladas como da associação da genuinidade africana aos influxos que no interior dela vieram se exercer. Da constatação questiona-se sobre o posicionamento mais adequado de S. Tomé e Príncipe (STP) para a salvaguarda dos interesses do país e das suas populações no quadro das relações intra-africanas.

              Num planisfério reproduzindo o mundo na visão do Ocidente, a África está sempre no centro da reprodução.

Que se vire e se revire a carta de modo que a América ou a Ásia estejam ao Norte ou ao Sul e a Europa ao Oeste, ao Este ou ao Sul, a África permanece imutavelmente ao centro. Se se tem em conta as particularidades estabelecidas para a compreensão da Europa, numa divisão entre a Europa do Oeste, a Europa do Leste e a Europa Central, com a Alemanha na parte central revelando-se abrangente sobre o oriente e o ocidente europeus, divisão ofensiva para a continuidade territorial, inalterável, deste continente, do Atlântico ao Mar de Bering, seria caso para dizer que territorialmente a África e a Europa do Oeste são a continuidade uma da outra. A natureza não permite outra compreensão da realidade que ela oferece. Entre as duas entidades territoriais a proximidade é evidente, pois, ligadas por um braço do Mar Mediterrâneo numa curta distância de cerca de quinze quilómetros, apesar de as populações nas duas margens deste Mar resultarem de naturezas étnicas diferentes.

Projetando-se na geopolítica a análise ultrapassa o campo estritamente territorial e remete para as relações humanas tecidas nas duas margens do Mediterrâneo. A proximidade territorial gerou conflitualidades que prosseguem por certa perceção, produtora sistemática de interesses atomizados involucrados na avidez obstinada, que persiste na motivação da atuação europeia, em particular da parte ocidental da Europa.

Ao longo da evolução daquela perceção, houve penetrações, por caminhos imperiais, de dominação e de desprezos, adversos dos do equilíbrio, da igualdade, do entendimento e da paz, forjadas pela Europa para a exploração dos recursos africanos e a redução da África a um mercado de utilidade à mercantilização dos produtos das indústrias europeias. Vem daí a explicação da configuração dos participantes à Conferência de Berlim de 1884-1885, todos da Europa do Oeste, para a partilha da África entre eles.

Se as populações africanas ribeirinhas do Mediterrânea resistiram aos efeitos das fronteiras traçadas, a régua e esquadro, pelos conferencistas de Berlim, foi por serem, em toda a extensão dessa parte de África, um povo homogeneizado em torno de mesmas componentes cultural, religiosa e linguística.

Sobre a outra parte do continente a consequência dos traçados de Berlim foi desastrosa. Desfizeram reinos e impérios instalados. Pelas fronteiras impostas separaram populações unidas pela língua e a cultura e ajuntaram povos de línguas e culturas diferentes. A esta desgraça sobrepôs-se a da ditadura colonial com o seu cortejo de opressão e do que se chamou de trafico negreiro. Nestas condições a unidade cultural no interior dessas fronteiras torna-se duplamente incerta, questionando-se sobre a possibilidade de povos diferentes poderem, mesmo assentados no interior de mesmas fronteiras, forjar destinos comuns ou se esta perspetiva requereria a recomposição das fronteiras que inicialmente a colonização atacou e desfez, ou ainda, se para ultrapassar aquelas dúvidas, haveria de se imprimir um processo alargado e rápido de desenvolvimento para nutrir as populações de um mesmo sentimento patriótico, a imagem do papel que o sonho americano imprime no conjunto da população americana com componentes oriundas de horizontes diferentes.

Entre os dois grupos humanos de África, os da parte mediterrânea e os outros, a integração mostra-se difícil. Primeiramente pelos fatores históricos. A população assentada nas margens do Mediterrâneo aí chegou do exterior atravessando o Mar Vermelho e também colonizou esta parte do continente e viajou pela África difundindo a sua religião e demonstrando tiques imperiais e de dominação, que ainda hoje se verificam, por exemplo pela parceria em que participa favorecendo a extensão das fronteiras externas europeias até as suas fronteiras mediterrânias, supondo-se uma aliança contra outras etnias e contra os pobres, fato possivelmente assente na perceção, ilusória, que faz em prol de um processo integrador com a Europa ou de ser a continuadora, em substituição da Europa, da política africana da Europa. É preciso que não se perca de vista os ensinamentos da história reveladores de perspetivas adversas das dessas ilusões, resultados da tradicional tenacidade do fator impulsionador da política e da economia europeias, na origem da instrumentalização do intervencionismo militar, como na Líbia, dando lugar sobre várias regiões africanas a prejuízos materiais, morais e temporais incalculavelmente alargados. 

É nesse quadro geográfico e geopolítico em que STP se movimenta. O país, um arquipélago, situando-se na África Central, bem no meio do mundo, sobre a linha de Equador é neste ponto atravessado pelo meridiano de Greenwich. A pequenez do seu território ganha importância pela grande extensão da sua área marítima. Pela sua posição geográfica pode ele, como qualquer outro país, nutrir um objetivo estratégico, bem que moderado pela importância reduzida da sua localização geoestratégica na sequência da implantação do canal de Suez que diminuiu a circulação de navios pelas costas ocidentais africanas. Mas, só a sua posição geográfica que o coloca a distância praticamente invariável com a totalidade dos países da região do Golfo da Guiné confere-lhe papel geoestratégico indesmentível, podendo o país ser fator de instabilidade ou de estabilidade regional se na parceria que estabelecer, prevalecer pretensão de natureza imperial ou, de outro modo, contrária a essa natureza. O aproveitamento da sua posição geoestratégica identifica-se ao longo dos tempos. Na sequência dos descobrimentos o país foi utilizado como entreposto para o trânsito de pessoas transformadas em fatores de produção e em produtos para venda no quadro do comércio triangular. Mais recentemente em finais de 1960 o país foi instrumentalizado para servir de retaguarda na guerra do Biafra então desencadeada na Nigéria contra a unidade territorial nigeriana. 

A nova geografia política assentada em África na sequência das independências, operadas a partir da segunda metade do século anterior, requer para a construção de qualquer perspetiva estratégica de STP a leitura prévia da sua posição sobre o planisfério. Importaria, para fins dessa estratégia, a redefinição por STP do que deve ser o seu Norte, especificando para qual das partes africanas, austral, central, ou mediterrânia, essa orientação deve apontar.

Entre nós, tradicionalmente o Norte é psicologicamente apreendido como a orientação principal, geradora de um sentimento de superioridade e de comando. Por via desta perceção, a parte do continente que o país apreender por Norte seria para onde se orientaria a sua estratégia com vista a sua própria segurança e a sua prosperidade.

STP não está ainda em processo de industrialização e nunca demonstrou qualquer veleidade para a dominação, pelo que não se vê com razões económicas e políticas para se lançar em ações imperiais. Ao contrário, pela sua importância geoestratégica, a sua pobreza económica e a debilidade das suas instituições reveladoras de debilidades defensivas, pode ser alvo de cobiças absortivas de interesses próximos ou distantes, separadamente ou associados. O mais importante é a antecipação para soluções asseguradoras do futuro com estabilidade, preventivas e dissuasoras de intervenções desestabilizadoras que acontecendo requerem custos elevados para a reposição dos equilíbrios desejados.

É arriscada a atracagem à África Central que pareceria natural para o que seria o nosso Norte. Pois, trata-se de uma região enredada ainda, por algum tempo, em incertezas pelo modelo de descolonização seguido a que se acrescenta o risco de outros conflitos, que vão emergindo das fronteiras artificiais, em traçados amplamente retilíneos, cartografadas em Berlim, em 1884-1885, fator de convulsões étnicas, em quadros nacionais e multinacionais, considerando a dispersão de diversas etnias em vários territórios nacionais traduzidos na carta de Berlim. A África Mediterrânea não se apresenta com real interesse para ser o Norte a partir de STP em consideração de vínculos culturais, linguísticos, religiosos realmente incipientes com STP e pela distância, em que se encontra do país, intermediada pelas regiões de África Central e Ocidental e dos vários países que integram estas duas regiões ainda em dissensões recorrentes, intestinas e internacionais, de origens diversas e imprevisíveis.

É verdade que o país pode também se contentar na sua situação atual que vai-lhe permitindo gerir as suas relações com os diferentes centros de interesses em África e além do continente. Mas, uma necessidade superior o interpela, a da sua segurança.

 Pequeno país, com a dimensão em terra beirando os mil quilómetros quadrados, com uma superfície marítima alargada sobre os quatro pontos cardeais superior a uma centena e meia de vezes a sua área terrestre, pode ser cobiçado por outras potências. É verdade que a cobiça alimentada por forças da região próxima permanece hipotética na medida em que essas potências se situam em ambientes de convulsões que concentram acentuadamente as suas atenções, não lhes deixando suficiente margem para a realização de experiências imperiais. Não impede que STP deva pensar a sua segurança, integrada com a segurança do parceiro com que contratualizar uma determinada associação.

O nosso Norte deve nos inspirar confiança para que a nossa existência se desenvolva num ambiente de paz, de fraternidade, de estabilidade e de progresso. 

A sugestão é que para STP, o Norte, ou seja, o principal das suas atenções, esteja virada para a atual região austral de África, a região, dentre as mais próximas do país, que se apresenta com a melhor estabilidade social, com a progressão mais regular da prosperidade e com modelos democráticos mais estáveis e mais ajustados. A integração de STP nesta região permitir-lhe-ia beneficiar da dinâmica, política, económica e social que nela se processa.

A sugestão não apontaria para a integração direta de STP na região, mas sim para a iniciativa com vista ao desencadeamento de um processo de associação envolvendo o país da região com que STP revele afinidades suficientemente enraizadas deixando antever probalidade para a aceitação da iniciativa e consequentemente o seu começo, acabando, no final, indiretamente por aproveitar das dinâmicas de desenvolvimento que na região se realizam.

É virado para Angola, país da região austral de África que a história destinou o essencial das relações humanas, económicas, sociais e de segurança de STP.

No processo de povoamento que aqui se realizou a colonização trouxe pessoas de Angola, hoje indiscutivelmente componentes indissociáveis da população e da personalidade que no país se formaram. No plano económico, a colonização instituiu o mercado português que deu lugar a forte integração da economia de STP na economia angolana, sendo na altura o principal da mobilidade externa de santomenses realizada para Angola e o essencial dos bens alimentares e de equipamentos no país provenientes de Angola.  

 Dependendo da agenda da integração e do tipo de integração que no final se fizesse, determinante para a expressão internacional das duas componentes, os dois países manter-se-iam membros da CEEAC, estando a posição geográfica de Angola abrangente sobre a África Central e a África Austral.

O percurso pós-colonial também está preenchido de experiências que permitem sustentar uma ideia associativa para o aprofundamento das relações de STP com Angola. Entre 1977 a 1991, sem reais contribuições financeiras nossas, um contingente militar angolano esteve ininterruptamente operativo em STP com a finalidade de dissuadir eventuais agressões externas contra o nosso país, sem que a nenhum momento se sentisse qualquer pretensão da parte angolana com vista ao aproveitamento da situação para a dominação política de STP, revelando isto o respeito que tem Angola do direito internacional e, consequentemente, para com o instituto da soberania, uma constante que se visualiza na política angolana. Desde a independência que STP beneficia de fornecimento ininterrupto, em proveniência de Angola, de derivados do petróleo, fornecimento que vem permitindo a geração da eletricidade, sustentando a capacidade produtiva interna, assegurando a mobilidade no interior e para o exterior do país, proporcionando as famílias condições para a satisfação dos seus afazeres, sem qualquer pressão para o pagamento das dívidas resultantes e sem real pressão com vista a interrupção ou ao não prosseguimento desses apoios.

Para o aprofundamento da sustentabilidade do relacionamento, entre 2008 e 2010, houve na governação de STP um esforço conceptual que elevou a cooperação de STP com Angola para o nível de uma parceria estratégica.

Nestes tempos de viragem, impulsionada por um novo ciclo de inovações, ditada pela descarbonização, Angola, país transbordando de recursos, diamante, petróleo, gás natural, cobre, ferro, ouro, urânio, manganésio, chumbo, zinco, estanho, titânio, volfrâmio, mercúrio, vanádio, fosfato, cromo …, vitais para a sustentabilidade dessas inovações, pode ter a necessidade de alargar o perímetro da sua segurança.

A proximidade geográfica de STP com Angola pode ser de interesse para este país e fator sustentador de uma aproximação verdadeiramente estratégica para a segurança dos dois países, STP beneficiando da grande importância da capacidade militar angolana provada já em vários lugares do continente e Angola podendo estender o espaço da sua segurança exterior até aos limites externos das zonas marítimas de STP, assegurando-se contra o risco de qualquer potencia hostil a seus interesses estabelecer-se em STP, perto da sua área natural de atuação. Certo é que se Angola se desinteressar da posição geoestratégia que ocupa STP no Golfo da Guiné pode ver limitada a expressão de uma condição de utilidade para a sua própria segurança.

O importante é conseguir-se avançar para a sistematização das relações mediante a edificação de um quadro institucional estável, cumpridor, no presente e no futuro, das finalidades que lhe forem consignadas e assegurador do respeito da cooperação aprofundada no âmbito dos setores determinados para a associação e dos níveis de autonomias contratualizadas entre os parceiros.

1 Comment

1 Comment

  1. Sem assunto

    3 de Novembro de 2023 at 14:45

    Crônicas para agradar alguém. Pseudo intelectualismo. Vai durmir Amaro Couto!

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