Opinião

Desengrenar a Engrenagem

Por Amaro Couto

É preciso que se reinstale a simbiose entre a sociedade e a autoridade para que não continue a perceção de a autoridade se ter dissociada da sociedade, passando a se manifestar como uma sociedade, diferente da sociedade real, onde os integrantes se vêm privilegiados, investidos do poder, de mordomias e de qualidade de vida confortada que acompanham o poder. Mas, importa também que a simbiose não traga o desequilíbrio que coloca o direito do lado dos que são os detentores da força, ou seja, do lado da autoridade, quando a natureza do direito é a de garantir a proteção dos mais vulneráveis, situados na sociedade real. 

O país vê-se integrado na ordem mundial que consegue impor, numa sequência vertical, a observância da lealdade dos seus membros aos interesses dominantes que nela se exprimem. Perante a exigência de tal disciplina outra possibilidade não restou a autoridade nacional que não fosse a de superiorizar a obediência a esses interesses face a defesa dos interesses internos. Tal hierarquização gera incompreensões contra a atuação da autoridade, por sua vez geradoras de riscos de insubordinação em reação a subalternização a que a sociedade real se vê relegada. Na gestão desses riscos, a autoridade, que num tempo sustentou uma acentuada interação com a sociedade, pôs-se a afrouxar os laços que a ligam a sociedade. 

Lá se chegou, progressivamente, ao longo da procura do que se vem pensando ser o melhor para o país. Da crença na diminuição das diferenças entre as pessoas mediante a intervenção pública para privilegiar a melhoria das condições económicas e sociais dos mais desfavorecidos, quer dizer por via de uma política de carater acentuadamente social, embora com os instrumentos de atuação não devidamente ajustados, passou-se para uma fase iniciada e prosseguida com a observação e até o controlo do externo sobre o nacional, num processo de reorientação, diametralmente diferente daquele, que passou a privilegiar os mais favorecidos. Entre a primeira e a segunda das orientações a diferença é radical, pelo que se teve de não preservar os ganhos da primeira orientação, iniciando-se um percurso totalmente novo, insuficientemente preparado, que, por causa disto, é ainda hoje de destino incerto.  

No começo rompeu-se completamente com a colonização, mas não se deixou de se continuar deslumbrado pelos brilhos que irradiam da sociedade colonizadora. Foi anunciada uma sociedade nova, fundada na igualdade e comprometida prioritariamente na solução dos problemas económicos e sociais encontrados e então existentes. O Estado interveio economicamente e socialmente, mas permitiu que o lucro se mantivesse, tal um fator existencial para os instrumentos económicos que foi criando na sociedade. O lucro foi declinando na economia e os instrumentos económicos estabelecidos pelo Estado, ou seja, as empresas estatais, não se viram em condições que lhes permitissem funcionar com normalidade, pois, viram-se na impossibilidade de autonomamente pagarem os custos que deviam suportar. Declinou a política para a construção da sociedade igualitária e emergiu outra política, esta com vista a construção de uma sociedade também nova, mas diferente daquela em cuja construção o Estado inicialmente se comprometeu. O fim do primeiro modelo de sociedade e o início do segundo encontraram-se ligados por uma orientação transitória. Foi por via dessa transição que se acabou completamente mergulhado no modelo reitor agora existente.

A transição e os instrumentos utilizados no seu percurso não foram obras de vontade autónoma. Foram ditados e conduzidos pelas organizações financeiras de abrangência mundial associada ao bilateralismo entre o Estado e outros Estados, estes com capacidade para a oferta da assistência técnica. Sobre os conselhos e recomendações do exterior, dois eixos centrais conduziram a fase de transição: i) a privatização ou a desnacionalização das empresas estatais, condição determinante para a mudança do tipo da política, mediante a retirada do Estado das atividades económicas e a emergência da iniciativa privada para se ocupar dessas atividades; ii) o aumento da produção agrícola para exportação, mantendo-se, por aí, o país, numa função redutora, restringido a produção de matérias-primas, o que já vinha da colonização.

Ficou o sentimento de que admitidos tais objetivos os apoios financeiros poderiam drenar. E tais objetivos foram aprovados e admitidos. Os instrumentos que se seguiram para a sua realização traduziram-se no que se chamou primeiramente de contratos de gestão e depois de programa de ajustamento estrutural e de parcelamento das empresas agrícolas. A eles se ajuntou uma atividade legislativa intensa, estatuindo códigos de investimentos, regulamentações sobre as zonas francas, sociedades offshore, bancos offshore, geradora de medidas julgadas estimulantes para a atração da iniciativa privada, sobretudo estrangeira, designadamente a redução e supressão de impostos, a concessão de terrenos para implantação de empresas e regimes de investimentos diversos, todos favoráveis as iniciativas com vista a implantação de empresas.

Os esforços desenvolvidos não surtiram os efeitos esperados. A saída dos contratos de gestão a produção continuou a decrescer e correlativamente também decresceram as receitas das empresas, ficando o Estado com a responsabilidade de pagar as dívidas externas, acrescidas dos juros, contraídas para o financiamento desses contratos, geridos e aplicados por via de assistências técnicas estrangeiras.  Como tradicionalmente demonstrado nas glebas, de fraca rentabilidade, o parcelamento das empresas agrícolas acentuou ainda mais a crise da produção agrícola e consequentemente a das receitas de exportação. A abertura do mercado a iniciativa privada não gerou qualquer resultado significativo, sendo que não se verificou a real aplicação do código de investimentos, nem a criação de qualquer zona franca assim como não se estabeleceu qualquer empresa, sociedade ou banco offshore.  

Importa questionar-se as causas na origem desses resultados completamente assimétricos aos objetivos proclamados. Primeiramente, parece ter de se colocar essas medidas na conta da geopolítica, por onde os resultados não se formalizam em ganhos para os visados, mas destinados a colocá-los e a mantê-los sob influência. Em segundo lugar, parece não se poder deixar de apontar a pequenez do mercado interno associada a falta de prosperidade nos países mais próximos e as instabilidades políticas atravessadas por esses países, que em circunstâncias normais, de prosperidade e de estabilidade, podem se constituir em extensões favoráveis ao mercado interno. Em terceiro lugar, há de se referir a falta de medidas internas geradoras de prosperidade endógena, tendo havido sobressaltos que destruíram as experiências com vista a criação de capacidades produtivas iniciais e para a abertura do mercado a instalação de condições satisfatórias a especialização crescente da mão-de-obra disponível. Em quarto lugar, porque essas medidas estariam distantes das que requeriam a realidade do país e as expetativas das populações. Nestas condições, desnecessário preocupar-se com a importância da decisão política para a inserção das produções domésticas em mercados próximos, na verdade abandonada no curso da história. Ainda, há de se inserir essas medidas no quadro da cooperação para o desenvolvimento, assunto fundamentalmente geopolítico, ou seja, de aproveitamento, direto ou indireto mediante manipulações, pelos principais atores políticos e económicos do mundo dos recursos que a geografia permite localizar.

Para a ordem mundial esses resultados de nada lhe importavam, sendo que para ela o objetivo era geopolítico para desviar o país da orientação política fundamentalmente social que seguia e que esse desvio estava obtido por uma maior inserção do país nessa mesma ordem mundial. Era, a escala mundial, mais uma vitória do poder dos abastados sobre o poder dos pobres. Aquela vitória resultou da pretensão de dada razão para determinar sobre todas as outras razões. Pretensão sem legitimação ao longo da história por onde as autonomias sempre venceram a ambição para a mundialização do pensamento único.

A inserção do país na ordem mundial acentuou-se com tal radicalidade que se tornou impraticável dela querer-se sair, pelo que para se atenuar as inconveniências que dela decorrem, resta somente nela manter-se e do seu interior procurar as vias mais favoráveis as melhorias económicas e sociais de que o país precisa. Há, pois, de estrategicamente se colocar as pessoas no centro das preocupações, empreendendo-se resolutamente uma política de proximidade, a começar pelo reforço dos quadros institucionais dos poderes locais, permitindo-os, nos limites das suas áreas de jurisdição, intervir eficazmente em setores como os da ordem pública, da educação, da saúde, das estradas, da habitação, da solidariedade e da gestão do território. Para tal, e também para se atender as necessidades gerais do progresso, há de se questionar as orientações que o país vem seguindo nas áreas financeira e do judiciário, substituindo-as ou ajustando-as para o arranque do processo da prosperidade num quadro de constante estabilidade política e social.    

No plano financeiro há primeiramente de se fixar sobre certas premissas. É função da economia gerar riqueza, o que se alcança pela realização de investimentos, possíveis na condição de haver disponibilidade financeira. O ciclo abre-se, pois, pela existência de meios financeiros efetivos para o investimento e também até para o funcionamento, vistas as ligações existentes entre estas duas funções. Não basta que se anunciem as promessas de investimento porque, na verdade, com as simples promessas não se consegue pagar os custos.

A competência financeira do Estado e a responsabilidade decorrente devem categoricamente, quer dizer, sem ambiguidades, ser da alçada do Governo, órgão político, sendo assim que deverá se deslocar da instituição de carater meramente técnico. É preciso a observação do estado da evolução presente da sociedade, evitando-se o recurso sistemático à adaptação pela imitação e transporte dos exemplos anglo-saxónicos e da Europa ocidental, sendo certo que esses exemplos chegaram ao estado em que se encontram também pela via das evoluções por que foram passando. Lá chegaram depois de formada nas sociedades respetivas uma classe financeira poderosa e determinante para economia e preocupada em manter a estabilidade da sua situação evitando que a liderança que adquiriram na matéria se veja ofendida, garantia que a função política não oferece pela devolução ao julgamento dos eleitores, a que o Governo se vê sujeito, por períodos determinados. É preciso a definição da trajetória e a especificação das etapas por que o país pode passar para se evitar de queimar as diferentes etapas que a evolução percorre.

Há relação incontornável entre a política financeira e a política global do Governo, sendo necessário para a harmonia do conjunto que seja da alçada do Governo a competência para a definição da política financeira a ser aplicada. A importância de tal ajustamento justifica-se ainda pelo fato de a ação do Governo estar submetida a avaliação popular no final de cada legislatura e de ser o desempenho financeiro da política pública um dos elementos dessa avaliação. Importa, pois, retirar tal competência dos espaços técnicos, longe da avaliação política, porque mantê-la ao abrigo da competência técnica significaria admitir a conservação de determinada orientação financeira, mesmo que ineficaz para a satisfação das expetativas gerais da sociedade.

A principal função da operação financeira, não a única, está na montagem do financiamento necessário a realização das ações de financiamento e de funcionamento preconizadas. O importante está na determinação das modalidades de tal montagem. Nisto, coloca-se de imediato a necessidade de arrecadação das receitas para a sustentabilidade do Tesouro, resultando essa arrecadação raramente em montantes satisfatórios para os custos públicos a serem suportados. Expediente complementar admite que o Estado vá ao mercado financeiro, interno e externo, para contrair obrigações.

 Mas, na operação sobre a praça financeira interna, sem a solidez para atender os níveis das necessidades públicas, é prudente evitar que o Estado se veja tentado de se socorrer das poupanças internas em razão do máximo respeito a se observar relativamente a essas poupanças, constituídas pelas pessoas com vista a se protegerem dos problemas suscetíveis de afetar as estabilidades financeiras e outras que lhes podem ocorrer no futuro. São problemas que antecipadamente não podem ser determinados e, por isso, estar-se na impossibilidade de antecipadamente planificar a sua solução.

O recurso ao mercado financeiro externo mostra-se problemático porque as informações disponíveis sobre a economia e as finanças internas não conferem credibilidade a situação do país: receitas públicas não convincentes; património reduzido, nada em crescimento, degradado, quer dizer, desvalorizado; Dobra sem convertibilidade. Caraterísticas que não possibilitam sucesso a procura de créditos na praça financeira internacional.

Inviáveis os empréstimos nos mercados financeiros interno e externo, resta ao país ficar de braços cruzados ou atuar, tirando, nesta última atitude, vantagem plena da autonomia de que se nutre enquanto Estado. Certo é que o fim da política é o de resolver os problemas internos ao país e não o de satisfazer ou de reforçar interesses terceiros aos interesses internos, salvo nas relações internacionais onde a satisfação deve ser equilibrada entre os interesses representados nas relações.

Nada de mais racional, de mais prático e de mais eficaz do que permitir que o Tesouro recorra ao Banco Central para realizar empréstimos. Trata-se de medida política que só pode ser legitimada se decidida pela autoridade política. Tratar-se-á na verdade de injeção de massa monetária adicional no mercado financeiro por meio de dívida pública que tarde ou cedo o próprio Banco Central deverá assumir, comprando a dívida do Tesouro, no fito de libertar o Estado da dívida que deste modo tiver contraído. Contudo, há se observar certo cuidado. Considerando-se a natureza política da medida, que briga com os compromissos externos do Estado, envolvendo atores de atuação preponderante na arena internacional, há de se envolver no processo de decisão os mais amplos interesses atuando na sociedade, quer por via de um referendo nacional, quer mediante a concertação entre ao menos as forças políticas representadas no Parlamento.

Tal medida, política, requer acertos políticos. Trata-se de área donde emergem também obstruções técnicas que devem ser vencidas, o que será possível por via ainda de decisões políticas, enquadradas num só conjunto de medidas ou em medidas específicas. Como para a superação das obstruções políticas, para que se vençam, nessa matéria, as obstruções técnicas, também se revela necessário o envolvimento dos interesses presentes na sociedade.

Parece ser a solução ajustada, aos problemas do momento, para a construção da robustez interna, indispensável a viabilidade da contribuição e da participação do país num mundo diferente, verdadeiramente interdependente, com segurança plena, sustentado na paz e na estabilidade e com o funcionamento assegurado por instituições de composição equilibrada e justa e investidas de poderes igualmente equilibrados e justos. Um mundo diferente do que assistimos hoje, atravessado por clivagens múltiplas, todas resultantes de sentimentos belicistas forjados nos desejos de dominação e de comando como na sociedade imaginária de Hobbes onde a ambição humana determina a existência de constantes violências e de constantes riscos de guerras ou de guerras efetivas, dando lugar na vivência contemporânea, consequência ou continuidade das realidades impostas pelos descobrimentos, a que a distribuição da riqueza seja orientada para o financiamento da ocupação e da defesa militar, com custos acrescidos para a redefinição de fronteiras, construção de muros, políticas natalistas regressivas, em vez de servir para resolver os problemas das pessoas.

No setor judiciário há de se assegurar as condições garantindo a credibilidade do setor. A principal necessidade na reorganização do setor aconselha para o afastamento do que nele se observa para confortar, de forma prioritária, os interesses políticos. A intromissão da política no judiciário deturpa os procedimentos orientadores da marcha processual e a imparcialidade do julgamento e das decisões judiciais, situações que geram desequilíbrios na liberdade e nos interesses económicos e sociais estabelecidos, com resultados que se revelam nocivos para uns e favoráveis para outros, tudo pelo abuso da persuasão e da força que pela autoridade política podem acontecer.  

É preciso eliminar todas as condições que possibilitam a penetração da política no setor, seja no quadro do processo decisional da política, seja nos quadros do controlo ou da influência da política sobre o judiciário, de modo que este se erga plenamente independente. É que na situação atual emerge o risco de a força do direito se ver diminuída, diminuição a ser eliminada para que ao direito fique assegurada a capacidade plena para punir e para neutralizar, travar e retirar do corpo judiciário qualquer intromissão da política. É preciso que se mantenham os equilíbrios próprios do direito, guiados sempre pelas razões que são próprias ao direito, independentemente das naturezas dos interesses em presença.

Para começar há de se assegurar que todos os representantes das instituições do judiciário sejam eleitos pela Assembleia Nacional numa maioria no mínimo de 3/4 dos deputados em efetividade de funções, dando-se assim utilidade as vontades de todos eleitores como representados no Parlamento. É a condição para se afastar os riscos de uma maioria simplesmente absoluta, que sob a capa de legitimação democrática acaba por camuflar a vontade de determinada força política, colocando os representantes eleitos para o judiciário no desconforto da dependência da vontade dessa força política.

Importa também que as candidaturas aos postos eletivos provenham diretamente dos interessados de forma autónoma e independente sem a passagem prévia pelos órgãos políticos: partidos políticos ou grupos parlamentares. É ainda medida ajustada a de neutralizar a tendência atualmente observável para a emergência de uma coluna de militantes, no interior de partidos, disponíveis para serem os porta-bandeiras de manipulações ao direito.  

É importante que a função inicial no setor se realize por concurso assegurado por um órgão de administração próprio ao setor, composto apenas por representantes das instituições integrantes do judiciário, cabendo-lhe também garantir a conservação dos equilíbrios no interior do setor, mediante respeito rigoroso da lei pelas instituições e pelos operadores humanos que nele se movimentam.    

1 Comment

1 Comment

  1. Antonio Vaz

    15 de Maio de 2024 at 11:41

    Será que o deixar andar, virar as costas, resmungar, e pacifismo sem vitalidade a solução para São Tomé e Príncipe? Quando é que esse povo vai reclamar e deixar de ser usado e abusado? Será o tal povo ser culpado por perder coragem de enfrentar o mal?

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