«Se o mar tivesse uma varanda, eu veria o rei da India pela frincha de janela da minha ilha» – Sísifo Ali Jó
Um dia, o galo vai cantar na baía da minha Enseada. Perdoa-me o confrade Manuel Lopes, por te roubar esta batida preciosidade. Sabe, eu sou de origem obscura e não me sinto parte de terra alguma. Nunca entrei numa escola, nunca aprendi a pensar, a ler e a escrever. Jamais tive noção de catequese. E pior um pouco meditar em coisas de nobilíssimo quilate. Talvez seja da estirpe dos talibés e palaiês da minha África. A pátria que me coube está no signo dos vates, no vento e na pulsão acelerada das marés dos regedores, nos versos dos exímios e denodados maiorais da minha crença. Apesar disso, tive infância e adolescência, como todas as criaturas do planisfério. Embora só me lembre vagamente da Enseada de Horizonte, enleada nas ilhargas de Santiago e na miragem da diletante ilha vizinha. Uma estância fatal e mítica, no seu estado assaz genuíno e apossado de mil encantos. E sempre pressentida por minha pele. Porém, em tempo algum tangida e percebida da minha mente. Tão somente visualizada. Ainda hoje me entretenho a coaptar apenas a palavra desnudada de regalia.
Na minha imberbe fase de guri e na eira de uma puerícia-excelsitude, olhava fixamente para o portal da ilha de frente e julgava ser a própria retina da minha alma. Depois, bradando aos céus, suplicava e clamava por azimute do Demiurgo e do seu impoluto espaço aéreo e venerável, ali no poiso de inteiro monopólio, para me dar o lenitivo de destino, alento de adventício, afim de cruzar o canal entre a Angra de Sustenido e a suculenta ilha de estima. A mezinha que me deixava captar e deliciar era singela, benzida e um tanto plana. Do poleiro do meu solar, em Cutelo de Eutimia e de Blandícia, podia divisar um camião rolando afeitamente na estrada do infinito da minha próspera visão. A minha linha de horizonte ali findava. O limite entre o perene céu ideal e a terra perdulária enjeitada também ali. A nítida separação entre a magnificência de Deus no etéreo e a finitude do ser humano manifestava-se na esguia da sua díafana envolvência.
O meu Castelo de Sol na Fronte, não obstante trucidado desde ninho e vítima de vários atropelos e desaforos ao longo do seu percurso, deixava-me fitar e espairecer, horas a eito, a meritíssima de brinde, dando-me arrimo o ser do alto, para apreciar ou renunciar a bela noiva de baixa e escultural feição de musa. A Ilha do Quinto Mês, a minha inaugural paixão de sempre e vizinha ocular, afigurava-se distraída e muito fria, mas era a principal espetadora do meu esmero nela própria e da minha incessante angústia de a não tocar, mesmo que de queixo caído e derretido a olhar para a sua apetecível fisionomia. Uma donzela acalorada e de estonteante sabor de vista.
E a nina, a magnífica princesa, uma constante de quietude e serenidade, muito prestativa de sal, doçura, peixe fresco e carne seca. Tudo adentro do falucho que arribava, para abonar a minha Enseada de quintessência e o Porto de Manguinho no seu auge daquele então. Uma espécie de majestade tranquila e inspiradora para poetas, marinheiros e trovadores. Marcava ela a minha proba respiração, pela curiosidade de saber o que estaria por trás da sua inexpugnável barreira de ilusão, na tela de firmamento. Via-a do cimo do meu Castelo de Sol na Fronte, não para interpretar que me quisesse repelir ou reprimir a tentação da minha parte em avistá-la na nudez da sua mirifica silhueta de mimoseio. E aceder a dar-lhe um fervoroso abraço de distância do meu apreço. A ninfa pupa da minha infância era a junção de todas as potestades fenomenais. Enfim, acobertando de aura o pequerrucho, rodeando-o de prebendas e mordomias, mas já a entrar na ombreira de falida adolescência, seria o eleito fustigado e sufragado pela pobreza.
Meu pai decidira plantar um pé de calabaceira, com o fito de lhe chamar a formidável ilha de mimo. Meu tio criou um vitelo e prometeu diante da prole – A sua invocação será, quando na madura idade adulta, ainda mais aliciante que a atribuída pelo meu cunhado à formosa ilha de defronte da nossa instância. Muita gente quis saudar e bendizer da deliciosa. No fundo, a insula acabava por ser para todos da cercania uma extraordinária pousada de cobiçado deleitamento. Uma réplica de escarlata cintura de Dona Ginga, com o chapéu do rei Mandume, decalcado em todas as dezanove curvas do Monte Leba, tal que a aclamada circunscrição da Ilha de Mussulo, em Luanda. Uma terra de todas as palpitantes pulcritudes ou da distante Ilha de Niassa, de revoada e de filtrado devaneio, em Moçambique. Um outro tio da quinta de Gulungo Alto, por explosão de fulminante simpatia pessoal e familiar, estando de acordo com ponto de vista do seu primo, em Mocímboa da Praia de Cabo Delgado, depois de acertar o passo ideológico com a minha tia, residente em Água Izé de São Tomé, agilizou o envio de uma carta a perguntar se tudo estava airoso à volta da fascinante também chamada Ilha de Sua Majestade.
Toda a populaça falava da vizinha mais aconchegante da minha vida. Pois lá, a noite não criava escuros do tamanho do universo nem a sombra de montanhesca e descomunal envergadura, como em torno da tumba de mortalha, aziaga e temerata sobre a couraça do falecido. O manso sol, quando chegava, emanava uma ramagem de brasa de ternura, de cálida igualdade. E eu que, na verdade, mais admirava a fulgurante vizinhança, ninguém me quis ouvir, a propósito da nominação com que pretendia prendar o meu fetiche. O vitelo, depois de grande e vacinado, gostou da sonora invocação, mas numa guinada de rebuscada gentilidade, preferiu que fosse rebatizado com a estrosa apelação de Mato Adentro, a horta de provento da minha tribo. Meu pai ficou amuado e algo encrespado. Mandou aplicar um par de chibatadas ao rebelde do animal. Meu tio Augusto Elã, a residir em Colinas do Bué da Guiné Bissau, para mostrar serviço ao nível de humanismo e provar que era um engajado cosmopolita e tolerante, resolveu argumentar que o senso da alimária, por vezes, pode chegar a ser mais agudo e aprimorado que o do homem.
José de Carvalho, o maior vulto da ciência e da cultura, nos primórdios do século vinte, o emblemático José de todas as candeias, o mais nitente crioulo e orador da Ribeira de Candura daquele tempo, por ter sido um valente lutador em prol da ilha em referência e frequente participante do avanço da mesma, ficou escandalizado, porque aproveitou para avisar – O meu cavalo terá o nome que escolher e pode até recusar o de batismo, mas no couro dele nenhum marmanjo terá coragem para zimbrar, enquanto eu tiver folego no peito, ares suficientes na caixa ressonante e nas narinas, com o pé na esteira de múltiplos caminhos, com poderes para malhar nos pacóvios da comarca. E protestou o principal sage da província – Arre! No meu amigo e companheiro de jornada ninguém mexe-. Assim, mandou soltar o bicho das amarras do meu pai e garantiu – Bater em ti, minhas asas da aventura, só por cima do meu cadáver. Como era um homem polido e respeitado, ninguém se adiantou na fileira de mofinos e bacocos, para o deter e obriga-lo a abjurar. E a nitente pupila do meu imo, muitas vezes, acabava por ser a minha destacada confidente, sem lhe dirigir uma única palavra.
A ilha do Laje, dos Évora, dos Spencer e dos Silvas e Tavares ainda existe e a sua mística também. Ela não tem a estonteante fadiga da anciã Ecbatana, do morto paraíso e de assinalados artefactos, nem a púdica verdura de São Tomé e Príncipe e da cerrada floresta de Maiombe ou da estreita Serra de Malagueta de Cabo Verde, mas pula pela vida e vai em breve ser o excrescente pulmão de alívio, de turismo e pacifismo, o cartão de visita da nossa amável e desejosa gente de bem.
Domingos Landim de Barros
Arlindo Mendes Vieira, PhD
26 de Agosto de 2024 at 22:16
Este artigo de opinião de Landim Tavares é uma profunda meditação sobre a identidade, a pertença e o desejo de retorno às origens. Com um estilo literário exuberante e evocativo, o texto reflete sobre a conexão emocional do autor com a sua terra natal e a busca por significado na sua vida e na sua relação com o lugar de onde veio.
A citação inicial, “Se o mar tivesse uma varanda, eu veria o rei da Índia pela frincha de janela da minha ilha” – Sísifo Ali Jó, estabelece um tom poético e imaginativo para a narrativa, sugerindo uma visão idealizada e distante da realidade.
O autor revela uma sensação de desconexão com o lugar onde nasceu, descrevendo-se como alguém de “origem obscura” e que nunca teve acesso à educação formal ou à catequese. Essa ausência de pertencimento é contrastada com uma rica imaginação e um profundo desejo de se conectar com a sua terra através da linguagem poética e da reminiscência.
A descrição da infância e adolescência do autor Landim é marcada por um forte senso de saudade e um sentimento de alienação. Ele se recorda das paisagens da sua infância, como a Enseada de Horizonte e a Ilha do Quinto Mês, com uma mistura de nostalgia e frustração por não ter sido capaz de experimentar esses lugares em toda a sua plenitude. A visão do “Castelo de Sol na Fronte” e da “Ilha do Quinto Mês” serve como um símbolo de suas aspirações e sonhos não realizados.
O texto também faz referência a personagens e eventos históricos, como o pai e o tio do autor, e ao famoso José de Carvalho, criando uma rica tapeçaria de contextos históricos e culturais que moldam a visão do autor sobre a sua terra e a sua identidade.
A narrativa é permeada por um estilo altamente florido e erudito, com referências a mitos e figuras históricas que ampliam o escopo da reflexão do autor sobre a sua identidade. A luta interna entre a idealização do passado e a realidade presente é uma constante no texto, com o autor expressando um desejo profundo de retornar ao seu “Castelo de Sol na Fronte” e à sua “Enseada de quintessência”.
O artigo termina com uma nota de otimismo sobre o futuro da ilha mencionada, expressando a esperança de que ela se tornará um “pulmão de alívio, de turismo e pacifismo”, o que reflete o desejo do autor de ver a sua terra natal prosperar e ser reconhecida pela suas qualidades únicas.
Em suma, o artigo é uma exploração poética e profunda da relação do autor com o seu lugar de origem, marcada por uma linguagem rica e um forte senso de nostalgia e identidade. Através de uma prosa elaborada e repleta de referências culturais, o autor de Barros Tavares expressa a sua luta interna entre o passado idealizado e a realidade presente, e a sua esperança para o futuro de sua terra natal.
Arlindo Vieira, PhD