Eram aos milhares, mulheres, homens e crianças, enredados na teia das arbitrariedades e desmandos dos esbirros a soldo de Gorgulho. Subjugados pelo terror, que punha a ferro e fogo a terra mártir da Trindade.
Com a determinação própria dos que se recusam a submeter-se de ânimo leve à sevícia e à morte, opuseram-se com coragem aos atropelos de um verdugo sem alma, cuja fúria assassina exigia cada vez mais sangue e mais vidas inocentes.
Sobre mais de mil santomenses recaiu então o açougue da morte, na Trindade e em Fernão Dias. Vidas ceifadas pela irracionalidade e pela intolerância, que tudo buscavam devastar à sua passagem.
Protegidos pelo isolamento das ilhas e movidos pelo mais hediondo intuito de repressão, que a impunidade tanto contribuía para acicatar, deleitavam-se os algozes com a angústia de cidadãos brutalizados e espoliados do seu inalienável direito à tranquilidade e à paz.
Para alguns destes, o fim estava inevitavelmente traçado. O mar e a terra acolheram então, impotentes, os seus corpos martirizados e exangues. Encheram o espaço solitário de Fernão Dias os seus gritos derradeiros, cortantes como lâminas e incisivos como setas perfurando a insânia colonialista.
Noutros, vítimas das mais exacrandas sevícias, a prisão deixou marcas indeléveis e abreviou o curso de uma vida transgredida em cenários de degradante e repulsiva violência.
Outros ainda, os que restam de tão ignóbil tragédia, continuam juntos de nós, testemunhas dolorosas que são de uma época que a marcha inexorável do tempo como que nos impele a esquecer e a banalizar.
A todos eles nos cumpre homenagear e resgatar a memória, pela magnitude do seu gesto e pela forma generosa como se empenharam para forjar o embrião de algo de gregário e específico, que mais não é do que o sentimento de uma nação que o seu sacrifício fez despoletar e cimentar.
Por eles, pelo sacrifício que consentiram para que a nação se revelasse de forma tão pujante e congregadora, reforçando em nós a consciência de um sentido colectivo e de um modo muito particular de estar no mundo, edifiquemos uma pátria que seja imune ao absurdo do rancor, do revanchismo e da exclusão da pessoa humana e “à sua redução à frieza dos números, tal como está estabelecido por um modo de vida dito civilizado e organizado, mas afinal dissolvente e dissoluto, em que todos os nomes são nenhum nome e cada homem se reduz ao nada da sua identidade vazia e transviada”(1).
Construamos, ao invés disso, um país solidário e fraterno, centrado nas suas raízes, mas aberto ao contributo de outros povos e civilizações, embora os devendo adaptar e moldar ao nosso modo de ser. Um país soberano, democrático e preocupado com o desenvolvimento humano, que se reveja na sua memória colectiva e entenda a história como a interpenetração dinâmica do passado, do presente e do futuro. Em suma, como algo “que cresce como uma árvore viva, dia a dia, sem brusquidões nem vertigens “(2)”“.
Façamo-lo assim, de modo a comungarmos com Francisco José Tenreiro e com ele dizer ao mundo: “Os teus filhos não morreram, Mãe. Eu oiço um rio de almas reluzentes cantando: nós não nascemos num dia sem sol “(3)”.
Albertino Bragança – Sessão Solene de 2.Fev.2002 – Arquivo Histórico de S.Tomé e Príncipe
(1) – Prof. Carlos Reis – “José Saramago, Oleiro das palavras” – Comunicação ao 1º Encontro de Escritores de Língua
Portuguesa, Instituto Politécnico de Leiria, 17.04.2001.
(2) – Fernando Namora – “Camões e a Identidade Nacional”-Temas Portugueses, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983.
(3) – Francisco José Tenreiro – Poema “Nós, Mãe”, in “Coração em África”, Edição de África – Literatura, Arte e Cultura, Lisboa, 1982
