Opinião

A Institucionalização da Impunidade

Conheço, relativamente bem, o senhor Lázaro Afonso, dos tempos da Quinta de Santo António, quando eu frequentava o Liceu Nacional, em S.Tomé, e ele era o responsável dos pioneiros e tinha, sob a sua guarda, dezenas de adolescentes, alguns dos quais, em risco, tendo em conta, a nossa realidade socioeconómica, já naquela altura.

Sempre me pareceu uma pessoa muito leal, com uma personalidade muito vincada, com uma forte tendência para a camaradagem (típica nos militares) e defensor intransigente dos seus, da ordem e da disciplina.

Ouviu-o, por isso, com toda a atenção, no sábado passado, numa entrevista online (projeto Nós Acreditamos), tendo como entrevistador o conterrâneo Leoter Viegas. Não tenho pejo nenhum em considerar que a tal entrevista foi, nos últimos tempos, um dos melhores serviços que a diáspora Santomense prestou ao país em termos de criação de condições para o aprofundamento do exercício da cidadania.

Outros eventos, neste mesmo sentido, têm sido feitos, reiteradamente, por esta mesma diáspora e organizações da sociedade civil, no interior do país, tendo como propósito a consolidação da nossa democracia.

Os governantes do nosso país, de uma forma geral, têm de começar a interiorizar a ideia de que o tempo da obediência cega e cidadania dócil está a acabar, até pelo facto dos fatores relacionados com políticas redistributivas, que suportavam esta obediência cega e cidadania dócil, começam a atingir o seu limite e os processos e expedientes recorrentes de controlo do espaço público (televisão e rádio nacional), por parte dos referidos governantes, estão a perder relevância, tendo em conta a influência de outros meios informais alternativos, de intervenção no espaço público, com consequências diretas ou indiretas na ação das nossas instituições, nos processos de tomada de decisões políticas.

À medida que a abstenção tenderá a aumentar nos pleitos eleitorais, tendo como suporte a manifestação do desinteresse por parte de uma camada específica de pessoas da nossa terra (alguns descontentes com o percurso do país nas últimas décadas que perderam a esperança e não representam, necessariamente, a infoexclusão); por outro lado, alguns sectores importantes, sobretudo jovens, formados e insatisfeitos com o rumo que o país está a tomar, não abdicarão de recorrer a todos os meios existentes para fazer valer a sua participação cívica, dentro ou fora dos modelos tradicionais de intervenção política.

A proliferação de candidaturas para a presidência da república, como eu afirmei no artigo anterior, pode estar relacionada com a manifestação deste sintoma e, não me admiraria nada, que, após as eleições presidenciais, este gesto inaugural de mobilização, de âmbito singular, culminasse com o propósito da sua transformação num grande movimento mobilizador e agregador de várias candidaturas, com caráter orgânico, funcional e programático, representativo de grupos sociais importantes da nossa sociedade, desprovidos, momentaneamente, de representação política. É bom, pois, que os partidos políticos tradicionais comecem a acordar para a realidade que aí vem.

O que é, entretanto, que o senhor Lazáro Afonso disse na referida entrevista, de extraordinário, que merece a nossa atenção e reflexão como sociedade?

Entre várias coisas importantes, mencionadas pelo senhor Lazáro Afonso na referida entrevista, destacam-se:

Primeiro – o foragido, de nome Nelson Rita (vulgo Lady) aparentemente morto, recentemente, nas instalações da polícia judiciária, manifestou, desde o início, medo e reservas em se apresentar (apesar de pretender fazê-lo), de forma voluntária, nas instalações da referida polícia porque tinha a convicção de que iriam matá-lo aí;

Segundo – a senhora ministra da Justiça, apesar das reservas e medo, manifestado pelo foragido em se apresentar na polícia judiciária, transmitido a si pelo então Diretor dos Serviços prisionais, Lázaro Afonso, insistiu com este último, de forma quase obsessiva, para que o mesmo entregasse o foragido em causa à referida polícia, tendo, para tal, exercido muita pressão junto do referido Diretor dos Serviços prisionais, até aos limites do suportável, comparecendo, com esta finalidade ou propósito, em casa deste último, para realização de tal expediente, cerca das 23 horas do dia anterior ao fatídico acontecimento;

Terceiro – a senhora ministra da Justiça assegurou ao senhor Lazáro Afonso, Diretor dos Serviços prisionais, que a sua iniciativa, sobre este, com contornos de quase coação para que o foragido fosse levado imediatamente para a polícia judiciária, tinha cobertura política, a montante, por parte do senhor primeiro-ministro e outras individualidades do país;

Quarto – a senhora ministra da Justiça, para além de saber que o senhor Lázaro Afonso tinha, aparentemente, contactos com o foragido, ela mesma, segundo o referido Diretor dos Serviços prisionais, tinha o contacto do referido foragido e, até, presenciou uma conversa deste com o referido Diretor dos Serviços prisionais no seu próprio gabinete;

Quinto – o senhor Lazáro Afonso, conhecedor do “monstro” (expressão utilizada pelo próprio) que é a polícia judiciária, tendo em conta que foi, anteriormente, diretor da referida instituição, pediu, encarecidamente, à senhor ministra, que o foragido não fosse entregue à polícia judiciária, mas sim ao ministério público, porque tinha a firme convicção que este acabaria por ser assassinado nesta instituição, coisa que na sua opinião veio a acontecer.

Eu não tenho razões nenhumas para não acreditar nas afirmações do senhor Lazáro Afonso, que estão elencadas naqueles cinco pontos anteriores e que não foram desmentidas, ainda, por ninguém, até pelo facto de, como mencionei anteriormente, eu ter uma ideia favorável ao seu respeito, tendo em conta, até, os cargos importantes, no âmbito do sistema judiciário, que ele ocupou, ao longo dos tempos, no nosso país.

Abster-me-ei de fazer juízos de natureza técnico-jurídica ou de violação de regras procedimentais relacionados com este assunto, até pelo facto de não ser a minha área de formação específica, mas, existem questões políticas que não podem deixar de ser levantadas, em torno do referido caso, e que devem preocupar a nossa sociedade.

Em primeiro lugar, pode uma ministra da justiça ter uma intervenção tão direta e com esta preocupação, quase obsessiva, num processo de captura de um foragido, contando com a colaboração e solidariedade, a montante, do próprio senhor primeiro-ministro, tendo em conta o conteúdo da entrevista do senhor Lazáro Afonso?

Em segundo lugar, confirmando tal facto, será a primeira vez que tal acontece ou, em alternativa, é regra na nossa terra os ministros da Justiça e o senhor primeiro-ministro terem intervenção direta nos processos judiciais?

Em terceiro lugar, os senhores juízes, magistrados do ministério público e advogados nacionais acham normal e aceitável a intervenção da ministra da justiça de forma tão direta e quase obsessiva num processo judicial com a finalidade de condicionar a sua resolução, tendo tal culminando com a morte de um foragido nas instalações da polícia judiciária?

Em quarto lugar, não sendo a primeira vez que acontecem abusos, maus tratos, agressões e outras violações dos direitos humanos na polícia judiciária, algumas das quais relatadas nos meios de comunicação social, por que razão as entidades governamentais nunca agiram em conformidade para estancar esta prática e, neste caso específico, quase que, de forma obsessiva, se empenharam para que o foragido fosse dirigido para aquela instituição para que o desfecho fosse aquele que todos conhecemos?

Estas quatro questões deixam-me preocupado, como cidadão, pois, denunciam uma infração clara das regras mais importantes de um Estado Democrático de Direito que assenta, entre outros, em pilares como: a soberania popular; o pluralismo de expressão e organização política; o respeito pelos direitos e liberdades dos cidadãos; a separação e interdependência de poderes e a independência dos juízes que não devem estar sujeitos a quaisquer ordens ou instruções, de ministros ou primeiros-ministros.

Que garantias um cidadão pode ter se, como parece ser regra no nosso país, os ministros e o senhor primeiro-ministro, de acordo com o conteúdo da entrevista do senhor Lazáro Afonso, condicionam direta ou indiretamente o desenvolvimento dos processos judiciais?

Como é que eu posso acreditar num sistema judiciário que funciona com esta imperfeição, típica de regimes totalitários, que, aparentemente, pode colocar em causa a independência dos juízes e denuncia a ausência do respeito pelos direitos e liberdades dos cidadãos?

Este sistema judiciário não dá nenhuma confiança aos cidadãos. Eu que fui, provavelmente, o maior crítico do Patrice Trovoada e do seu governo, neste momento, tendo em conta estes acontecimentos que envolvem a ministra da justiça e acontecimentos anteriores que culminaram com a detenção do anterior ministro da finanças, Américo Ramos, tenho de reconhecer, agora, que aquele fez muito bem não regressar ao país, pois, se é prática normal os ministros condicionarem os processos judiciais no nosso país, ele corria e corre, ainda, sérios riscos de ser perseguido e detido sem qualquer culpa formada.

É para isso que, supostamente, vivemos em democracia? Com esta atitude estão a normalizar a atitude do ex-primeiro-ministro, Patrice Trovoada e dar-lhe um grande argumento político sob qual deverá assentar a sua estratégia de regresso apoteótico ao país.

Assusta-me, que, perante estes desmandos todos, não se constata um sobressalto cívico dos cidadãos em geral e reflexão política profunda das instituições da república e, sobretudo, dos deputados na Assembleia Nacional que, tendo em conta a relevância e interesse público do referido caso, deveriam criar condições para o estabelecimento de uma comissão de inquérito parlamentar com o objetivo de ouvir a senhora ministra da justiça, o senhor primeiro-ministro, o senhor Lázaro Afonso e outros intervenientes neste caso, com propósito de escrutinar eventuais desvios às regras do Estado democrático de Direito, independentemente dos constrangimentos relacionados com a  eventual existência de um processo criminal, em curso, relacionado com o referido caso, na P.G.R.

Estamos a viver, neste momento, um sintoma ou tentativa de institucionalização da impunidade no nosso país que decorre, entre outros fatores, do legado deixado pelo regime monopartidário, após a independência nacional, com manifestação, ainda hoje, nas estruturas partidárias e policiais do país.

Não vejo esforço nenhum, das forças vivas da sociedade, para que o país se possa libertar, definitivamente, dos escombros deste legado histórico que está a contribuir para minar as bases ou fundamentos da nossa democracia.

O MLSTP ainda não se libertou dos tiques totalitários do “jacobinismo centralista” que caracterizou a sua ação política, durante muito tempo, e, basta ver, neste caso específico, como é que uma ministra da justiça e o senhor primeiro-ministro, tendo em conta as declarações do senhor Lazáro Afonso, tratam e olham para a justiça bem como a generalidade dos ministros da referida maioria e governo relacionam com as entidades do Governo Regional do Príncipe.

Estamos, neste momento, a viver uma crise que, mais do que económica e social, se revela como uma crise de valores e da moral (aquilo que o senhor Lazáro Afonso mencionou por 11 vezes, na sua entrevista, se não me engano, como um problema de “mentalidade”) onde os medíocres e menos dotados vencem sempre, muitas vezes através de mecanismos que estão na base da corrosão da nossa democracia.

Dando uma vista de olhos, à volta, sobressaem, neste momento, na vida política nacional, poucas referências que não titubearam, ao sabor de tentações perante tentativas de transação de sentimentos e ideias a troco de cargos, bens materiais ou de outra natureza.

Gostaria imenso de saber o que a Alda Espírito Santo, Carlos Graça ou Francisco Silva, autênticas consciências morais de alguns partidos que suportam a atual maioria governamental, pensariam desta crise que estamos, momentaneamente, a viver e dos seus protagonistas!

Adelino Cardoso Cassandra

14 Comments

14 Comments

  1. Com certeza

    7 de Maio de 2021 at 19:47

    Com esses ministros incompetentes país vai de mal a pior. Ministra da justiça Ivete, ministra da educação Julieta, ministro turismo Aerton Rosario, são piores ministros que país já teve. Querem ser governantes mas sem jeito para política… só sabem armar confusão

    • Vão para trampa

      9 de Maio de 2021 at 0:53

      Não vi o Ministro Aerton Do Rosário tomar nenhuma decisão que possa pôr sa a boa gestão da coisa pública, também não lhe vi 3m confusão nenhuma. O que me parece ser alguém sem medo agir, é corajoso colocou ordem na direção na direção de turismo. Aquela direção tinha um senhor que julgava ser todo poderoso o ministro teve a ousadia de o colocar no seu devido lugar sinceramente gostei. Perante a pandemia o sector em todo mundo está parado por isso não consigo o julgar, a nível das manifestações culturais tem tido alguma habilidade o que não é facil no atual momento.

      Nós temos por hábito se não gostamos de alguém jogamos a pessoa para lama, é triste as nossas gentes.

  2. Foro

    7 de Maio de 2021 at 22:40

    Uma vergonha de país. E mais não digo.

  3. Lima

    7 de Maio de 2021 at 22:45

    O Afonso dos pioneiros conhece todos os podres desta gente, é por isso que eles tem medo dele. Gra de homem. Estes governantes envergonha o país. Antigamente um pessoa dizia que é de S.Tomé e as pessoas respeitava. Agora por causa dos governantes sãotomense já não tem respeito. Políticos pegaram terra e estragaram completamente.

  4. Teotónio

    7 de Maio de 2021 at 22:57

    Isto já não parece uma democracia. Cada um a querer mandar. Não pensam antes de tomar decisões. Não estudam as coisas antes de decidir. As pessoas estão na pasta ou função que não sabem nada nem dominam. Os ministros falam a toa e parecem malucos. Não há plano nem estratégia nas decisões tomadas. Estão preocupados com somente com o presente. Nenhuma decisão é pensada de forma global. Não existe prioridades nem objetivos. O país assim não tem rumo nenhum. Perdoem-me mas é a minha forma de pensar. Num país normal esta ministra seria demitida de imediato porque está a contribuir para a imagem muito negativa do governo.

  5. Virgílio Costa Pereira

    7 de Maio de 2021 at 23:01

    Cá em Portugal nós dizemos cada cavadela uma minhoca. Gosto do vosso país mas tudo isso parece uma aberração.

  6. Tita

    8 de Maio de 2021 at 14:09

    Meu caro Cassandra o poder judicial está amordaçado. Ouvi dizer que neste ajuste salarial vão diminuir o salário de juízes e procuradores. Assim sendo, não haverá justiça nesta terra e os políticos ficarão impunes.
    É só bandidagem nesta terra.

  7. Povinho

    8 de Maio de 2021 at 21:13

    É verdade que todos nós dizíamos e fomos contra o Patrice que condicionava os tribunais e punha em causa o estado de direitos. O que se passou com este caso (Lady) o governo do Jorge BJ não atuou da mesmo forma? Quando um governo intervém de forma directa ou indirectamente nas funções da justiça, o país já deixou de ter um tribunal independente. Mas o shr PM não pode tomar medidas pelos erros da shra M. da justiça porque ele também foi o autor interveniente. Ou seja, essa dança veio do erro inaceitável do PM. Por isso, de tudo que o shr Adelino Cassandra mencionou (estado de direito, justiça, democracia e outros mais) nós estamos a verificar uma imitação silenciosa do antigo governo do Patrice que no seio do MLSTP, ninguém fala para não perder o tacho. Eu também fui um dos pioneiros e conheci bem o shr Afonso. Sempre foi um homem honesto e firme nas suas convicções. Na minha presença nunca faltou com o respeito a ninguém nem quero aqui por a mão no fogo para ele. A verdade que disse sobre a polícia judiciária isso ninguém tem dúvidas porque para os que já lá passaram sabem perfeitamente que eles só procuram investigar sob pancadaria. O próprio diretor afastado também sabe disso.
    Esquecem que o nosso país vive a verdadeira democracia, ou estado de direito enquanto os tribunais forem condicionados por esses políticos e governantes corruptos.

  8. João Leite

    8 de Maio de 2021 at 22:27

    Esse é um pais desacreditado.
    vejam o que o Governo anda a fazer em relação a escolha de juiz conselheiro do Tribunal de Contas.

    • Danço

      10 de Maio de 2021 at 15:04

      Concordo senhor João Leite. Este país está perdido.

  9. Tino

    9 de Maio de 2021 at 9:18

    Há muita corrupção em São Tomé. Os que estão no poder estão ricos e o povo cada vez mais pobre. Nem energia conseguem garantir as pessoas
    Roubam até areia em micolo.
    Isto tudo tem que acabar.
    Estamos a sofrer muito em São Tomé.
    Ainda assim este governo retardado diz as companhias aéreas para não aumentarem o voo fazendo com que os turistas não se dirigem a São tome.

  10. Papoila

    9 de Maio de 2021 at 16:36

    s.tomé virou uma bandalha. enfim. Temos carnaval todo o ano. Este povo também é culpado para estar a admitir estes abusos todos.

  11. Danço

    10 de Maio de 2021 at 14:52

    este governo é dos mais fracos ou mais fraco que o nosso país já teve desde a independencia nacional.

  12. FCL

    10 de Maio de 2021 at 16:36

    Fiquei muito preocupada e só queria fazer um aviso aos candidatos a PR

    O Juvem ainda não é candidato. Nem sei se o TC vai deferir a sua candidatura.

    Por isso, pf não comecem a lançar boatos a dizer que o homem faleceu, de modo a dissuadir muitos potenciais eleitores

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